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O que é a 'finlandização' e como ela explica a escolha do local do encontro

"O mundo quer que a gente se dê bem", disse Trump antes de encontro  - EPA/ALEXEY/NIKOLSKY SPUTNIK/KREMLIN
'O mundo quer que a gente se dê bem', disse Trump antes de encontro Imagem: EPA/ALEXEY/NIKOLSKY SPUTNIK/KREMLIN

Ángel Bermúdez

Da BBC News Mundo

16/07/2018 09h45

Nem Washington, nem Moscou. Os presidentes dos Estados Unidos, Donald Trump, e da Rússia, Vladimir Putin, escolheram Helsinque, na Finlândia, para a primeira cúpula oficial bilateral desde que o americano chegou à Casa Branca.

Os líderes, contudo, não estão inovando ao escolher a capital da Finlândia como ponto de encontro. Desde 1975, Helsinque tem sido cenário de importantes reuniões internacionais, das quais já participaram nações rivais e até mesmo outros mandatários dos dois países, justamente pela estratégia adotada por décadas pela Finlândia para evitar conflitos políticos e militares com potências mundiais - que atraiu polêmica no passado e ficou conhecida como "finlandização".

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O encontro de Trump e Putin nesta segunda-feira, 16, ocorre em um momento de estremecimento entre a relação de Rússia e EUA, em especial depois das críticas constantes de Trump à Otan, a aliança militar ocidental, e da atitude contraditória do americano em relação ao Kremlin.

Donald Trump tuitou na manhã desta segunda-feira, 16, dizendo que os laços com a Rússia "nunca foram piores" e culpou "anos de tolices e estupidez" dos EUA pela má relação. Já em Helsinque, pouco antes do encontro, Trump disse: "O mundo quer que a gente se dê bem, somos duas potências nucleares. Temos 90% das armas nucleares do mundo e isso não é uma boa coisa."

Na semana passada, em Bruxelas, Trump disse que Putin ainda não era um amigo, mas também não o vê como inimigo. O americano chamou o russo de "competidor". "Espero que, algum dia, talvez ele seja um amigo. Pode acontecer, mas eu não o conheço muito bem", declarou Trump.

Durante a campanha eleitoral em 2016, contudo, Trump elogiou Putin várias vezes. Os russos são suspeitos de terem interferido na eleição presidencial dos EUA, acusação que rechaçam. Trump classifica de "caça às bruxas" a investigação, que culminou com 12 russos formalmente acusados pelo Departamento de Justiça americano na semana passada por terem promovido ataques cibernéticos em março de 2016 nas contas de email da equipe da campanha presidencial de Hillary Clinton. Os emails foram amplamente usados por Trump durante a eleição.

Em plena Guerra Fria, o presidente americano Gerald Ford e o líder soviético Leonid Brezhnev participaram da Conferência de Helsinki em 1975  - GETTY IMAGES - GETTY IMAGES
Em plena Guerra Fria, o presidente americano Gerald Ford e o líder soviético Leonid Brezhnev participaram da Conferência de Helsinki em 1975
Imagem: GETTY IMAGES
Mas, em março, Trump, assim como líderes de dezenas de países, decidiu expulsar diplomatas russos depois que o Reino Unido acusou o governo russo de estar por trás do envenenamento de um ex-espião duplo na Inglaterra. E, em abril, o americano criticou Putin publicamente pelo apoio à Síria após um ataque com armas químicas supostamente realizado por forças leais a Damasco.

A data da reunião de Trump com Putin foi anunciada com apenas três semanas de antecedência, o que é atípico para esse tipo de cúpula. Segundo especialistas, isso explica, em parte, o motivo pelo qual Helsinque foi escolhida como local do encontro.

"Logisticamente é um bom lugar, perto de Moscou, e casava com a viagem de Trump pela Europa", avalia Alpo Rusi, professor de Relações Internacionais e ex-diplomata finlandês.

