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'Sobrevivencialistas' brasileiros apostam em 'bunker civil' e mochilas de emergência para situações de violência e crise

Julio Lobo usa armadilha feita com garrafa plástica para capturar pequenos peixes; ele tem no sobrevivencialismo fonte de renda com produção de conteúdo, loja online e cursos - Arquivo pessoal
Julio Lobo usa armadilha feita com garrafa plástica para capturar pequenos peixes; ele tem no sobrevivencialismo fonte de renda com produção de conteúdo, loja online e cursos Imagem: Arquivo pessoal

Mariana Alvim - @marianaalvim

Da BBC Brasil em São Paulo

10/02/2018 17h21

A escalada da retórica de ameaças nucleares entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte colocou em evidência, entre os americanos, os preppers - como indica a raiz do termos em inglês, grupos que se preparam para situações de crise como conflitos e desastres naturais.

Se por lá os preppers costumam se referir a ameaças como guerras internacionais, furacões e tornados, no Brasil há também pessoas que se preparam para eventuais riscos. Entre os "sobrevivencialistas" brasileiros - termo que abarca práticas como as dos preppers -, ficam em evidência, porém, problemas mais pronunciados no país, como a violência, a crise política, as enchentes e as doenças tropicais.

É sobretudo pela violência que o administrador Márcio Andrade, de 50 anos, justifica a construção, em sua casa no interior de São Paulo, de um "bunker civil" ou um "quarto do pânico" - um cômodo selado em concreto e aço com itens que vão de simples papéis higiênicos, a ferramentas, grãos comestíveis e lunetas. Tudo o que ele considera necessário para, em uma situação adversa, sobreviver com a sua família por alguns dias.

"É isso ou ser vítima", resume Andrade, morador do município de Monte Alto, no Estado de São Paulo.

Na entrevista por telefone, ele faz uma ressalva: apesar dos sobrevivencialistas acabarem sendo conhecidos por medidas drásticas como estas, Andrade destaca que este estilo de vida se propõe a estimular a autonomia nas atividades mais banais da vida. Ele, por exemplo, diz ter conhecido o sobrevivencialismo em meio a problemas financeiros.

"Eu era empresário e, com a crise em 2008, acabei perdendo praticamente todos os meus clientes. Exatamente nesta época, minha mulher ficou grávida. A gente ficou sem absolutamente nada. Então, começamos a estudar sobre autossuficiência", lembra Andrade. "Passamos a fazer contas básicas: o que era melhor, comprar um pé de alface ou sementes de alface? Passamos a fazer a nossa casa render, plantando, coletando água da chuva e usando um fogão à lenha, por exemplo".

Deste início, os conhecimentos e práticas foram sendo aprimorados. Ao lado de novos empregos e de dois filhos crescendo - dois meninos, hoje com 4 e 7 anos -, a família cultiva mais de 20 árvores frutíferas e animais como galinhas e coelhos. A casa conta com uma cozinha sustentável e aquecedor solar. Em paralelo, Andrade e a mulher, Mayra Teixeira, tocam o Guia do Sobrevivente - um site de sobrevivencialismo com conteúdo em textos e vídeos. No YouTube, o guia acumula mais de 165 mil inscritos e 15 milhões de visualizações.

No canal, há tutoriais como "Bacon artesanal curada em 30 dias" e vídeos como o com título "O que você faria se: 3 meses sem governo".

"Quando falamos em sobrevivência, logo se pensa sobre uma pessoa que precisa se virar na selva. Mas o sobrevivencialismo defende que a pessoa identifique como ficar mais preparado no ambiente em que está. Você não imagina, por exemplo, a sua avó tendo que sobreviver na selva, mas todos podem se adaptar para o cenário em que se vive. Com o acidente na Barragem em Mariana (episódio em que a barragem do Fundão, no município mineiro de Mariana, se rompeu, em 2015), a água pegou todo mundo, incluindo pessoas doentes, idosos e crianças", exemplifica Andrade.

Secas, enxurradas e inundações

Mas, além das ameças representadas por desastres, os sobrevivencialistas brasileiros costumam também apontar para conflitos civis em potencial.

