Embate na PGR: de onde vem a rivalidade entre Raquel Dodge e Rodrigo Janot?
Raquel Elias Ferreira Dodge, de 56 anos, assumiu na última segunda-feira a chefia do Ministério Público Federal. No dia seguinte, oficializou um dos primeiros atos de sua gestão: mandou de volta para casa oito dos dez integrantes da força-tarefa da Lava Jato que tinham sido escolhidos por seu antecessor, Rodrigo Janot.
Com o desmanche, descumpriu uma promessa de campanha. E tornou oficial a existência de dois grupos distintos no órgão: um vinculado a Janot, outro, a Dodge.
O clima entre os dois procuradores se deteriorou rapidamente nas últimas semanas, a ponto dele não ter nem sequer comparecido à cerimônia de posse. Dodge afirma que mandou convite por e-mail. Janot disse que, para ele, não havia nem sequer uma cadeira reservada no evento. No dia da posse, se limitou a mandar uma mensagem de boa sorte à sucessora na lista de e-mails do Ministério Público Federal.
"Que a nova PGR encontre alegria mesmo diante das adversidades e que seja firme frente aos desafios", pois "o êxito da colega Raquel Dodge será a vitória de todos nós", afirmou. Enquanto isso, despachava em seu escritório, no mesmo prédio onde acontecia a posse.
Embora pareçam dois líderes completamente apartados, procuradores ouvidos pela BBC Brasil que conviveram com ambos afirmam não há grandes diferenças de opinião, posicionamentos ou filosofia entre Janot e Dodge. Discordam quanto a crenças religiosas: ele é agnóstico, ela é católica praticante.
Se é assim, o que explica o racha no órgão responsável pela Lava Jato e pelo maior abalo sísmico na política brasileira desde a redemocratização? Características de estilo de gestão e prioridades na direção do órgão ajudariam a explicar a cizânia dentro do Ministério Público Federal.
Lava Jato acima de todo o resto
Para começar, o protagonismo imenso dado à área criminal dentro do órgão, por causa da Lava Jato, fez com que procuradores que atuam na esfera cível (em temas como os direitos humanos, defesa do consumidor e de comunidades indígenas) se sentissem desprestigiados.
Muitos desses profissionais acabaram votando em Raquel Dodge na consulta informal entre os procuradores, feita pela associação da categoria, sobre a substituição de Janot.
Esse foi o motivo de Dodge não ter mencionado a Lava Jato em seu discurso de posse, na segunda-feira. Ao contrário do antecessor, que frisou o tema em vários momentos de seu discurso de despedida na última sexta-feira e em seu e-mail de despedida para os colegas.
Esta divisão também explicaria a escolha de Luciano Mariz Maia como vice-procurador-geral, o número dois na hierarquia da nova PGR. Ele chefiava a 6ª Câmara de Coordenação, órgão que atua na defesa de comunidades indígenas, quilombolas e outras minorias.
A escolha dele seria uma forma de prestigiar a área cível. Maia é também primo do senador Agripino Maia (DEM-RN), investigado na Lava Jato - sua nomeação foi alvo de críticas na imprensa.
Ao fim do mandato, Janot atingiu a marca de 603 investigados na Lava Jato. Para chegar a esse resultado, teve que recrutar um número bem maior de procuradores da 1ª instância que o antecessor, Roberto Gurgel. Ao fazê-lo, tirou oito dos 32 procuradores da 1ª instância em Brasília, por exemplo. Resultado: sobrou mais trabalho para os demais, que reclamaram.
O episódio, aliás, resultou numa disputa pública entre Janot e Dodge no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Ele saiu derrotado na ocasião - ela foi a autora de uma resolução que limitou o número de procuradores que poderiam ser "pinçados" de cada Estado, e que começa a valer em janeiro próximo.
Numa reunião, em abril, houve uma discussão. Janot chegou a dizer que ficou "perplexo" com a proposta e que ela afetaria o andamento da Lava Jato.
'Panelinha dos brothers'
Janot foi nomeado para o cargo de PGR pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT), depois de ser o mais votado pelos colegas do Ministério Público. E há quem diga que ele tem um traço em comum com a petista, a quem denunciou por formação de quadrilha: seria "centralizador" e costumaria "deixar na geladeira" os procuradores que não faziam parte de seu núcleo mais próximo.