No entanto, por trás da escolha da Finlândia também há importantes antecedentes históricos - e a chamada "finlandização", o modelo de política externa em que acordos e concessões comerciais com a União Soviética permitiram que o país se mantivesse neutro - e fora do lado "socialista" da Cortina de Ferro.

De Helsinque a Helsinque

A capital da Finlândia ganhou pela primeira vez um lugar de destaque nos cenários de encontros internacionais em 1975, quando foi sede da conferência de Segurança e Cooperação na Europa e, em meio à Guerra Fria, conseguiu reunir mais de 30 nações de países socialistas e capitalistas - opositores na Guerra Fria.

Helsinque também foi sede de outras reuniões entre líderes da Rússia e dos EUA. Em 1990, George Bush e o último líder da União Soviética, Mikhail Gorbachev, se encontraram para discutir a invasão do Iraque no Kuwait.

Sete anos depois, em 1997, Helsinque sediou um encontro entre o americano Bill Clinton e o russo Boris Yeltsin para debater sobre a ampliação da Otan - que passaria a incluir países pertencentes à então extinta União Soviética.

George H.W. Bush e o último lidere da União Soviética, Mijaíl Gorbachov, se reuniram na Finlândia em 1990  - GETTY IMAGES - GETTY IMAGES
George H.W. Bush e o último lidere da União Soviética, Mijaíl Gorbachov, se reuniram na Finlândia em 1990
Imagem: GETTY IMAGES
"Helsinque tem sido sede de várias reuniões de alto nível entre Rússia e Estados Unidos", comenta Charly Salonius-Pasternak, pesquisador do Instituto Finlandês de Relações Internacionais. "É um lugar fácil para chegar e reunir. Por parte do anfitrião, as coisas estarão bem organizadas e (conversas) serão mantidas em sigilo."

O que permitiu a capital finlandesa ser um ponto de encontro dessas potências foi a relação complexa entre Helsinque e Moscou, moldada desde o final da 2ª Guerra e nos primeiros anos da Guerra Fria.

Entre suecos e russos

A Finlândia compartilha uma fronteira de mais de 1,3 mil quilômetros com a Rússia, um país cuja população é 26 vezes maior e cujo território, 50 vezes.

Desde o século 13, o território vinha sendo disputado por russos e suecos. Foram ocupados - e cristianizados - pelos suecos, até a invasão e anexação pelos russos no início do século 19. Em 1917, o país declarou a independência.

No início da 2ª Guerra Mundial, a União Soviética invade a Finlândia, que resiste, mas acaba sendo perdendo parte do território.

Segundo o historiador britânico Geoffrey Roberts, essa perda levou o governo finlandês a se aliar com a Alemanha contra Moscou. A decisão custou milhares de vidas e colocou em perigo a existência da Finlândia.

No inverno de 1939, Finlândia e União Soviética lutaram por território  - GETTY IMAGES - GETTY IMAGES
No inverno de 1939, Finlândia e União Soviética lutaram por território
Imagem: GETTY IMAGES
"Entre 1944 e 45, o Exército Vermelho poderia ter ocupado a Finlândia, mas (Josef) Stálin preferiu não fazê-lo, principalmente porque líderes finlandeses admitiram o erro e prometeram neutralidade e amizade à União Soviética", escreveu Geoffrey Roberts em um artigo publicado no jornal britânico The Guardian, em fevereiro passado.

"A 'finlandização', como foi chamada, permitiu a Finlândia permanecer livre da dominação soviética e a livrou de ser tomada pelo comunismo", explicou Roberts.

Mas o que é exatamente 'finlandização'?

O pesquisador Salonius-Pasternak diz que depois da 2ª Guerra Mundial e dos confrontos anteriores com Moscou, os finlandeses identificaram a necessidade de convencer a União Soviética de que não eram uma ameaça à potência. "Algo que, evidentemente, não eram", assinala o pesquisador.

Assim, a Finlândia se manteve neutra em assuntos geopolíticos - e na sua política externa. Ela não se juntou à Otan, nem ao chamado Pacto de Varsóvia, a aliança militar formada em 1955 pelos países socialistas do Leste Europeu e pela União Soviética.

