Guerra entre as Coreias? Serviço coreano da BBC responde perguntas de leitores
Há vários meses, é quase impossível abrir qualquer grande portal de notícias e não encontrar nenhuma reportagem sobre a tensão entre as duas Coreias, a do Norte e a do Sul.
O conflito nesta região da Ásia cresceu na esteira dos repetidos testes de artefatos nucleares e mísseis norte-coreanos, além da retórica inflamada de Kim Jong-un e Donald Trump e do endurecimento das sanções econômicas impostas pela ONU.
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No começo do ano, a temperatura baixou depois de uma aproximação entre os representantes do Sul e do Norte, e do anúncio de que ambos os países desfilariam sob a mesma bandeira nos próximos Jogos de Inverno em Pyeongchang, na Coreia do Sul.
Estas reviravoltas não fogem do padrão de "altos e baixos" de um conflito que já dura sete décadas, iniciado com a Guerra da Coreia (1950-1953). O enfrentamento dividiu o país em dois: o Sul capitalista e o Norte que segue a ideologia Juche, derivada do comunismo.
A BBC selecionou algumas das perguntas enviadas por leitores sobre o tema, e encaminhou os questionamentos para os nossos colegas do Serviço Coreano, baseado no Sul. Leia as respostas abaixo.
1. O programa nuclear da Coreia do Norte
Qual é o verdadeiro risco de uma guerra nuclear com a Coreia do Norte? As ameaças de Pyongyang são uma estratégia de defesa vazia?
O risco é real já há algum tempo. Poderiam ser consideradas ameaças vazias se Pyongyang não tivesse feito avanços significativos desde os anos 1990.
O governo do Norte parece ter clareza de que um simples "blefe" não se sustentaria por muito tempo.
Por que os Estados Unidos consideram a Coreia do Norte uma ameaça mundial?
Tudo começou na Guerra da Coreia, conflito que está em estado de trégua desde 1953. Tecnicamente, a guerra nunca foi encerrada, e tanto os Estados Unidos quanto a Coreia do Norte se consideram mutuamente inimigos.
Quando os líderes norte-americanos se referem à Coreia do Norte como uma "ameaça mundial", estão falando do programa nuclear do país de Kim Jong-un. Os Estados Unidos temem que a Coreia do Norte decida vender uma arma nuclear a grupos como o Estado Islâmico.
Por que a Coreia do Norte não pode ter armas nucleares se os EUA já usaram estes artefatos duas vezes contra civis?
De fato, os Estados Unidos são responsáveis pelas duas únicas detonações de bombas atômicas em guerras: ogivas foram jogadas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki em 1945, resultando na morte de cerca de 129 mil pessoas, a maioria civis.
Se este fato dá à Coreia do Norte o direito de se tornar uma potência nuclear ou não, é algo aberto à discussão.
Apesar disso, alguns especialistas e políticos argumentam que o mundo se tornaria um local mais seguro e estável se todos os países tivessem armas nucleares em seus arsenais. O argumento é o de que, como todos estariam aptos a retaliar de forma letal e decisiva, os governantes pensariam duas vezes antes de atacar.
O que aconteceria se os EUA reconhecessem a Coreia do Norte como uma potência nuclear?
Esta é a última coisa que os EUA fariam.
Se isto ocorresse, o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) perderia o sentido e todos os demais países se sentiriam no direito de desenvolver seus próprios programas nucleares, porque ficaria claro que qualquer nação que construísse uma bomba atômica não sofreria consequências.
2. Em caso de guerra
Estamos mais próximos de uma guerra entre os EUA e a Coreia do Norte?
A resposta depende de a quem você pergunta. De qualquer forma, muitos especialistas e funcionários dos governos de todas as partes envolvidas parecem concordar que estamos "mais perto" de uma guerra que antes.
Há notícias de que estão em andamento preparativos para o caso de guerra, o que é preocupante. De acordo com o jornal britânico Sunday Times, oficiais do exército do Reino Unido visitaram recentemente a Coreia do Sul em duas ocasiões, para esboçar planos de resgate de cidadãos britânicos.
Em caso de guerra, como reagiriam a China e a Rússia?
Acreditamos que há três cenários possíveis. São os seguintes:
1. China e Rússia abandonam a Coreia do Norte à própria sorte devido às pressões da comunidade internacional e por motivos econômicos e diplomáticos. Agindo assim, ganham pontos com o resto do mundo. A Coreia do Norte é atropelada por um ataque militar dos EUA.
2. China e Rússia entram em uma "guerra por procuração" (proxy war) com os EUA, algo similar ao que a Rússia e os EUA fazem na Síria em outros países do Oriente Médio. A guerra se estende por muito mais tempo que o necessário e a península coreana como um todo acaba devastada.
