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Brumadinho, a história de uma tragédia que poderia ter sido evitada

Ricardo Senra*

Enviado da BBC News Brasil a Brumadinho (MG)

28/02/2019 08h57

Todos os dias, às 8h, Darcy Dias da Cunha chega ao cemitério municipal de Brumadinho. De um ponto alto do morro, enquanto o sol corta o horizonte, o aposentado de 78 anos mira a pequena cidade de casas baixas e ruas pouco movimentadas.

Vindo do alto, um som constante de helicópteros preenche o ar. Eles carregam equipes de resgate até a lama que corta o vale como uma enorme cicatriz vermelha. As buscas por corpos só terminam quando anoitece.

Pai de 12 filhos, Cunha tem passado todos os dias, voluntariamente, no cemitério desde que a barragem se rompeu. Em silêncio, ele se senta nos degraus de uma escada e espera.

"Eu só estou esperando ela chegar", diz, com os olhos opacos de tristeza e catarata. "Eu sei que vão ligar para prepararem as coisas no cemitério quando ela for identificada."

Ela se chama Rosária, tinha 27 anos, e trabalhava como funcionária administrativa da mineradora Vale, dona da barragem rompida. Filha de Cunha, Rosária esteve entre as primeiras pessoas a serem engolidas pela lama tóxica.

Nesta cidade unida e religiosa, onde todos trabalhavam ou conheciam quem trabalhasse na Vale, a comunidade ainda está em choque. Um mês depois do colapso, 179 corpos foram identificados, mas as buscas pelos restos mortais de pelo menos 131 desaparecidos continuam.

Não há qualquer chance de se encontrarem sobreviventes, dizem autoridades locais.

Cunha acredita que a notícia chegará mais rápido ao cemitério do que aos ouvidos da esposa Helena.

Desde que soube da tragédia, ele conta, a idosa de 73 anos passa dias sentada na calçada da velha casa de telhas vermelhas gritando em vão.

"Por favor, me apareça, Rosária. Por favor, volte para a sua mãe", repete a mulher, lembrando-se de como a filha fechava os olhos enquanto Helena desembaraçava os fios de seus cabelos compridos, no que havia se tornado um pequeno ritual familiar, todos os dias depois do trabalho.

Darcy BBC - Derrick Evans/BBC - Derrick Evans/BBC
Darcy Dias da Cunha no cemitério, à espera do corpo da filha Rosária
Imagem: Derrick Evans/BBC

No dia da tragédia, quando souberam que a filha estava entre os desaparecidos, Darcy e Helena viajaram por 2 horas no carro de familiares até um hospital de Belo Horizonte em busca de notícias.

Rosária não estava lá. Como outras famílias que buscavam parentes no hospital, eles foram orientados a fornecer amostras de DNA ao Instituto Médico Legal.

Os dados da família estão num banco que já reúne mais de 530 amostras de atingidos de Brumadinho.

Rosária tinha dois filhos, um de 8, outro de 12 anos. No final daquela sexta-feira sem fim, quando o casal de idosos voltou para casa, as crianças brincavam em um canto da sala de estar.

Enquanto a TV em frente ao velho sofá mostrava imagens do desastre, os adultos achavam que conversavam discretamente.

Até o filho de 12 anos se levantar.

"Eu sei o que aconteceu", disse ele, chorando muito. "Minha mãe morreu, não morreu?"

Enquanto a família tentava responder, o irmão mais novo começou a bater a cabeça com força na parede.

"Eu sei que ela não vai voltar", gritava.

Cunha narra a cena enquanto olha para um cão marrom de pelos longos, sua companhia no cemitério.

"Este é o Violeiro", aponta o homem, mostrando um sorriso pela primeira vez.

Perto dos dois, o coveiro Atenagos Moreira de Jesus, de 63 anos, conta que a parte mais difícil do trabalho é consolar as famílias de amigos que se veem diante da missão de enterrar apenas parte dos corpos de parentes.

Com a força da lama, centenas de árvores, caminhões e destroços de construções se chocaram com as vítimas, desfazendo boa parte dos corpos.

Com 20 anos de experiência à frente do cemitério, Jesus tem enterrado pelo menos 3 amigos por dia.

"Meu trabalho é cavar buracos. Agora o buraco mais fundo ficou no meu coração", diz Jesus, chorando. "Essa é a última coisa que posso fazer pelos meus amigos e eu tenho feito com todo o amor do mundo."

Os helicópteros dão uma breve trégua e o homem continua, enxugando as lágrimas na gola da camisa xadrez.

Atenagos BBC - Derrick Evans/BBC - Derrick Evans/BBC
Atenagos Moreira de Jesus só ficou sabendo que seu amigo estava entre as vítimas no dia do seu enterro
Imagem: Derrick Evans/BBC

"Fico preocupado com os que não vão conseguir enterrar seus parentes. Aí é como se fosse uma falha minha."

