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Moradores fazem 'carreata da Paz' em Pacaraima, mas tensão entre brasileiros e venezuelanos continua

20.ago.2018 - Moradores dirigem por Pacaraima gritando "Nós queremos paz". As tensões entre brasileiros e imigrantes venezuelanos aumentaram na cidade de fronteira - Mauro Pimentel/AFP
20.ago.2018 - Moradores dirigem por Pacaraima gritando "Nós queremos paz". As tensões entre brasileiros e imigrantes venezuelanos aumentaram na cidade de fronteira Imagem: Mauro Pimentel/AFP

Júlia Dias Carneiro - Enviada especial da BBC News Brasil a Pacaraima

21/08/2018 05h42

"Foi muito chocante o que aconteceu. Nenhum ser humano pode ser tratado assim. Graças a Deus ninguém morreu, mas vimos pessoas feridas, muitas mulheres maltratadas, crianças maltratadas."

A venezuelana Yurbis Pinto, de 37 anos, começava seu desabafo sobre as agressões sofridas no sábado por imigrantes venezuelanos em Pacaraima, em Roraima, quando foi abruptamente interrompido por um morador da cidade, interrompendo a entrevista com a BBC News Brasil no meio da rua.

"Ninguém maltratou 'niño'! Isso é mentira. Eles falam o que querem, inventam, e depois todo mundo acredita", disse o homem, que aparentava seus 60 anos e passou a agredi-la verbalmente.

A venezuelana continuou a tentar falar, e o brasileiro continuou a desautorizá-la. Logo todos aglomerados em volta - reunidas do lado de fora do ginásio esportivo no centro de Pacaraima - estavam engajadas no embate, alguns para inflamar, outros empenhados em apartar.

A polícia chegou para evitar que o bate-boca degringolasse. A cidade passara uma segunda-feira calma depois de um fim de semana tenso entre brasileiros e venezuelanos - mas não precisou muito para expor a ferida, como constatou a reportagem da BBC News Brasil logo em sua chegada a Pacaraima, cidade fronteiriça 215 km ao norte de Boa Vista.

O episódio se deu na noite de segunda-feira, após a realização da chamada "Carreata da Paz". Cerca de 25 carros circularam pela cidade escura no início da noite, por volta de uma hora, promovendo um buzinaço e sacudindo bexigas brancas para fora da janela, um carro de som à frente, tocando o hino nacional. A maioria era brasileira, mas alguns venezuelanos participaram.

A professora e organizadora do evento Neura Costa puxava a fila no primeiro carro, discursando no microfone: "Os venezuelanos têm, sim, lugar aqui no Brasil. Eles merecem oportunidades de recomeçar a sua vida. É muito triste o que está passando na Venezuela. Vocês são seres humanos como nós. E nós vamos ajudar. Mas não à violência. Não vamos aceitar. Brasileiros e venezuelanos! Vamos vigiar o nosso município, vamos vigiar o nosso Estado, vamos ser felizes, vamos criar a nossa família com dignidade e respeito."

Neura proclamou que "Pacaraima pede paz", e disse não haver xenofobia na cidade, e sim uma crise que vinha se agravando e clamava por uma reposta do Estado há muito tempo. "Precisou acontecer tudo isso para alguém vir aqui e ver a situação que estamos passando."

Novos imigrantes

Depois dos protestos violentos de sábado, em que manifestantes se agruparam, expulsaram venezuelanos de locais onde acampavam nas ruas e queimaram seus poucos pertences, não há vestígios do ocorrido nas calçadas.

Na segunda, bombeiros limparam as vias e retiraram as cinzas e restos dos objetos incendiados.

Tampouco há venezuelanos acampados nas ruas. Porém, muitos dos que deram marcha a ré para cruzar a fronteira para casa no sábado voltaram, e muitos outros continuam vindo, e em números tão ou mais altos que antes, com a chegada de 800 imigrantes no domingo, contra uma média usual de cerca de 500 ao dia.

A venezuelana Yaneth Alfonzo, de 31 anos, escolheu justo o sábado de manhã para entrar no país. Estava chegando na fronteira com sua sobrinha e levou um susto por ter sido barrada no controle. Achou que autoridades estatais haviam enfim logrado fechar as fronteiras. Mas viu pessoas vindo na direção oposta, com malas, sacos de comida na cabeça, muitos chorando, e soube das agressões.

"Fiquei muito espantada. Mas depois entendi que a maioria dos brasileiros apoiam que fiquemos. Agradecemos tudo que fazem por nós", diz. "Ninguém está aqui porque quer invadir um outro país. Estamos aqui pela situação econômica do nosso país, que nos fez sair de nossas casas e migrar para buscar uma vida melhor para poder ajudar as nossas famílias que ficaram lá."

Na noite de sábado, ônibus carregados com 60 homens da Força Nacional de Segurança (FNS) chegaram a Pacaraima, enviados pelo governo federal para buscar manter a situação na cidade sob controle. O governo prometeu enviar mais 60 agentes da FNS para a cidade.

Refúgio de venezuelanos

Nos últimos três anos, de acordo com a ONU, 2,3 milhões de venezuelanos deixaram o país, fugindo sobretudo da falta de alimentos e medicamentos no país - em que uma mala de dinheiro não compra mais do que um frango.

Só no primeiro semestre deste ano, mais de 56.740 venezuelanos solicitaram refúgio ou residência temporária no Brasil.

No período, mais de 16 mil venezuelanos chegarem a Roraima pedindo refúgio, 20% a mais do que em todo o ano de 2017.

Na segunda-feira, a pressão para fechar temporariamente a fronteira voltou às manchetes após o governo de Roraima solicitar mais uma vez que o STF aja para suspender a imigração na fronteira com o país comandado por de Nicolás Maduro. No início deste mês, a ministra Rosa Weber já negara a possibilidade.

O ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Sérgio Etchegoyen, disse que a possibilidade é "impensável e "ilegal". "Nós temos que cumprir a lei. A lei brasileira de imigração determina o acolhimento de refugiados e imigrantes nessa situação", afirmou.

Acredita-se que, com o agravamento da situação econômica no país, onde o governo lançou, na segunda-feira, uma nova moeda - o bolívar soberano -, para tentar conter a hiperinflação, o fluxo de imigrantes não deve arrefecer a curto prazo.