3. Estoura uma guerra total entre China e Rússia de um lado, e os EUA de outro. É o fim do mundo como o conhecemos.
Apesar de possível, o cenário 3 não é provável. As hipóteses 1 e 2 são mais prováveis, mas é difícil saber o que realmente aconteceria em caso de guerra.
O que aconteceria se Pyongyang atacasse os EUA e seus aliados?
A represália seria imediata e a guerra estouraria. Uma das principais razões para os EUA não terem atuado militarmente contra a Coreia do Norte até agora é por tratar-se de uma saída problemática e que não vale a pena. Principalmente por causa da presença da Rússia e da China.
Mas se a Coreia do Norte ataca os EUA, o equilíbrio muda imediatamente e a Coreia do Norte se veria arrasada por aquilo que o presidente dos EUA, Donald Trump, costuma chamar de "fogo e fúria". E muitos dos aliados dos EUA (inclusive a Coreia do Sul) fazem parte de um Tratado de Defesa Mútua com os EUA. Por isto, também atacariam o regime de Kim Jong-un.
Se a guerra começar, qual será o efeito sobre a economia mundial?
Seria devastador. Mesmo que os EUA não fossem diretamente atingidos (mortes, destruição de cidades), a região tem algumas das maiores economias do mundo. A China (segunda maior), o Japão (terceira) e a própria Coreia do Sul (décima primeira).
Além disso, as rotas comerciais do oceano Pacífico e os principais portos do Sudeste Asiático seriam afetados.
3. Reunificação das Coreias
É possível a construção de um acordo de paz entre as Coreias do Sul e do Norte?
Esta é uma pergunta complexa, e acreditamos que ainda seja muito cedo para falar em um acordo de paz.
De qualquer forma, o presidente sul-coreano Moon Jae-in tem esperanças de estabilizar as relações com o Norte. Podemos esperar mais conversas de alto nível entre os dois governos após os Jogos de Inverno de Pyeongchang.
O governo sul-coreano cogita várias possibilidades, inclusive a de retomar o diálogo sobre o intercâmbio de famílias separadas pela guerra e a reabertura do complexo industrial conjunto na cidade norte-coreana de Kaesong.
Os dois países podem avançar no processo de reunificação depois dos Jogos de Inverno?
O momento é cor-de-rosa, mas é preciso recordar que esta não é a primeira vez que a Coreia do Norte manda uma delegação de atletas ao Sul.
Os norte-coreanos também vieram para os Jogos Asiáticos de 2014, realizados em Incheon, uma cidade portuária a oeste de Seul.
Na realidade, as relações entre os dois países pioraram depois dos Jogos de 2014, após vários testes de mísseis norte-coreanos.
Quanto tempo demoraria a negociação de um acordo de paz entre as duas Coreias?
A pergunta mais importante não é quando ocorrerá o acordo, mas como este se dará. E a resposta interessa não só à Coreia do Norte, mas também às outras partes envolvidas, como os EUA e o Japão.
Há especulações sobre vários cenários para o futuro da península coreana. Por exemplo: em 2011, antes da morte de Kim Jong-Il (pai do líder atual, Kim Jong-un), alguns vaticinaram que a saída dele de cena teria um impacto contundente, gerando um possível colapso do Norte.
Evidentemente, não foi o que aconteceu. Mas uma coisa é certa: é preciso "esperar o inesperado" quando se trata das relações entre as duas Coreias.
4. Os aliados internacionais
Por que a China apoia a Coreia do Norte?
Em primeiro lugar, há antecedentes históricos que explicam a relação entre os dois países. A Coreia do Norte é o único aliado oficial da China, nação que mantém uma estratégia de não fazer alianças, baseada em um tratado de cooperação firmado entre esses dois países em 1961.
Um dos pontos deste tratado diz que "as partes se comprometem a adotar conjuntamente todas as medidas para evitar a agressão (externa)". O tratado obriga a China a assumir sempre o lado norte-coreano em qualquer conflito.
Uma explicação mais realista, do ponto de vista geopolítico, é que a Coreia do Norte serve como uma "zona de amortização" para a China.
Depois da morte do líder comunista Mao Tse Tung, em 1976, a China mudou a estratégia utilizada para chegar à utopia socialista, admitindo reformas econômicas e sociais simultâneas.
Ficou claro que o país poderia utilizar o protagonismo geopolítico da Coreia do Norte em proveito da própria defesa.
O que a China ganharia em caso de guerra ou de paz entre o Norte e o Sul?
Com o atual clima de reconciliação entre as duas Coreias, a China poderia esperar a retomada das suas exportações de petróleo para a Coreia do Norte, uma grande fonte de divisas para o país.
