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'Se continuar assim, até fim do ano perdemos o controle da cidade', diz prefeita de Boa Vista, cidade que mais recebe venezuelanos

Teresa Surita, prefeita de Boa Vista - Andrezza Mariot/Divulgação
Teresa Surita, prefeita de Boa Vista Imagem: Andrezza Mariot/Divulgação

Leticia Mori - Da BBC Brasil em São Paulo

14/08/2018 11h18

Se o governo federal não ampliar o plano de distribuir imigrantes venezuelanos para outras cidades, a prefeitura de Boa Vista, a capital de Roraima, diz que "até o fim do ano, perderá o controle da cidade".

O alerta foi feito à BBC News Brasil pela prefeita da cidade, Teresa Surita.

O número de pessoas fugindo da grave crise econômica na Venezuela colocou o país em quarto lugar na lista da ONU de nacionalidades que mais pedem refúgio no mundo. O país, cuja população sofre com hiperinflação, escassez de produtos de primeira necessidade e violência, só fica atrás do Afeganistão, da Síria e do Iraque.

A agência de refugiados ONU, a Acnur, estima em 1,5 milhão o número de venezuelanos que deixaram o país nos últimos anos.

No Brasil, o principal fluxo de imigrantes venezuelanos é em Roraima, um dos dois Estados que têm fronteira com o país. Cerca de 30 mil deles estão em Boa Vista, cidade de apenas 300 mil habitantes, bastante isolada do resto do país e que "não tem dinheiro nem estrutura" para lidar com a situação sozinha, segundo Teresa Surita.

Com o número de imigrantes chegando a 10% da população, os serviços públicos estão sobrecarregados. Os postos de saúde acumulam longas filas e as escolas estão lotadas. Há quase 2 mil imigrantes morando na rua.

A crise tem gerado reclamações dos moradores e casos de violência e xenofobia contra venezuelanos.

A prefeita diz que a ajuda do Governo Federal não é suficiente e que a única forma de resolver a situação é ampliar a chamada interiorização - medida anunciada pelo Governo Federal para realocar imigrantes em outros lugares do país, mas que até agora, segundo Surita, só tirou 820 pessoas da cidade.

"Isso não é um problema municipal, é um problema federal, e ele tem que ser dividido com o resto do país", afirma ela.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - Quais os números hoje em Boa Vista e como a cidade está sendo afetada?

Teresa Surita - Não sabemos exatamente quantas pessoas há porque o fluxo é muito grande. Chegamos a um número estimado, em junho deste ano, de 8% da população: 25 mil pessoas. Dessas, 2,3 mil estavam morando na rua. Isso tem muitos desdobramentos e interfere no dia a dia da cidade. A gente está fazendo a limpeza de 64 pontos na cidade onde eles estão instalados, pedindo esmola. A gente está atendendo as pessoas no hospital, nas unidades de saúde, nas escolas. Mas chegou um ponto em que a gente tá precisando realmente de reforço. Hoje já devemos ter passado de 30 mil pessoas.

Na Colômbia, a chegada das pessoas é por sete pontos ao longo da fronteira. Aqui, só temos uma entrada e uma cidade, que é Boa Vista, uma cidade de 300 mil habitantes. Não temos como assumir esse problema. Não temos nem dinheiro nem estrutura para isso. O que temos certeza é que, se continuar como está, até o fim do ano nós perdemos o controle da cidade.

BBC News Brasil - O que isso quer dizer?

Surita - Não vamos dar conta de atender todo mundo nas unidades de saúde, não vamos conseguir colocar as crianças na escola, vamos ter pessoas dormindo nas ruas em um número tão alto que você não vai mais ter como trabalhar. Hoje você não resolve, enxuga gelo todo dia, mas administra. Se continuar nesse crescente você não tem como continuar mantendo nem isso. Porque o nosso problema não é mais abrigamento, a gente já tem dez abrigos, mas chegam mais pessoas do que a gente dá conta de construir. E as pessoas chegam precisando de atendimento médico, de remédio - nosso hospital está lotado. As crianças precisam de alimentação. Existe uma crise humanitária por trás dessa situação. Então precisamos de ajuda.

BBC News Brasil - O governo federal não está assumindo seu papel?

Surita - O governo federal perdeu o papel que vinha tentando assumir. Perderam a noção (do que precisa ser feito) e deixaram de fazer. Eles vieram para cá com uma medida provisória, em fevereiro, para fazer abrigamento, hospital de campanha e interiorização. O abrigamento foi melhor do que eu imaginava, mas o hospital de campanha não aconteceu e a interiorização também não.

