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A batalha política de dois povoados por bebê nascido em fila de banco na Índia

Khazanchi Nath nasceu há dois anos enquanto sua mãe, Sarvesha Devi, estava na fila de um banco - BBC
Khazanchi Nath nasceu há dois anos enquanto sua mãe, Sarvesha Devi, estava na fila de um banco Imagem: BBC

18/12/2018 06h24

O pequeno Khazanchi, de dois anos de idade, está no centro de uma disputa envolvendo duas famílias, vilarejos e políticos.

Desde seus primeiros minutos de vida, Khazanchi Nath, hoje com dois anos de idade, viveu sob os holofotes. Seu nascimento em uma fila de banco na Índia virou notícia globalmente. Agora, ele está no centro de uma amarga disputa entre os dois lados de sua família e dois vilarejos nos quais seus parentes vivem.

Geeta Pandey, da BBC, viajou para Kanpur, em uma área rural no norte da Índia, para juntar as peças da história da criança.

Khazanchi, que significa algo como "aquele que guarda um tesouro", nasceu no estado de Uttar Pradesh em 2 de dezembro de 2016 - menos de um mês depois de o governo indiano ter proibido a circulação de notas de mil e de quinhentas rupias.

A decisão do primeiro-ministro do país, Narendra Modi, localmente chamada de "desmonetização", levou a uma grande crise de liquidez e durante semanas milhões de indianos formaram filas em bancos para trocar cédulas à tempo da transição.

Em gravidez avançada, Sarvesha Devi saiu de sua casa na aldeia de Sardar Pur e dirigiu-se a um banco na cidade de Jhinjhak, onde ocupou seu lugar na fila. Ela estava acompanhada de Sashi Devi, sua sogra, e de Priti, sua filha mais velha, de 10 anos, além centenas de desconhecidos. Devi, então, entrou em trabalho de parto ali.

A história do nascimento ganhou manchetes e o pequeno Khazanchi tornou-se um garoto-propaganda na campanha eleitoral em seu Estado - simbolizando a oposição ao BJP, partido do primeiro-ministro.

Os primeiros meses de vida de Khazanchi

Quando o menino tinha pouco mais de dois meses de idade, viajei para o vilarejo empoeirado em que ele vivia para vê-lo.

Quatro meses antes de seu nascimento, seu pai morrera de tuberculose. Ao descrever o trauma de ter dado à luz nos arredores de um banco, sua mãe me disse que ela também teria morrido se não fosse por sua sogra.

Mas, na semana passada, quando eu queria ver Khazanchi novamente, tive que visitá-lo em um outro vilarejo empoeirado - Anantpur Dhaukal, para onde sua mãe se mudou no ano passado depois de uma briga amarga com os sogros. É onde fica a casa dos parentes de Sarvesha Devi, incluindo a mãe e os três irmãos dela.

Khazanchi mostra curiosidade - ele fixa os olhos contornados por kohl (um cosmético tradicional) em mim e, por estímulo da mãe, aperta a minha mão. Pergunto a ele quem pintou suas unhas de rosa, e ele aponta para Priti, sua irmã.

Inconsciente da batalha que está sendo travada por ele, a criança parece mais interessada em meus óculos e tenta pegar meu telefone quando chego perto para tirar uma foto.

Sarvesha Devi pega emprestadas duas cadeiras de plástico da casa de um vizinho e nos sentamos frente-a-frente para conversar. Em poucos minutos, Khazanchi começa a ficar irritado.

"Ele está com fome", diz a mãe, que começa a amamentá-lo.

A notícia de minha visita se espalhou e logo atraímos a mãe, os irmãos e alguns vizinhos de Sarvesha.

Uma vez que a criança se acalmou, perguntei à mãe sobre sua relação com a sogra. Desta vez, ela não tem elogios a fazer. De fato, o relacionamento azedou tanto que ela menciona ameaças de morte - que poderiam tirar sua vida e a de Khazanchi.

Depois que seu bebê nasceu, Sarvesha Devi recebeu uma indenização de 200.000 rúpias (cerca de R$ 10,8 mil) do governo por ter tido que dar à luz em uma fila no banco.

A sogra amorosa que antes salvou sua vida agora é descrita como um temido monstro de quem Sarvesha diz ser vítima de agressões regulares e de pressão para que repasse metade da indenização recebida.

É uma quantia significativa de dinheiro para uma família imersa na pobreza e sem fontes fixas de renda. Foi por este contexto que os laços familiares começaram a se dissolver.

