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Os melancólicos dias finais do Beco das Garrafas, joia da noite carioca onde Elis estreou nos palcos

Vinícius Mendes - Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil

14/07/2018 18h33

Faltavam apenas cinco minutos para o início da apresentação da noite do Little Club, no Beco das Garrafas, em Copacabana, mas ainda sobravam lugares na casa. Desde janeiro, a cantora Sanny Alves senta ali no acanhado palco ao lado do violonista Marlon Mouzer às segundas-feiras para o show "Ela é carioca", que percorre do samba-canção aos clássicos da bossa nova. Entre uma música e outra, ela costuma deixar que o público faça pedidos, conta pequenas histórias do lugar e até entra em conversas paralelas com um ou outro cliente.

Naquela segunda, o Little recebia dois casais estrangeiros, um outro casal de Campinas, um grupo de mulheres que, ao contrário dos demais, assistia à apresentação em silêncio, e a reportagem da BBC News Brasil. Quando os dois funcionários da casa falavam com a cozinha, ao lado do palco, o som de suas vozes arrancava caretas da plateia em direção ao balcão. Segundo os proprietários, o estabelecimento comporta até 45 pessoas sentadas, mas é difícil lotar.

No intervalo entre o Réveillon e o Carnaval, os shows ficam mais concorridos por causa do volume de turistas brasileiros no Rio de Janeiro. Depois, com a baixa frequência de cariocas, as duas casas que funcionam ali - o Little Club e o Bottle's Bar - convivem com alguns poucos estrangeiros apaixonados pela música brasileira.

Naquela noite, Mouzer, gripado, fora substituído pelo violonista Humberto Mirabelli, da banda da também carioca Mart'nália. Era a primeira vez dele na casa e, apesar da sólida carreira, parecia nervoso: no final da apresentação, quando um rapaz insistiu que tocasse Aos pés da cruz, do disco de estreia de João Gilberto, de 1958, ele admitiu que não sabia os acordes da canção de cor.

"Era a mesma coisa com a Elis Regina", lembra Paulo Henrique Vieira, que recebe os clientes na entrada das casas.

Palco para estrelas

Entre as várias glórias do Bottle's Bar está a de ter recebido o primeiro show da vida de Elis, em 1963. Seu produtor e ex-marido, Ronaldo Bôscoli, contava que dizia à jovem cantora que ela só receberia seu cachê se, ao final do show, o público do pequeno estabelecimento a aplaudisse de pé. A casa recebeu as apresentações durante todo aquele ano.

Elis, no entanto, é apenas um dos grandes nomes da música brasileira que iniciaram a carreira nas casas do Beco das Garrafas: nos anos 1960 passavam por ali músicos como Sergio Mendes, Jorge Ben e Wilson Simonal, além de produtores como o próprio Bôscoli e Luís Carlos Miele, que escolheram o Little para seus pocket-shows.

Todos eram atraídos pelo passado do pequeno beco sem nome entre os números 21 e 37 da rua Duvivier, em Copacabana, que havia servido de palco para os grandes nomes do samba-canção, como Marisa Gata Mansa, Altemar Dutra, Sylvinha Telles e Claudette Soares, recebido o último show de Dolores Duran, em 1959, e de ter tirado a bossa nova das pequenas reuniões privadas de Ipanema.

"O Beco foi um espaço de música ao vivo muito conveniente para o samba-canção que então dominava. Todas as cantoras 'modernas' passaram por ele. As pessoas só pensam no Beco como um ambiente da bossa nova, mas, de 1950 a 1960, ele foi um reduto do samba-canção", diz o jornalista e escritor Ruy Castro, autor de Chega de Saudade (Companhia das Letras, 1990) e A noite do meu bem: A história e as histórias do samba-canção (Companhia das Letras, 2015).

"Aquele espaço era um laboratório musical que elevou o patamar da música brasileira. Enquanto o Bottle's Bar tinha uma vocação para a canção, o Little Club era mais para o improviso. No auge, entre 1957 e 1965, era o centro de produção de samba jazz. Posso citar ao menos 40 discos instrumentais incríveis signatários da estética que foi construída ali", completa o jornalista e DJ Marcelo Pinheiro, do blog Quintessência.