BBC News Brasil - A interiorização foi uma das principais medidas anunciadas para resolver a crise...

Surita - Não está acontecendo. A gente está no hemisfério norte, na capital mais distante do Brasil. Aqui você entra e não tem como sair. De estrada você chega até Manaus, mas para ir até Belém precisa pegar uma balsa. Então as pessoas acabam ficando aqui, porque é muito caro sair. E 73% da população que entra quer sair, mas não tem condições. A interiorização só acontece se a Acnur (Alto Comissariado da ONU para Refugiados) aprovar. As regras que eles colocam é [de levar para o resto do país] as pessoas com maior escolaridade, menos doentes. Ela precisam ir para um lugar onde elas sejam abrigadas e tenham trabalho. Só que isso impossibilita, porque a maioria dos Estados e municípios não aceita receber essas pessoas. Então você ouve que foram cem pessoas para Brasília. Sim, mas aqui entram 500 por dia. Sabe quantas pessoas que foram realocadas desde que começou a interiorização, em fevereiro, até hoje? 820.

BBC News Brasil - Esse número de 73% que querem sair veio de onde?

Surita - É um número da própria Acnur. E a gente comprova no nosso mapeamento. Eles querem seguir, mas não têm como. Eles preferem países que falam espanhol, que é a língua deles. Então eles irem para outros países ajudaria muito. Ou irem para um lugar que tem emprego.

BBC News Brasil - O Governo Federal diz que tem repassado dinheiro. Em abril, a Casa Civil disse que foram R$ 78 milhões repassados para Boa Vista, para incrementar o atendimento em saúde. E que repassou R$ 793 mil para abrigos e 82 toneladas de alimentos. Isso não é suficiente? Como foi usado o dinheiro?

Surita - Nós [o município de Boa Vista] não recebemos um tostão (desses valores). R$ 793 mil para o abrigo não é nada e esse valor não vem para a prefeitura. Todo o recurso para abrigamento é para o Exército. Eu já gastei de recurso próprio mais de R$ 1 milhão. Para limpeza da cidade, para o atendimento assistencial, para ajudar o Exército na montagem dos abrigos - com iluminação pública, terraplanagem, drenagem pra poder instalar. O que eu recebi foi um [outro] dinheiro, que ainda não foi totalmente liberado, para comprar 50 salas de aula provisórias - que estamos no processo de compra.

BBC News Brasil - E os R$ 78 milhões para a saúde?

Surita - Não sei como o governo está fazendo essa contabilização. Não posso dizer que nunca chegou porque não sei se o governo do Estado recebeu. Mas a prefeitura não recebeu. A gente não recebe dinheiro, e eu nunca pedi dinheiro também. O que eu quero, na verdade, é o apoio para dar conta dessa situação.

BBC News Brasil - E qual seria a solução?

Surita - A única forma de resolver, de nos ajudar hoje é diluir esse número de pessoas para fora daqui. E isso não é xenofobia, isso é para poder atender as pessoas de uma forma decente. Isso não é um problema municipal, é um problema federal, e ele tem que ser dividido com o resto do país. Porque os abrigos não estão mais dando conta. Há muita gente do lado de fora, em barracas, pessoas que não têm nada. E dentro dos abrigos, temos uma série de dificuldades. Por exemplo, é muito comum você encontrar criança com diarreia, há o problema do surto de sarampo.

BBC News Brasil - É possível realmente atribuir os surtos à entrada das pessoas?

Surita - Elas que trouxeram. Isso foi comprovado, porque era uma doença erradicada no Brasil. Não é que as taxas da nossa vacinação são deficitárias. A Colômbia está tendo o mesmo problema. O problema é que as pessoas já chegam com a doença. E você tem que tratar aqui. Hoje aumentou o número de sarampo, temos 268 casos notificados, 80 sendo investigados e 148 casos confirmados.

BBC News Brasil - Elas não poderiam ser vacinadas?

Surita - A gente tem batido muito na tecla da vacinação na fronteira. Mas a gente vai vacinar na fronteira e não é obrigatório. Então as pessoas atravessam e vacina quem quer. Aí para ser feita a interiorização, é obrigada a vacinação, mas para chegar aqui não é.

BBC News Brasil - A prefeitura pediu para o governo federal para que a vacinação seja obrigatória?

Surita - O governo brasileiro é soberano para exigir isso ou não. Então é uma decisão do governo. Eu fiz o pedido para o presidente (Michel Temer), para o ministro anterior (José Serra, da pasta de Relações Exteriores), para o ministro atual (Aloysio Nunes), para Acnur, para quem você imaginar. Eles dizem que é justo, que precisa ser feito. Mas não acontece.