Contexto familiar de pobreza e mendicância

Então, o que aconteceu para despedaçar a família assim? Fiz essa pergunta a Sarvesha Devi - e a sua sogra, em uma visita posterior a Sardar Pur.

Em meio às versões e contraversões, às vezes é difícil definir o que é verdadeiro e o que é falso, ou entender quem está sendo honesto ou quem está exagerando.

A família de Khazanchi faz parte da tribo Baiga, uma das comunidades mais pobres e carentes da Índia. Eles têm pouco acesso à educação, não possuem terras e, na maior parte dos casos, ganham a vida através da mendicância.

Tradicionalmente, porém, os Baigas foram encantadores de cobras. Apesar de serem proibidas há muito tempo, em todas as minhas visitas, eles me mostravam orgulhosamente os répteis.

Também desta vez, um aldeão me pergunta se eu quero ver sua captura mais recente e, antes que eu possa responder, ele traz uma cobra bebê e raivosa em uma cesta. Ele cutuca o réptil, que começa a rastejar no chão a menos de um metro de mim. Está em um estado inofensivo, ele me garante.

Ele ainda me conta que o bicho vai crescer até três vezes o tamanho atual. Enquanto retomamos a conversa, mantenho cautelosamente um olho no réptil.

No lugar errado e na hora certa

Uttar Pradesh, onde ficam os vilarejos de Sardar Pur e Anantpur Dhaukal, é o Estado mais populoso da Índia. É lar para mais de 200 milhões de pessoas e berço para mais de 15 mil bebês que nascem ali diariamente. Por isso, é difícil imaginar que o nascimento de uma criança possa gerar muita emoção.

Mas Khazanchi foi catapultado para o estrelato por causa das circunstâncias de seu nascimento, em um momento também que o Estado estava se preparando para realizar eleições regionais importantes. O então ministro-chefe do Estado, Akhilesh Yadav, usou o episódio do "nascimento na fila do banco" para exemplificar a desventura que teria sido a desmonetização.

Ele invocou a criança em todas suas manifestações políticas, insistindo que a proibição das cédulas pelo primeiro-ministro Modi havia prejudicado os mais pobres - como a família de Khazanchi.

Alguns meses após o nascimento do menino, Yadav entregou à mãe o dinheiro da indenização.

Sarvesha Devi diz que usou uma parte do dinheiro para pagar dívidas pelo tratamento do marido e do filho mais velho, que também sofre de tuberculose. O restante foi guardado por meio de um depósito bancário.

Mas sua sogra, segundo diz, exigiu metade do dinheiro da indenização. Sarvesha Devi recusou.

"A família me jogou no chão e me espancou", conta, afirmando que foi a partir daí que ela decidiu deixar o vilarejo de Sardar Pur.

A mãe, de 37 anos de idade e um andar marcadamente manco, diz que se recusou a compartilhar a indenização: "Sou deficiente e, com o meu marido ausente, não há ninguém para cuidar dos meus filhos. Tenho que garantir o nosso futuro".

As relações pioraram depois que ela se mudou. Malkhan Nath, seu irmão mais velho, diz que está sob pressão da comunidade para mandá-la de volta a Sardar Pur.

"Nós continuamente dizemos a ela que trata-se da sua família, sua casa, para que por favor volte. Mas ela se recusa porque diz que eles a espancam e a maltratam. Não sabemos o que fazer. Ela é minha irmã: como posso dizer a ela para sair (de Anantpur Dhaukal) se ela não quer?", pergunta.

A disputa familiar está agora no tribunal comunitário que Malkhan Nath chama da "alta corte" do vilarejo. É composto por anciãos proeminentes da comunidade que decidem em questões da comunidade. Suas decisões não têm força legal, mas raramente são ignoradas porque implicam o desafio de enfrentar um boicote social e ter que pagar multas em dinheiro.

Malkhan Nath diz que, no ano passado, teve que comparecer ao "tribunal" três vezes. Em outra ocasião, ele teve que pagar 650 rúpias como multa porque sua irmã desafiou a ordem de comparecer junto com Khazanchi.

'Estavam tentando sequestrá-lo'

As coisas esquentaram no início deste mês. No primeiro dia de dezembro, um dia antes do aniversário de Khazanchi, Sarvesha Devi disse que dois carros lotados de funcionários apareceram tarde da noite em sua casa.

