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Nascida da remoção de favelas, Vila Kennedy vive 'déjà-vu' após virar bairro-piloto de intervenção no Rio

Julia Dias Carneiro - Da BBC Brasil no Rio de Janeiro

No Rio de Janeiro

12/04/2018 06h09

Adotado como "piloto" da intervenção federal no Rio, bairro foi construído por Carlos Lacerda como "modelo" para receber removidos de favelas nos anos 1960. "O Estado está sempre chegando na favela. Moradores já viram esse filme", diz historiador

Foi no dia 18 de janeiro de 1964 que o caminhão chegou de surpresa no barraco de madeira onde Ademar Damasceno, ainda um menino de 8 anos, vivia com a família. Os homens embarcaram no veículo seus móveis, seus pertences parcos e a própria família - Ademar, a mãe e os sete irmãos. Da casa na Gávea, zona sul do Rio, foram levados a um lugar onde nunca tinham pisado, mas que seria seu novo endereço - a Vila Kennedy, na zona oeste, a cerca de 50 quilômetros dali.

Os Damasceno foram a terceira família a chegar na recém-construída Vila Kennedy, então ainda um conjunto de casas de alvenaria vazias e semiacabadas - "embriões", como eram chamadas - enfileiradas ao longo de ruas ainda de terra batida.

O pai, paraense, só soube da remoção ao retornar no fim do dia de trabalho como gari. "Ele chegou em casa e não tinha mais família", diz Ademar, que hoje tem 62 anos e é uma liderança comunitária na Vila Kennedy. "Ainda bem que um vizinho deu o aviso. Para você ver como era a ditadura deles."

Assim como boa parte dos moradores da Vila Kennedy, Ademar tem lembranças vivas do período da remoção. O conjunto habitacional construído entre a área rural de Campo Grande e as indústrias da região de Bangu era parte de um projeto pioneiro da política de remoção de favelas empreendida pelo então governador da Guanabara, Carlos Lacerda.

A BBC Brasil conversou com moradores antigos da Vila Kennedy para saber como enxergam políticas do Estado na comunidade, ontem e hoje.

A comunidade passou as últimas semanas nos holofotes no Rio por ter sido eleita uma espécie de "laboratório" da intervenção federal na segurança pública, com a promessa de que o modelo de ação desenvolvido ali será levado a outras partes da cidade.

No início dos anos 1960, o conjunto habitacional foi uma vitrine das políticas públicas do então governador. "Era a menina dos olhos do Lacerda", diz morador e historiador da comunidade Alex Belchior, contando que, na época, o presidente do Senegal e o rei da Bélgica foram levados para conhecer a Vila Kennedy.

Hoje, soldados vêm fazendo incursões diárias no bairro como parte da intervenção federal, com rondas nas ruas e presença do amanhecer até o início da noite, enquanto mais tarde o policiamento fica a cargo da Polícia Militar.

A comunidade é dominada pelo tráfico e recebeu, em 2014, a última Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) implantada pelo governo estadual do Rio.

Já se passaram quase dois meses desde que a intervenção federal foi decretada pelo presidente Michel Temer. As ações iniciais foram marcadas pela retirada de barricadas instaladas por traficantes nas ruas e pela polêmica identificação de moradores que entravam e saíam da comunidade, fotografando seus documentos para levantar se tinham fichas criminais.

Agora, os militares planejam sair da Vila Kennedy até o fim de abril - deixando nos primeiros habitantes levados para lá nos anos 1960 uma sensação de déjà-vu com o mais recente surto de atenção por parte do Estado.

Os moradores ouvidos pela BBC Brasil dizem ter clareza de que a atenção é temporária e que a ação é política. "É para inglês ver", considera Ademar.

"Gostaríamos que o Estado entrasse aqui com ação social, respeito e dignidade ao morador. Não é com armas que se resolvem os problemas da comunidade. É com inteligência e investimentos", considera.

Aliança com Kennedy

A princípio, a Vila Kennedy não se destaca de outros conjuntos habitacionais que margeiam a Avenida Brasil, um dos principais vias e acessos ao Rio.

Mas quem chega ao bairro tem de cara uma pista sobre sua história particular. Uma réplica da Estátua da Liberdade saúda os visitantes em uma de suas entradas, instalada bem no meio da Praça Miami. Foi um presente dos Estados Unidos - esculpida pelo francês Frédéric Auguste Bartholdi, criador da estátua original, e cercada de uma grade para sua proteção.

As vilas Kennedy, Aliança e Esperança foram construídas com injeção de recursos do governo americano no início dos anos 1960 para receber famílias desenraizadas de favelas da zona sul e norte do Rio - como o Morro do Pasmado, em Botafogo; a Favela do Esqueleto, no Maracanã; e a Praia do Pinto, na Lagoa. A maioria, como a de Ademar Damasceno, levada contra a própria vontade.

Os recursos vieram da chamada Aliança para o Progresso, programa do então presidente norte-americano John F. Kennedy para ajudar a erradicar a pobreza na América Latina - mas que na verdade buscava exercer influência para conter a expansão do comunismo após a revolução cubana, explica o historiador Mario Brum, professor da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense da UERJ.