BBC News Brasil - Na prática isso não ia impedir as pessoas de entrar?

Surita - Temos um posto da Anvisa na fronteira, que poderia vacinar quem quer entrar.

BBC News Brasil - A solução de levar as pessoas para os outros Estados não seria só empurrar o problema? Porque outros lugares teriam mais condição de receber?

Surita - Qualquer lugar tem mais oportunidade do que Boa Vista. Aqui nós não temos indústria. Não tem geração de emprego. A gente não tem energia, a nossa energia vem da Venezuela, a gente sofre queda de energia todo dia. Hoje estamos sem internet. Se a gente tivesse emprego, a imigração não seria um problema, porque temos poucas pessoas vivendo aqui.

Eu não sei mais o pensar, o que oferecer. Eu conversei com o presidente, conversei com o (ministro da Casa Civil Eliseu) Padilha que precisamos urgente de uma solução. Ele disse: estamos falando com todos os Estados, mas ninguém quer receber. Só que [essa resposta] não é uma solução. E a gente não tem escolha.

BBC News Brasil - Qual sua posição em relação ao fechamento da fronteira?

Surita - A posição não é a favor ou contra o fechamento. É o que pode e o que não pode. Somos um país democrático. Temos acordos internacionais, somos signatários de um processo global de receber os imigrantes. É um discussão que não cabe a nós. O que que a prefeita de Boa Vista pode opinar nisso? Se o Brasil é signatário e temos que receber essas pessoas, precisa ter a estrutura para isso. Outra coisa: como que a gente vai fechar a fronteira para essa miséria dessas pessoas que chegam. É uma crise humanitária. Você não vai ser humano nessa situação?

BBC News Brasil - Há quem defenda.

Surita - O que acontece com as pessoas que estão aqui, num Estado isolado, longe de tudo, com dificuldade de sair... Elas estão se sentindo agredidas, porque elas estão vendo o número de pessoas que chega todos os dias, ficando nas ruas... Você já não consegue ir em alguns lugares da cidade, porque só têm pessoas pedindo. Por exemplo, você vai ao banco ou no supermercado e tem dezenas, centenas de pessoas na porta. É natural essa reação, que não é uma reação de xenofobia, é uma reação de: "gente, alguém tem que fazer alguma coisa".

BBC News Brasil - Você disse que não é uma questão de xenofobia, mas já houve vários casos de violência contra Venezuelanos.

Surita - Você tem casos. Mas uma pesquisa da Acnur mostra que você tem 28% de violência, mas 60% de solidariedade. Então você vai encontrar as duas coisas, mas a xenofobia e a violência em um número menor - por enquanto. Temos feito o que a gente pode. Por exemplo, nós não separamos (as pessoas no atendimento do serviço público). A ordem é: nenhuma agressão, a gente vai atender no serviço de saúde, não tem fila separada, toda criança que precisar ser matriculada vai ser matriculada, não vai ter sala separada.

BBC News Brasil - Há brasileiros que ficam sem atendimento?

Surita - Já acontece. Principalmente na saúde. Então a fila tá muito grande, se tiver que sobrar, vai sobrar brasileiro e venezuelano. E é onde eles reclamam, entendeu? Então um caso gravíssimo que aconteceu foi do nascimento de uma criança, e a mãe, venezuelana, ocupou um leito do hospital. E uma brasileira chegou e queria tirar a venezuelana, porque ela se acha no direito de ocupar aquele leito. É muito complicado.

BBC News Brasil - Ouvindo relatos da situação tem-se a impressão de que todo mundo que entra é muito pobre, com baixa escolaridade e necessidade de assistência. Mas um estudo da FGV apontou que os venezuelanos não indígenas que migram para Boa Vista tem uma média educacional maior do que a população local.

Surita - Muito pouco. A maioria das pessoas que ficam aqui tem nível básico de ensino ou não tem formação. São pessoas que o serviço público tem que atender. As pessoas que tem mais escolaridade vão para outros lugares. Elas têm condição de entrar e comprar uma passagem. Um caso que acompanhei foi de um advogado que chegou e foi ser estagiário num escritório. Ele ganhava um salário mínimo por mês. Ele juntou, comprou passagens e foi embora para o Paraná com a família.

BBC News Brasil - E qual a perspectiva em relação à eleição?

Surita - É o que mais me preocupa. Daqui a seis meses sai o presidente, esses abrigos que oferecem três refeições diárias vão acabar. Como vamos ficar? Tanto no governo do Estado, como no governo Federal, com troca de ministros, tem uma parada natural. E aqui as pessoas estão chegando... e a crise na Venezuela não vai terminar.