Helsinque, no entanto, não conseguiu evitar a constante supervisão soviética cada vez que o governo finlandês formava uma nova coalização - Moscou sinalizava se era a favor ou não do arranjo político no país nórdico.

"A lógica era: se permitimos essas pequenas interferências, a Finlândia vai ser capaz de manter sua independência e se concentrar economicamente em relação ao Ocidente. Em Helsinque, isso era visto como um conjunto de políticas muito pragmáticas, um jogo de equilíbrios", explica Salonius-Pasternak.

Urho Kekkonen, que governou a Finlândia entre 1956 e 1982, aparece ao lado do premier soviético Nikita Kruschev   - GETTY IMAGES - GETTY IMAGES
Urho Kekkonen, que governou a Finlândia entre 1956 e 1982, aparece ao lado do premier soviético Nikita Kruschev
Imagem: GETTY IMAGES
Essa disposição de acomodar, de alguma forma, as preferências soviéticas em sua política interna foi batizada por acadêmicos alemães de "finlandização". O termo passou a ser usado para se referir ao processo em que um país, com o objetivo de manter sua soberania, opta por não enfrentar ou desagradar um vizinho mais poderoso. E o uso desse termo sempre teve um caráter depreciativo.

"A finlandização tinha duas caras: em um lado, estava a necessidade de uma nação pequena de ter uma política que não estivesse em conflito com a superpotência vizinha", assinala o ex-diplomata finlandês Alpo Rusi, que foi assessor político do presidente Martti Ahtisaari (1994-1999). "No outro, estava a pressão constante por parte da União Soviética, que nem todos da elite política estavam dispostos a enfrentar, o que fez com que alguns se tornassem colaboradores da URSS. Havia uma aceitação desnecessária de exigências russas."

Mas essa controversa política chegou ao fim quando a Guerra Fria acabou.

"A Finlândia abandonou a neutralidade e, para ela, é importante pertencer ao Ocidente e não estar mais entre o Ocidente e a Rússia. É importante ser parte da União Europeia, bloco ao qual foi incorporada em 1995", explica Anna Wieslander, diretora no Atlantic Council, um centro de estudos sobre relações internacionais com sede em Washington.

Apesar de ser contra a anexação da Crimeia ao território russo, o presidente Finlândia, Sauli Niinisto, não interrompeu os encontros com Vladimir Putin  - GETTY IMAGES - GETTY IMAGES
Apesar de ser contra a anexação da Crimeia ao território russo, o presidente Finlândia, Sauli Niinisto, não interrompeu os encontros com Vladimir Putin
Imagem: GETTY IMAGES
A especialista afirma que Helsinque deu uma guinada se afastando da finlandização, ainda que ainda preserve alguns elementos dessa política que marcou a relação do país com os soviéticos.

"Acho que o que restou dessa política foi a capacidade de entender a Rússia e ter bons contatos com ela nos níveis mais altos, mesmo em momentos em que a situação no Báltico e a segurança na região tenham piorado nos últimos anos", afirma Wieslander.

A aplicação desse aprendizado é evidente na relação que o atual presidente da Finlândia, Sauli Niinisto, mantém com Vladimir Putin.

Desde que a Rússia anexou a Crimeia - território da Ucrânia -, em 2014, ato condenado pela comunidade internacional, o mandatário finlandês já se reuniu com Putin pelo menos cinco vezes.

"Ele tem sido repreendido por ser um dos poucos líderes ocidentais que tem continuado a se encontrar com Putin", avalia Salonius-Pasternak.

"A lógica dele é: nós não aprovamos o que aconteceu, não estamos de acordo e podemos dizer isso numa discussão franca. Mas isso só é possível se a outra parte confia em você ao menos para manter um diálogo."

Foi esse canal aberto entre Finlândia e Rússia que permitiu o encontro entre Putin e Trump em Helsinque.