"Galera, revisem ai seus suprimentos por que os próximos 8 meses vão ser imprevisíveis", comentou um membro de um grupo de sobrevivencialistas no Facebook com 16 mil participantes, abrindo um debate sobre o cenário político do país.

"A violência é a situação que exige a preparação mais óbvia. Mas podemos ter também um colapso do Estado: qualquer cenário de instabilidade política dá margem a movimentos como os de paramilitares e terroristas", diz Julio Lobo, psicólogo de 28 anos e fundador do portal Sobrevivencialismo.com. "Nossa intenção não é nos preparar para o fim do mundo, mas para temas reais como o desemprego e a crise financeira. A ideia é se tornar menos dependente de sistemas que podem falhar".

Tutoriais de sobrevivencialistas ensinam, entre outras coisas, a montar kits de sobrevivência - Reprodução/YouTube/Survivor's Guide - Reprodução/YouTube/Survivor's Guide
Tutoriais de sobrevivencialistas ensinam, entre outras coisas, a montar kits de sobrevivência
Imagem: Reprodução/YouTube/Survivor's Guide

"Há serviços que, quando param, congelam tudo o que é essencial - como uma greve de caminhoneiros, que pode cortar o abastecimento de alimentos e produtos hospitalares", exemplifica Márcio Andrade. "Quando eu planto minha horta, eu rio, porque não estou pagando impostos ou a atravessadores. Eu sou contra impostos".

A retórica dos sobrevivencialistas é permeada por uma visão antisistêmica e de reforço à autonomia individual - mas, que às vezes, dá corpo a pautas mais concretas, como a defesa do armamento civil.

A socióloga Juliana Abonizio, professora da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), enxerga no sobrevivencialismo uma expressão ao mesmo tempo do individualismo, uma marca da modernidade, mas também da tribalização - localizada por alguns autores na chamada pós-modernidade.

"Eu penso que o preparo para a situação extraordinária é a situação ordinária. Não se trata tanto de viver pensando em uma catástrofe, mas uma forma de viver o cotidiano. Não é tanto o futuro que importa, mas a forma de se viver o presente e esse grupo o faz como estilo de vida: uma vida estilizada", escreveu Abonizio à BBC Brasil por e-mail.

"Percebo, talvez algo que nem seja claro inclusive aos adeptos, um desejo inconsciente de mudança, ainda que esse desejo não seja plenamente canalizado para alguma direção. Percebo um enfastiamento do vivido o que faz parecer uma catástrofe mais interessante do que a mesmice".

Loja virtual para sobrevivencialistas

Na linha do "faça você mesmo" tão presente entre os sobrevivencialistas e na própria internet, participantes dividem notícias de situações emergenciais; modo de fazer kits de primeiros socorros e sobrevivência (para serem levados na carteira ou em mochilas, por exemplo); e vídeos em que blogueiros testam equipamentos como facas e canivetes ou ensinam a acender fogareiros.

Para dar uma forcinha na autonomia pregada pelos sobrevivencialistas, Julio Lobo criou, com sócios, a Via de Fuga, uma loja virtual que vende produtos como canivetes, roupas térmicas e comida liofilizada.

"O público se divide entre aventureiros e militares. Crescemos sete vezes (em faturamento) em 2017", comemora Lobo, que tem na loja sua prinicipal fonte de renda e também orienta cursos de sobrevivência.

O psicólogo garante, porém, que mais importante do que os equipamentos é a "disciplina comportamental" - atitude esta que ele conta já ter sido testada quando se viu diante de animais como jaguatiricas e catetos na mata ou à beira de uma hipotermia na montanha.

"O controle mental e a tomada de decisão foram fundamentais: tratei de acender um fogareiro, aquecer as extremidades e não desesperar", lembra Lobo.

Ele, como o casal Márcio Andrade e Mayra Teixeira, tem no escotismo uma experiência original que abriu caminho para muitas práticas do sobrevivencialismo.

"De certa forma, o sobrevivencialismo é como um escotismo para adultos. A ideia é empoderar o indivíduo", explica o psicólogo.