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Como a polêmica do aborto está levando católicos a pedirem desligamento oficial da Igreja na Argentina

Marcia Carmo - De Buenos Aires para a BBC News Brasil

De Buenos Aires para a BBC News Brasil

29/08/2018 11h16

Batizada na Igreja Católica, a assistente de informática Silvia Mollo, de 63 anos, está entre os muitos argentinos que entraram neste mês com pedido na Arquidiocese de Buenos Aires para se desligar oficialmente da instituição religiosa.

Mollo diz que passou a "duvidar" da Igreja nos últimos tempos, após o que considera uma falta de providências diante de denúncias de abusos sexuais envolvendo sacerdotes. "Além de ser batizada, fiz minha crisma há apenas quatro anos. Mas agora mudei de ideia. Não podemos mais admitir estes abusos sexuais e ver que a cúpula da Igreja não faz nada", afirma.

A maioria das pessoas que deixam de ser católicas simplesmente param de frequentar a Igreja, mas um grupo de argentinos está fazendo pedidos formais para se desligar oficialmente como forma de protesto. A solicitação é para que os dados da pessoa sejam retirados dos livros da instituição. "O sistema passou a ser perverso", diz Mollo à BBC News Brasil.

Mãe de três filhos, a assistente de informática diz que a posição do papa sobre a discussão sobre a legalização do aborto na Argentina "foi a gota d'água" para sua decisão. "É preciso ter misericórdia, compreensão com as mulheres que abortam porque necessitam abortar, e não porque querem", afirma.

Em junho passado, após a aprovação na Câmara dos Deputados da Argentina do projeto de lei que previa a interrupção da gravidez até a 14ª semana, o pontífice, que é argentino, se referiu à suspensão da gestação durante discurso no Vaticano. E comparou a prática ao extermínio cometido pelos nazistas: "No século passado, todos se escandalizavam com o que os nazistas faziam para purificar a raça. Agora, querem fazer o mesmo com luvas brancas", disse.

Suas palavras foram interpretadas como um recado aos que apoiavam a iniciativa no país - ela acabou vetada quando foi a votação no Senado neste mês. E acabou gerando o movimento de pedidos de desligamentos da Igreja, como o de Mollo e de diversas outras pessoas.

Distribuição de formulários

No dia da votação do aborto no Senado, a Coalizão Argentina por um Estado Laico (CAEL), fundada em 2009 por advogados, antropólogas e filósofas feministas, distribuiu mais de 1,3 mil formulários para fazer pedidos de desligamentos da Igreja na frente do Congresso.

Mais tarde, a distribuição chegou a provocar filas em uma das esquinas mais movimentadas de Buenos Aires, nas avenidas Callao e Corrientes, no centro da cidade. Dez dias depois, o formulário foi entregue em 24 pontos do país.

O advogado Cesar Rosenstein, um dos fundadores da CAEL, disse à BBC News Brasil que a "interferência da Igreja Católica" no debate sobre a legalização da interrupção da gravidez certamente influenciou o tamanho da fila dos que querem renunciar à instituição.

"Ficou muito evidente que a Igreja foi principal força que se opôs ao acesso à interrupção legal de gravidez. E o que as pessoas que preencheram o formulário querem é um Estado laico, sem a interferência da Igreja", afirmou.

O casal de argentinos Emiliano Ramirez, de 41 anos, e Romina Ojagnan, de 36 anos, recebeu os formulários e também decidiu entrar com o pedido oficial de desligamento da Igreja Católica.

"Há muito tempo vínhamos pensando nisso. Fomos batizados pelos nossos pais e nunca praticamos a fé católica", diz Ojagnan à BBC News Brasil. "E somos contra a postura da Igreja que se opõe ao movimento LGBT, à camisinha e que ainda fala coisas como a que disse o papa Francisco, de que os homossexuais devem ser tratados com psiquiatras. E foi a posição da Igreja contra a legalização do aborto que acelerou nossa decisão de pedir a apostasia."

O papa havia afirmado nesta semana que "quando (a homossexualidade) é observada a partir da infância, há muito que pode ser feito por meio da psiquiatria, para ver como são as coisas. É outra coisa quando se manifesta depois dos 20 anos".

Após a declaração causar polêmica, o Vaticano disse que as palavras do pontífice não tinham sido interpretadas corretamente. Ele havia dito também que pais com filhos homossexuais devem rezar, não condenar, dialogar e "dar espaço para o filho ou filha".

Renúncia

Na sexta-feira passada, Rosenstein e outros ativistas da CAEL entregaram as caixas com mais de 3 mil formulários preenchidos na sede Conferência Episcopal Argentina, onde foram recebidos por religiosos que são assessores na Igreja.

"Juridicamente, as pessoas não podem renunciar ao batismo. Mas elas podem renunciar à instituição e podem escolher entre manter a fé ou não", diz Rosenstein.

As justificativas não foram iguais em todos os formulários preenchidos. "Cada um colocou seu argumento, mas ficou claro que a questão do aborto e outros abusos da Igreja foram o detonador. E que estas pessoas não se sentem representados pela Igreja", afirmou.

Rosenstein afirma que os formulários continuarão sendo distribuídos no país - para ele, a "tendência" é que mais argentinos peçam a desvinculação da Igreja.

As demandas do CAEL incluem o pedido de que símbolos religiosos não ocupem mais instituições públicas e o fim da educação religiosa em escolas, entre outras medidas.

Nem todos os grupos que defendem o Estado Laico e a legalização do aborto são seculares, no entanto. As mulheres do grupo Católicas pelo Direito de Decidir também defendem a legalização, mas não fizeram pedidos de apostasia.

"Não queremos que as instituições religiosas interfiram nas decisões individuais, e queremos que as pessoas tenham liberdade de escolha. Na votação do projeto do aborto, as igrejas católica e evangélicas se uniram contra a medida", diz a socióloga Victoria Tesoriero, das Católicas pelo Direito a Decidir.

Procurada pela BBC News Brasil, a assessoria de imprensa da Arquidiocese confirmou ter recebido os formulários na sexta-feira e reconheceu um aumento, nos últimos dias, de pedidos de apostasia. Mas afirmou que "o motivo não está claro".

Segundo dados publicados na imprensa argentina, 77% dos argentinos declaram-se católicos. Este índice foi de 90% nos anos 1960. Nove em cada dez dizem acreditar em Deus e mais de 30% consideram-se católicos praticantes, de acordo com o site de checagem de informações Chequeado, que cruzou dados de pesquisas.