Tim Vickery: Comida indiana, hemorroidas e a infindável capacidade humana de improvisar
Uma breve volta à Inglaterra me lembrou de como sinto falta da comida indiana.
Dá para achar no Rio de Janeiro, mas não é a mesma coisa. Vem cercada de noções de ser exótica ou, pior ainda, chique. Para nós, ela é natural e orgânica, uma consequência maravilhosa do poder da imigração de transformar uma cultura.
E a transformação funciona em mão dupla, porque o tipo de comida indiana que existe na Grã-Bretanha não se acha na Índia!
Lá a grande maioria é vegetariana. Os imigrantes indianos e paquistaneses na Inglaterra, então, se encontravam cozinhando para um público novo, livres para inventar pratos novos. Fizeram isso com tanto sucesso que hoje em dia as refeições deles efetivamente são a comida do povo britânico. Quando volto para rever velhos amigos, a coisa mais normal é se encontrar para comer um curry.
Não é um tipo de comida adequado para o paladar de muitos brasileiros. É bastante apimentada - coisa que, curiosamente e salve algumas exceções regionais, não se curte nem um pouco no Brasil. Digo "curiosamente" porque dá para esperar que seja o contrário.
Normalmente, climas tropicais produzem uma culinária apimentada - como o caso da própria Índia. O raciocínio é bem prático: antes da refrigeração, a carne estragava com muito mais rapidez em condições de calor, tornando necessário usar mais especiarias para disfarçar (A explicação é fácil e pretendo abordar em colunas futuras. Os indianos, sim, foram colonizados. O Brasil não gosta de se enxergar assim, mas é muito mais uma sociedade de colonizadores do que de colonizados, daí esse desencontro entre clima e culinária.)
Mas tudo tem o seu lado negativo. E como meu médico tem uma tara maliciosa em me avisar, há uma consequência comum após tantos anos apreciando comida apimentada. Chamam-se hemorroidas, uma condição nada grave, mas com um grau de desconforto considerável.
No inglês coloquial, a gente se refere aos "piles" (pilhas), ou na giria rimante, usando um personagem da literatura, "Farmer Giles" ("fazendeiro Giles") ou somente "the farmers" (os fazendeiros). Muitas vezes, quando estou em casa resmungando, as minhas enteadas perguntam se estou sofrendo com os fazendeiros.
Bem menos agora, obrigado, desde que descobri um creme que dá jeito. Fiquei fascinado ao ser informado de que o ingrediente principal do tal creme vem do fígado de um tubarão.
Isso não me proporciona qualquer sentimento de culpa, levando em consideração a natureza desagradável do bicho em questão. Ao contrário, me enche de um certo senso de maravilha. Como se descobriu isso? Imagine, por favor, o cientista maluco futucando um tubarão, chegando no fígado e pensando, "não sei não, mas talvez tem uma coisa aqui que possa ser útil àquela parte da anatomia humana onde o sol não brilha".
Na minha humilde concepção, acho que vale um Prêmio Nobel.
Vale também uma reflexão otimista, apesar de tudo. Nossa espécie enfrenta problemas enormes; estamos mexendo com o clima do planeta, e temos uma bomba-relógio demográfica. Como sustentar tantas pessoas com um modelo econômico que não serve mais e uma coleção de líderes globais em estado de negação? Há motivos sólidos e racionais para entrar em pânico.
A grande esperança - como eu me lembro cada vez que aplico o creme salvador - é que a ingenuidade humana, a nossa capacidade de improvisar soluções, não tem limites - um bom pensamento para iniciar 2018.
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.
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