A primeira casa do Beco das Garrafas foi o Little Club, aberta pelo italiano Mario Pautasso em 1953. Dizem os relatos da época que os principais nomes do samba-canção saíam de suas apresentações em diferentes partes do Rio de Janeiro e se encontravam na viela para terminar a noite - convivendo com o risco de uma eventual garrafa jogada pelos moradores dos prédios vizinhos cair na cabeça de alguém.

Ruy Castro diz que a ameaça nunca se materializou, mas serviu para dar o apelido famoso ao local.

Dois anos depois, os irmãos - e garçons - Alberico e Giovanni Campana compraram o estabelecimento de Pautasso (que abriria o restaurante italiano La Trattoria ali perto) e fizeram dele um piano-bar. Eles também começaram as outras duas casas, a Bottle's Bar e a Baccarat, em 1955. "As paredes eram tão finas que quando alguém estava tocando em uma, os músicos da outra precisavam parar", conta o atual proprietário do Little Club, Sérgio de Martino.

Foi nesse intervalo de uma década que o Beco explodiu na cena musical do Rio: foi ali que Armando Pittigliani, produtor da gravadora Philips, descobriu o ainda adolescente Jorge Ben tocando violão, que o grupo Bossa Rio, de Sergio Mendes, estreou nos palcos, e que a segunda geração da bossa nova, como Marcos Valle e Edu Lobo, se encontrava entre uma apresentação e outra. A batida entre o samba e o jazz, vale lembrar, completa 60 anos neste mês.

"Às vezes a gente ficava no beco jogando conversa fora com os grupos que estavam esperando acabar uma apresentação para entrar e tocar", conta Bebeto Castilho, contrabaixista, flautista e saxofonista que compunha o Tamba Trio ao lado de Luiz Eça e Hélcio Milito. "Era o único lugar do Rio de Janeiro onde os músicos podiam chegar e tocar", completa.

O Beco, porém, não durou muito tempo: de 1966 em diante, quando a bossa nova já tinha dado lugar à jovem guarda e o pop americano influenciava as composições nacionais, os estabelecimentos fecharam suas portas.

Durante décadas, os outrora perturbados moradores passaram a conviver com os clientes dos shows eróticos do Don Juan, que substituiu o Little Club, e do Baccarat, que manteve suas portas abertas para peças de strip-tease. O Bottle's Bar ficou fechado até meados dos anos 2000.

"Vinha um monte de homem aí atrás de sacanagem. Era melhor quando tinha só música", resmunga Benedito, garçom do boteco Atalaia, do outro lado da rua Duvivier, em frente à viela.

Para Ruy Castro, a culpa da ruína do Beco das Garrafas é de Roberto Carlos e sua turma. "O iê-iê-iê tornou impraticável e matou aquele tipo de música que se fazia no Brasil", sentencia.

Pinheiro adiciona outro elemento para o fim das casas: o golpe militar de 1964. "A música brasileira perdeu a conotação idílica e contemplativa pela necessidade de tornar a canção um veículo de protesto, a chamada música de participação", relembra.

Os retornos do Beco

Em 1998, o empresário Sérgio de Martino, que tinha sido caixa do Little Club nos anos 1970 e depois comprou a propriedade onde já funcionava o Don Juan, na década de 90, tentou trazer a casa de volta à vida: encerrou o contrato com os inquilinos e, com a ajuda do compositor e produtor Durval Ferreira, reabriu o estabelecimento.

O negócio, porém, durou dois anos. Martino guarda até hoje um recorte de jornal em que Luiz Paulo Conde, então candidato à Prefeitura do Rio de Janeiro, prometia revitalizar o Beco. "Ficou na 'garganta'", lamenta.