"Uma divisão foi criada na cabeça do Rodrigo [Janot]. Ele achava que tinha pessoas fiéis a ele e o resto, contra. Quem não era da turma dele, ele tratava como adversário. Toda essa confusão foi criada pelo Rodrigo. Por ele e pelas pessoas que ele chamava", diz um procurador influente em Brasília.
Na história recente do Ministério Público brasileiro, Janot representa o último nome do chamado grupo dos "tuiuiús" à frente da instituição. Trata-se de uma geração de procuradores que fez oposição ao ex-procurador-geral Geraldo Brindeiro (no cargo entre 1995-2003) e defendia que a escolha do chefe do órgão fosse feita pelos colegas.
Brindeiro acabou apelidado de "engavetador-geral da República". E os "tuiuiús" receberam esse nome em referência à uma ave do Pantanal que, por desengonçada, tem dificuldade em levantar voo. Assim como o animal, os procuradores não decolavam com a sua demanda de eleger o procurador-geral - os resultados das consultas feitas por sua associação, a ANPR, eram ignorados sistematicamente pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.
Em 2003, o grupo emplacou Cláudio Fonteles à frente da PGR, nomeado por Lula. De lá para cá, todos os antecessores de Janot em governos petistas também eram "tuiuiús" - a chegada de Raquel Dodge representa também o fim dessa era.
"Janot gostava de ser paparicado por quem trabalhava com ele. E a condição para entrar nesse grupo era tratar os de fora como adversários", diz. Nas palavras do mesmo procurador, "virou uma coisa de 'brother'. 'Vou te chamar, prque você é meu brother'". "Na verdade, os 'tuiuiús' sempre foram dessa política do 'nós contra eles'", diz.
Mas procuradores que trabalharam com Janot dizem que essa "discriminação" não ocorria. E que é normal que o PGR acabe tendo pessoas mais próximas e com mais acesso às informações.
"Parece um pouco natural que qualquer procurador-geral tenha um grupo de confiança e restrinja um pouco (as informações). Eu nunca vi problema nisso. E naturalmente vai acontecer agora também, na gestão de Raquel Dodge", diz um outro procurador, que integrou o círculo mais próximo de Janot.
O ex-procurador-geral, de fato, costumava tecer relações pessoais com os subordinados. Ficou pessoalmente abalado com o caso do procurador Ângelo Vilela, que foi preso sob acusação de vender informações sobre a operação Greenfield para a JBS. Janot disse em entrevista que "se sentiu traído" e que vomitou várias vezes quando soube da prisão, dada a proximidade com o colega.
Além disso, dava um tom pessoal às festividades: no fim de semana passado, por exemplo, organizou uma feijoada para comemorar com a equipe o fim do mandato.
O que esperar da 'era Dodge'
Dodge também costuma ser centralizadora. Mas há uma diferença capital entre os dois: ela transita no mundo político com muito mais facilidade que seu antecessor.
Enquanto Dodge é elogiada pela presidente do STF, Cármen Lúcia, como ocorreu na tarde desta quarta-feira, Janot está para ser "convidado" a prestar explicações no Congresso pelo chefe da tropa de choque de Temer, o deputado Carlos Marun (PMDB-MS). O ex-procurador teria, inclusive, desistido de se aposentar imediatamente do cargo, com medo de represálias do mundo político.
Quem já trabalhou com Dodge destaca como qualidades dela o rigor técnico, a tenacidade para encarar longas jornadas de trabalho e também o fato de ser uma pessoa ambiciosa. Ela se candidatou a uma vaga de ministra no Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2013, mas acabou derrotada pelo colega Sergio Kukina.
Na Lava Jato, é esperada pelo menos uma mudança no estilo de comunicação: Dodge prometeu, na campanha, criar uma sistemática para controlar melhor o acesso a informações sigilosas, evitando vazamentos. E também para facilitar a investigação de quem vazou o quê para a imprensa, quando isso ocorrer.
A ideia é acabar com a "prioridade" que o antecessor daria a alguns jornalistas. As operações "espetaculares" da era Janot devem ficar no passado.
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