"Eu estava sentando para jantar e Khazanchi estava dormindo. Eles insistiram para irmos com eles para Sardar Pur para as comemorações de aniversário dele (do filho) no dia seguinte. Eu recusei, então eles o pegaram e o levaram para o carro. Ele acordou e começou a chorar", conta a mãe.

"Nós os perseguimos. Todos os nossos vizinhos vieram e nos ajudaram a resgatá-lo. Estavam tentando sequestrá-lo", ela insiste.

Embora Yadav não tenha vencido as eleições regionais do ano passado, ele manteve contato com Khazanchi. Jornalistas locais dizem que ele planejava usar a criança como mascote para as eleições gerais previstas para o verão e anunciou que iria presenteá-lo com duas casas em seu aniversário - uma em Sardar Pur e outra em Anantpur Dhaukal.

O plano era que o político visitasse Sardar Pur em seu aniversário e entregasse as chaves para Khazanchi. Com os jornalistas locais convidados a cobrir as comemorações, havia o plano de uma foto perfeita.

Mas quando Yadav chegou a Sardar Pur, Khazanchi não estava lá. As chaves foram então entregues a Sashi Devi.

Claramente desapontado com a ausência da criança, Yadav disse que não sabia sobre a "batalha entre suas avós maternas e paternas" e demitiu dois colegas do partido por "envergonhá-lo".

Poucos dias depois, quando visitei Sardar Pur, encontrei a nova casa perto da beira da estrada. Sashi Devi tinha ido ao mercado, então eu conversei com seus parentes e vizinhos enquanto esperava por seu retorno. As flores de calêndula usadas para decorar a casa quase murcharam, e o clima também estava para baixo.

"Muitas pessoas se reuniram para ver Khazanchi, mas sua mãe preferiu ficar longe", diz Asharfi Nath, tio-avô da criança. "Yadav tinha vindo com presentes, mas ele voltou com eles. Sarvesha Devi poderia ter vindo por uma hora. Recusando-se a comparecer às celebrações, ela humilhou o senhor Yadav".

Os aldeões dizem que tudo estava bem até o nascimento de Khazanchi e culpam "a ganância e o ciúme da família de sua mãe e de sua aldeia" por arruinar as coisas.

Para os moradores de Sardar Pur, a família e a comunidade de Anantpur Dhaukal querem o dinheiro da indenização.

Os aldeões também sugerem uma conspiração política mais ampla: Sardar Pur apoia o partido Samajwadi de Yadav, enquanto Anantpur Dhaukal é dominado pelos Thakurs, de casta superior, que apoiam o BJP de Modi.

Mulayam Nath, um aldeão, diz que, se Sarvesha Devi não quiser voltar, ela pode ficar em Anantpur Dhaukal. Mas com uma condição.

"Ela deve mandar Khazanchi de volta porque ele é nosso bebê, ele pertence à nossa aldeia. O progresso e os benefícios prometidos pelas autoridades devem chegar até nós".

'Como podemos matar nossa nora e neto?'

Quando Sashi Devi retorna, está começando a escurecer. Ela se agacha no chão do lado de fora da casa recém-construída enquanto peço para que responda às acusações contra ela.

"É tudo mentira", diz ela. "Nunca pedi dinheiro algum à minha nora. Ela foi treinada para dizer o que está dizendo".

Sashi Devi fala sobre como Sarvesha Devi e os cinco filhos dela foram alimentados e vestidos pela família da matriarca quando seu filho estava muito doente para trabalhar.

Ela menciona também que, meses depois à morte do homem, ela, seu marido e filhos compartilharam o pouco dinheiro que tinham com Sarvesha.

Sashi rejeita as alegações de que teria agredido a mulher: "Tenho mais quatro noras e 16 netos. Como é que ninguém mais foi agredido?".

Ela tem sua própria versão sobre agressões: "Fui à aldeia (de Anantpur Dhaukal) duas vezes para trazer ela e as crianças de volta. A cada vez, eles escondiam Khazanchi, e as mulheres de lá me agrediam".

Sashi Devi também ridiculariza a acusação de que ela ou qualquer um dos membros da sua família poderiam ferir Sarvesha Devi ou Khazanchi: "Como podemos matar nossa nora e neto?"

Enquanto me preparo para sair, pergunto se há alguma chance de reconciliação - mas ela não está muito esperançosa.

"Eu a encontrei três vezes recentemente e pedi que voltasse e morasse em sua nova casa, mas ela recusou", diz ela, enxugando uma lágrima com o canto de seu sári. "Antes, perdi meu filho. Agora, também perdi meus netos".