Em novembro de 2014, Amanda Bravo, produtora e filha de Durval, falecido em 2007, convenceu Martino a tentar outra vez: eles alugaram o imóvel onde funciona hoje apenas o Bottle's Bar (sem divisórias com a antiga Baccarat) e, ao lado do Little Club e de uma livraria especializada inaugurada na esquina, promoveram a volta do Beco nos jornais da cidade.

Para a inauguração, na noite de Réveillon, chamaram a cantora Elza Soares, que só aceitou se apresentar se alguém se responsabilizasse por levá-la ao seu apartamento, na esquina da avenida Atlântica com a rua Santa Clara, antes da meia-noite.

"Faltavam dez minutos para a virada e eu estava no carro com ela, a multidão furiosa batendo na lataria, quando a Elza saiu na janela e gritou: 'Saiam da frente! Preciso voltar para casa'", recorda Martino. Foi o maior público da história recente do Beco.

À época, uma cervejaria topou financiar o empreendimento por dois anos, mas quando o contrato acabou, não quis renovar. Desde então, as casas seguem em funcionamento, mas com os dias contados. "Estou pagando do meu bolso para deixá-las abertas", conta Martino.

Segundo ele, se a frequência continuar baixa, ele será obrigado a fechar as portas do Bottle's e do Little daqui alguns meses. O deficit mensal é de R$ 10 mil. "Tem meses que a coisa anda, mas a gente está resistindo para não fechá-las", admite.

"Não vejo como estabelecimentos como este possam sobreviver sem gente bebendo, daí a decadência deles no mundo todo, inclusive em Londres", lamenta Ruy Castro. "O público do Beco ficou nos anos 1960", concorda Bebeto Castilho.

Para Martino, o problema não é a bebida, mas a falta de conhecimento que a nova geração tem sobre o Beco das Garrafas. A maioria do público é formada por estrangeiros e, quando não, os clientes são os poucos turistas brasileiros que sabem a história do lugar. "Dificilmente a gente vê cariocas aqui", concorda Sanny Alves.

Para atrair mais gente, além das tentativas de encaixar uma menção em alguma reportagem de jornal ou de fechar pacotes com agências turísticas, há o trabalho incansável de resgatar as pessoas que já passaram pelas casas da famosa viela.

Martino, por exemplo, diz que João Gilberto e Tom Jobim tocaram no Little Club, mas a informação é contestada por Ruy Castro e Marcelo Pinheiro.

"Esses gigantes nunca se apresentaram no Beco", afirma Ruy. "A bossa nova já estava consolidada e a carreira dos dois já era consagrada em âmbito internacional no auge do Beco", concorda Pinheiro.

Bebeto, porém, conta que viu Tom no Bottle's Bar uma única vez, em 1963: ele foi acompanhar um show do Bossa Rio, de Sergio Mendes, porque estava escrevendo os arranjos do álbum Você Ainda Não Ouviu Nada, um dos pilares do samba-jazz. "Ele chegou a tocar naquele dia", revela.

Segundo o contrabaixista do Tamba Trio, o poeta e compositor Vinícius de Moraes também frequentava as noites do Beco.

Martino também desconfia que Bob Dylan esteve nas casas, mas a história é mais uma dentro da disputa pelas presenças ilustres.

"Se Bob Dylan esteve no Beco foi nos anos 1980 ou 1990, no tempo em que só tinha show de sacanagem", ironiza Ruy. "Quando a carreira do Dylan se consolidou no circuito folk dos Estados Unidos, entre 1963 e 1964, ele provavelmente nem saiu dos Estados Unidos, e era a mesma época do auge do Beco. Acho que essa história é um delírio", também desconfia Pinheiro.

Ao final do show daquela segunda-feira, Sanny Alves sentou em uma das mesas vazias postas na viela e acendeu um cigarro. Já era madrugada em Copacabana e, apesar da distância, dava para ouvir um resto de barulho do mar. Quando os poucos clientes acabaram de sair, ela olhou para o alto e, diante das janelas apagadas, comemorou: "Nenhuma garrafa foi jogada hoje".