A Vila Kennedy se chamaria Progresso - mas acabou sendo batizada em homenagem ao presidente americano após seu assassinato, em 1963.

O Rio acabara de perder o status de capital federal e Lacerda procurava uma nova vocação para fazer da Guanabara um modelo para o Brasil. O plano era industrializar a Guanabara, construir rodovias e criar polos de trabalho nas periferias, gerando emprego para os moradores que estavam sendo removidos das áreas mais nobres e centrais da cidade.

E os conjuntos habitacionais eram vendidos como uma chance para que os favelados, estigmatizados, mudassem de vida, diz Brum.

"A visão da favela era marcada por preconceito. O ambiente era considerado sujo, pernicioso, e o favelado visto como vagabundo, promíscuo, marginal", lembra o historiador, especialista na história das remoções de favelas no Rio.

"O discurso de Lacerda era que se tirasse as pessoas da favela, poderiam se desenvolver em um ambiente melhor e mudar de vida, e que teriam uma promoção social ao se tornar proprietários de uma casa."

Em entrevista ao jornal O Globo na época, Sandra Cavalcanti, que coordenava a Secretaria de Serviços Sociais de Lacerda e delineou sua política de remoções, definiu a transferência dos moradores para a Vila Kennedy como "a primeira revolução social" no Brasil. Afirmou que os "antigos favelados" receberiam ali "escolas, serviço social e condições de higiene, passando verdadeiramente de um século para o outro em questão de condições de vida."

A remoção se concretizou; as benfeitorias prometidas à época, não. "O Estado nunca esteve presente. Tudo que conseguimos aqui foi com muita luta", resume Ademar.

A chegada

Ademar lembra que sua impressão ao chegar à Vila Kennedy naquele dia 18 de janeiro de 1964 foi "a pior possível" - mesma data, aliás, em que os comentários de Sandra Cavalcanti louvando a "revolução social" foram publicados no Globo, e apenas dois dias antes de a comunidade ser inaugurada por Lacerda.

A casa era de alvenaria, ao contrário do barraco de madeira onde sua família vivia, no Parque Proletário da Gávea, numa área que até pouco tempo atrás era parte do estacionamento da PUC-Rio e que hoje é a estação de metrô que aguarda recursos para ser finalizada na Gávea.

Afora a vantagem das paredes sólidas, a casa não tinha luz, nem água encanada, nem porta, nem janela. E não havia, sobretudo, uma comunidade a seu redor.

"Não tinha um comércio para comprar comida. Passamos muita fome no início. Trataram a gente pior do que animal", diz Ademar. Para ele, Carlos Lacerda foi um "representante dos ricos, da alta sociedade", cuidando de promover a valorização imobiliária das regiões mais abastadas do Rio.

"Foi o golpe da elite. Tiraram a gente da Gávea sem nos pagar indenização nenhuma e nos botaram na Vila Kennedy para pagarmos prestações. Hoje a Vila Kennedy evoluiu, o povo foi se aprimorando. Mas foi na base da sobrevivência. Foi com muito sacrifício."

Os irmãos passaram a se lembrar com saudade das idas para a praia do Leblon e "do pouco de comida que sobrava das madames", que vira e mexe a mãe conseguia levar para casa quando moravam na Gávea. Na Vila Kennedy, passaram a conviver menos com a mãe, que tinha que dormir no serviço na zona sul. Ademar logo teve que começar a trabalhar para ajudar em casa, ganhando trocados como engraxate ou vendendo balas no trem.

Quando seus pais tiveram a nona criança, já não havia dinheiro para alimentar todos. "A minha mãe teve que doar dois filhos, porque não dava para criar. A miséria era muito forte". A caçula da família foi adotada pela senhora para quem a mãe trabalhava assim que largou o peito. "Essa senhora era doida para ser mãe, mas não conseguia", conta Ademar.

Unidos pela remoção

As fileiras de casas foram sendo ocupadas aos poucos, com a chegada de famílias removidas de favelas distantes umas das outras. A esposa de Ademar, por exemplo, veio da favela que ficava na Praia de Ramos, na zona norte. Em breve chegaram moradores das favelas do Esqueleto, no Maracanã, e do Morro do Pasmado, em Botafogo, entre outras comunidades.

O Esqueleto, no local ocupado hoje pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), tinha esse nome por ter sido a estrutura de um hospital que nunca foi concluído, e cujo arcabouço, com quatro andares, abrigou mais de duas mil famílias.

Uma delas era a de Assis Braga, de 78 anos, funcionário público aposentado e morador da Vila Kennedy há 53 anos.

Ele fala com saudade da adolescência passada logo ao lado do estádio do Maracanã, "novinho", inaugurado para a Copa do Mundo de 1950.

"Era uma comunidade muito bem formada. Ninguém veio para cá satisfeito, mas não tinha outra saída. Carlos Lacerda tirou todos os moradores de lá", diz Assis, que foi removido aos 25 anos, já casado e pai de quatro crianças.