5. Coreia do Norte e a América Latina
Qual o papel dos países da América Latina no conflito da Coreia?
De todos os países da América Latina, a Colômbia foi o único que participou da Guerra da Coreia, nos anos 1950. O país mandou um batalhão de infantaria e uma fragata, a Almirante Padilla, como parte das forças das Nações Unidas sob comando dos EUA.
De acordo com o historiador David Bushnell, a Colômbia buscava receber mais apoio econômico norte-americano em troca de seu envolvimento, e este pode ter sido um dos fatores para explicar o envio de tropas.
Os soldados colombianos participaram de batalhas chave no conflito, inclusive a chamada Batalha de Punchbowl (algo como "batalha do vaso de ponche", em tradução livre), no que hoje é parte da província sul-coreana de Gangwon. O local sediará os Jogos de Inverno em fevereiro.
A Coreia do Norte representa uma ameaça para os países latinoamericanos?
O governo norte-coreano sempre identificou os Estados Unidos como seu principal inimigo e qualquer conflito militar futuro na península coreana muito provavelmente envolveria os cerca de 28 mil militares norte-americanos aquartelados na Coreia do Sul, além do próprio efetivo militar sul-coreano.
Ao longo dos anos, a maioria das ameaças verbais de Pyongyang se dirigiu aos EUA e a Seul, e muito poucas vezes a outros lugares.
Apesar da comunidade internacional acreditar que o Norte está cada vez mais próximo de poder lançar mísseis balísticos intercontinentais que poderiam alcançar a América do Norte, pouca gente acredita que o regime de Kim Jong-un teria capacidade ou intenção de atingir a América Latina.
Mesmo assim, os Estados Unidos pediram recentemente ao Chile, ao Brasil, ao México e ao Peru que cortem suas relações econômicas com a Coreia do Norte, como parte de um esforço comum para frear as ambições nucleares do regime.
6. A economia
Como sobrevive a economia da Coreia do Norte?
Não existem muitos dados oficiais que mostrem como se dá o funcionamento da economia norte-coreana.
No dia 28 de junho de 2012, Kim Jong-un anunciou o "Plano 6.26", que outorgou às empresas privadas maior autonomia, representando uma abertura do sistema em relação ao passado.
A Coreia do Norte também se beneficia do comércio com a China. Segundo pesquisas, o país arrecadou mais de US$ 5 milhões graças à venda de carvão aos chineses.
Além disso, segundo o Instituto de Estudos Políticos Asan, a Coreia do Norte força seus trabalhadores a mudarem-se para o exterior, gerando algo entre US$ 1,2 bilhão e US$ 2,3 bilhões em divisas enviada de volta à terra natal. Estudos recentes mostram, porém, que a situação econômica do país se degradou com a imposição de sanções mais duras por parte da comunidade internacional.
7. Os Jogos de Inverno
Qual é o significado da decisão das duas Coreias de desfilar sob a mesma bandeira na abertura das Olimpíadas de Inverno?
A bandeira da unidade consiste num fundo branco com o mapa da península coreana em azul. O símbolo apareceu pela primeira vez em 1991, no Campeonato Mundial de Tênis de Mesa de Chiba, no Japão, quando o Norte e o Sul jogaram com um único time.
Acredita-se que o desenho atual tenha sido criado pela Chongryon, uma associação coreana sediada no Japão e que tem laços estreitos com a Coreia do Norte.
Esta bandeira foi utilizada em nove ocasiões desde o campeonato de tênis de mesa, em desfiles conjuntos das Coreias do Norte e do Sul. Junto com o hino da unificação (chamado "Arirang"), a bandeira da unidade se transformou num símbolo de paz e reconciliação entre o norte e o Sul.
8. Religião
Quais são as religiões oficiais da Coreia do Norte e do Sul? Qual é o papel da religião no conflito entre os dois países?
Nem a Coreia do Norte e nem a do Sul têm religiões oficiais. Mas existem bem mais ateus (cerca de 60% da população) na Coreia do Norte. Da mesma forma, há uma população cristã maior (28% do total) na Coreia do Sul.
Assim, pode-se dizer que a Coreia do Sul é um país mais religioso que o Norte.
A religião ajuda na conciliação dos dois países, ao invés de instigar conflitos. Nas últimas décadas, ambos os governos permitiram intercâmbios não-políticos entre cidadãos. Várias religiões, como o budismo, o cheondoísmo e o catolicismo organizam este tipo de intercâmbio entre os dois países.
9. Origem do conflito coreano
Qual é a causa do conflito entre as Coreias? Trata-se de uma disputa territorial ou econômica?