Assis continuaria a expandir a família na Vila Kennedy, contando hoje 11 filhos, 26 netos, 18 bisnetos e um tataraneto. Foi um dos fundadores da Unidos da Vila Kennedy, escola de samba da comunidade, no final dos anos 60.

Apesar das realizações que teve no âmbito pessoal, considera a Vila Kennedy uma das grandes vítimas do abandono do Rio - um símbolo de promessas não cumpridas e de políticas desiguais para uma cidade desigual.

"Iam fazer fábricas aqui para poder empregar a comunidade, mas nunca aconteceu. Os governos nunca olharam para a Vila Kennedy como deveriam olhar. O Lacerda só olhou pela zona sul. Tirou as favelas de lá mandou os moradores para os subúrbios. Fez aquilo para construir prédios para os que têm dinheiro, tirando a pobreza que estava enfeando", considera. "Tirou os pobres para botar os ricos."

Assis reclama de quem chama o local de "favela". "Nós pagamos todos os tributos que o Estado e o município cobram. Temos coleta de lixo, água, pagamos IPTU. A Vila Kennedy não é favela." No ano passado, a Vila Kennedy foi designada como bairro pelo prefeito Marcelo Crivella - até então, era um sub-bairro de Bangu.

Tráfico e violência

De acordo com o coronel Carlos Cinelli, porta-voz do Comando Militar Leste e do comando conjunto das operações da intervenção, a atuação dos militares na comunidade tem o objetivo de estabilizar a área, tirar a liberdade de circulação de organizações criminosas e permitir a entrada de serviços municipais e estaduais - como o mutirão de ação social realizado no fim de março, com mais de 13 mil atendimentos (de emissão de documentos a vacinação e atendimento odontológico).

A presença dos militares também possibilita que policiais sejam deslocados para fazer módulos de reciclagem, ressalta Cinelli, como parte do esforço para incrementar a capacidade operacional das polícias.

Com a saída de cena dos militares no fim do mês, porém, Cinelli admite que há risco de que as organizações criminosas voltem para as ruas. Ele diz que caberá à Polícia Militar conter esse recrudescimento, mas que as Forças Armadas estarão a postos para voltar se necessário.

"A Vila Kennedy não será abandonada pelas forças de segurança. Vamos somente colocar no papel de polícia aqueles vocacionados para isso", diz.

'A Vila Kennedy era para ser um exemplo'

Maria das Dores Arruda, de 76 anos, conhecida por todos da Vila Kennedy como Dona Fia, também veio da Favela do Esqueleto. Mineira de Barbacena, havia ido morar na favela quando se casou com um carioca. Para ela, a mudança foi bem-vinda. A família morava do lado de um valão, e os filhos, miúdos, desenvolveram bronquite asmática. "Os médicos diziam que eles só ficariam bem quando saíssem de lá, porque a sujeira, a umidade, o ambiente abafado tão perto do esgoto ocasionava o problema", lembra.

A esperança se realizou na saúde dos filhos, que melhorou. "Mas achávamos que teríamos uma vida melhor em tudo. Quando os Estados Unidos deram dinheiro para fazer isso aqui, era para promover um outro tipo de vida. E se não veio, não foi por culpa da comunidade, foi por culpa de quem nos trouxe prometendo uma coisa e não cumpriu", diz Dona Fia.

"Hoje em dia a Vila Kennedy era para ser um exemplo! E é o que está aí agora", lamenta. "Os políticos só vêm aqui pedir voto. Mas graças a Deus eu não voto mais."

A falta de infraestrutura urbana e de empregos na região trouxeram dificuldades e são um problema ainda hoje. E, ao longo do tempo, a violência e o domínio do tráfico se somaram aos problemas estruturais.

De acordo com o aplicativo Fogo Cruzado, nos primeiros cem dias de 2018, a Vila Kennedy teve a terceira maior ocorrência de tiroteios na região metropolitana no Rio, com 63 ocasiões de trocas de tiros ou disparos de armas de fogo. Ao longo do mês de março, mesmo sendo "laboratório" da intervenção federal, houve 22 tiroteios - o quarto maior número entre comunidades com UPPs.

"A presença do Estado está sempre chegando na favela", diz o historiador Mario Brum, com ênfase no gerúndio.

"A situação se repete historicamente. O Estado 'chega à favela' com Lacerda. Depois com (Leonel) Brizola. Depois com Favela-Bairro (programa de urbanização do Cesar Maia). Depois com as UPPs. E agora com a intervenção militar", afirma.

"Os moradores são muito descrentes disso. Já viram esse filme várias vezes. Anuncia-se uma política com muito alarde e pirotecnia. Mas passa-se um tempo e na prática nada muda. É mais um mito", considera o historiador.

Na entrada da Vila Kennedy, Assis comenta sobre os soldados fazendo o patrulhamento de rotina. "Sabemos que isso é temporário. Eles não vão ficar eternamente." Para ele, a comunidade precisa do que sempre precisou: saúde, educação, cultura, creches, serviços médicos.

"Se tivéssemos metade do que os bairros da zona sul têm, seria muito bom para nós. Seria muito bom para toda a cidade", diz Assis.