Esta é uma pergunta muito ampla, de modo que só podemos responder assumindo que se trata de um questionamento sobre a Guerra da Coreia.
Muitos acadêmicos acreditam que a Guerra Fria (conflito velado entre os Estados Unidos e a União Soviética) foi uma das causas da Guerra da Coreia.
As relações entre as duas forças de ocupação (a norte-americana e a soviética) após a Segunda Guerra Mundial não eram boas e, quando a China se tornou comunista em outubro de 1949, o comando político dos EUA começou a temer que outros países da região também se tornassem comunistas.
Apesar da disputa ideológica ter dado início ao conflito naquela época, hoje é a geopolítica que explica a manutenção do problema, em substituição à Guerra Fria.
A ascensão da China, em particular, aumentou a tensão existente nos EUA sobre o papel norte-americano no extremo-oriente.
Como resultado da Guerra da Coreia, que tecnicamente ainda não acabou, as duas Coreias não reconhecem uma à outra como Estados soberanos. Por exemplo: a Constituição da Coreia do Sul reclama todo o território da península como território seu, e define o país vizinho como seu principal inimigo.
10. Política interna na Coreia do Norte
Existem líderes de oposição capazes de ameaçar Kim Jong-un?
Não existe oposição política na Coreia do Norte. E por um motivo simples: quem critica Kim Jong-un pode ser executado em instantes.
A Constituição da Coreia do Norte determina que "os partidos têm o direito de atuar livremente", mas todas as organizações políticas do país estão sob controle do Partido dos Trabalhadores da Coreia.
Isto não impede que exista, por exemplo, um Partido Social Democrata Coreano, na Coreia do Norte. De toda forma, não se trata de um partido de oposição, e sim de um grupo de propaganda do regime.
Para concluir: não existem líderes de oposição na Coreia do Norte que possam desafiar Kim Jong-un.
Existem campos de concentração na Coreia do Norte?
Sim, existem.
Existem os campos de prisioneiros políticos de Yodok e Kaechon, de Chongjin e de Hoeryong, etc. Há ao todo seis campos de prisioneiros políticos em operação, com dezenas de milhares de pessoas detidas.
Para saber mais, consulte o relatório sobre campos de prisioneiros políticos da Coreia do Norte divulgado pelo Departamento de Estado dos EUA.
11. Sociedade norte-coreana
Cidadãos da Coreia do Norte podem se casar com estrangeiros? A lei permite?
Matrimônios internacionais são raros na Coreia do Norte. Não quer dizer que não existam. Temos conhecimento de casais formados por norte-coreanos e estrangeiros.
Atualmente não há muitas informações sobre o quê exatamente diz a lei norte-coreana sobre o casamento de cidadãos seus com estrangeiros. Acredita-se que numerosos pré-requisitos tenham de ser atingidos e que existam restrições para este tipo de união.
O Norte e o Sul tinham uma cultura em comum antes da guerra? Como era a vida na Coreia antes de ser dividida em dois países?
Sim, os dois países tinham uma cultura comum antes da guerra. Naquela época, a Coreia era monarquia, governada pela dinastia Joseon (Chosun), que reinou entre 1392 e 1910. Esta é a razão pela qual a Coreia do Norte algumas vezes refere-se a si própria como Chosun.
O império, porém, foi derrubado pelo Japão. A Coreia viveu 35 anos de colonização japonesa (1910-1945).
No fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, a Coreia recuperou sua independência. Os coreanos ficaram então divididos entre os que queriam instalar um comunismo de estilo soviético, aqueles que eram pró-Estados Unidos e os nacionalistas coreanos.
Kim Il-sung, fundador do regime da Coreia do Norte, liderou o primeiro grupo. Syngman Rhee tornou-se o primeiro presidente da República da Coreia do Sul (então uma ditadura pró-ocidente). O líder do grupo nacionalista, Kim Goo, foi assassinado.
Quão confiável é a informação que recebemos no Ocidente sobre a Coreia do Norte?
É preciso sempre ter cuidado com as informações recebidas sobre a Coreia do Norte no Ocidente.
Primeiro, porque quase todas as informações que chegam vêm de dissidentes e desertores norte-coreanos. Estas pessoas deixaram o país em épocas diferentes, então suas histórias podem variar. A Coreia do Norte mudou bastante ao longo dos anos, e nem todos estes informantes estão a par das mudanças.
Há também informações que vêm de estrangeiros que visitaram a Coreia do Norte, e obviamente o regime limita o acesso destas pessoas a detalhes sobre o país. A Coreia do Norte costuma mostrar aos estrangeiros somente o que lhes agrada.
(*) Agradecemos aos colegas do Serviço Coreano da BBC pela gentileza de responder a estas perguntas.
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