Apoiado numa lápide, Cunha acompanha outras famílias vindo enterrar seus parentes. Protegendo das chuvas de verão, uma procissão de guarda-chuvas pretos serpenteia os jazigos no compasso de um pandeiro.

Cunha continua esperando. Ele diz que aqui se sente mais perto de Deus - e mais forte para lidar com as notícias sobre a filha, quando e se elas chegarem.

"Eu quero carregar o caixão", ele diz. "Sou forte. Não quero morrer antes de carregar o caixão."

O colapso

Era hora do almoço naquela sexta-feira ensolarada, 25 de janeiro.

Todos os dias, junto a pelo menos 200 outros funcionários da mineradora Vale, Rosária ia almoçar no refeitório do Complexo do Córrego do Feijão.

Ela trabalhava em um dos prédios administrativos da mina, que ficava a poucos minutos de ônibus corporativo da área reservada para refeições.

Às 12h28, um barulho parecido com o de um incêndio começou. A parede de sustentação da barragem 1, de 86 metros de altura, havia desmoronado.

Em 90 segundos, o refeitório, os escritórios e dezenas de veículos pesados usados na mineração haviam sido engolidos pela lama.

Ana Paula da Silva Mota trabalhava como motorista de caminhões da Vale. Orgulhosa do trabalho, ela era responsável por deslocar na caçamba do veículo mais de 90 toneladas de minério de ferro desde a mina até os vagões do trem, que por sua vez levava o minério para os portos da mineradora.

Mota estava dentro do caminhão, a apenas 550 metros da barragem, no momento em que ela se rompeu.

"Eu estava de frente para a barragem. Acho que fui uma das primeiras pessoas a ver (a avalanche). Não dava para acreditar", diz Ana Paula.

"A gente achava que essa barragem estava seca. Olhando de cima, parecia um campo de futebol, firme, duro, não tinha esse lamaçal. Ninguém imaginava que estava assim por dentro", conta.

Em segundos, o que tem sido descrito como um "tsunami" de lama começou a se espalhar pelo vale a mais de 70km/h.

Ana Paula pegou o rádio.

"Quando caiu a ficha, peguei o rádio transmissor (do veículo) e comecei a gritar desesperada: 'corre, foge, a barragem estourou'. Quem estava naquela faixa (de rádio) me escutou gritando. Depois, fiquei sabendo que teve gente que escapou porque ouviu uma mulher chorar e gritar no rádio. Era eu", diz ela.

A avalanche passou a cerca de 100 metros do caminhão de Rocha. Ela conta que perdeu mais de 20 colegas na tragédia, incluindo uma tia.

Casas, fazendas, plantações, rios e áreas de mata atlântica foram soterradas. Nas comunidades de Córrego do Feijão e Parque da Cachoeira, dezenas de construções foram totalmente destruídas.

"O barulho era alto demais. As árvores estalavam umas nas outras como se fosse um incêndio", conta a moradora Telmilia Durães da Rocha, de 63 anos, enquanto circula pelos escombros da "casa dos nossos sonhos", construída durante os últimos 20 anos ao lado do marido.

O casal conseguiu escapar de carro, mas deixou tudo para trás.

"A gente correu pro carro e viu a avalanche de lama vindo na nossa direção e destruindo tudo. Essa casa era a minha vida", ela diz.

Telmilia BBC - Derrick Evans/BBC - Derrick Evans/BBC
Telmilia e o marido tiveram a casa destruída pela lama
Imagem: Derrick Evans/BBC

A barragem destruída abrigava restos - conhecidos como "rejeitos" - da mineração de ferro realizada na mina que ficava no mesmo complexo.

A forma mais barata de armazenar estes subprodutos da mineração é compactá-los dentro de uma barragem. Os líquidos são drenados para que o lodo endureça. Uma cobertura de grama é plantada no topo - como em um campo de futebol.

No entanto, se houver problemas de drenagem, tragédias podem ocorrer.

A barragem de Brumadinho oferecia um risco extra, já que suas paredes eram feitas de camadas sobre camadas empilhadas de rejeitos.

Em outras palavras, é como se o lixo da sua cozinha fosse feito, não de metal ou plástico, mas de restos compactados de frutas, legumes e carne.

Este tipo de barragem, conhecida como "barragem a montante", é mais suscetível a rachaduras em caso de infiltrações. As rachaduras, por sua vez, podem levar ao desmoronamento das estruturas.

O modelo é usado por diferentes mineradoras em todo o mundo, incluindo no Canadá e na Austrália. Estas barragens, porém, precisam de investimentos, monitoramento e manutenção regulares.

Por isso, em outros países sul-americanos como Peru e Chile, o formato é proibido.

"É a forma mais comum porque é mais barata para se construir e mais rápida de se licenciar porque ocupa menos espaço da bacia hidrográfica. Mas é também a mais perigosa e com maior risco. Por isso países com características similares às do Brasil não usam ou estão proibindo", explica o geólogo Eduardo Marques, professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV).

No dia do rompimento, o alarme de emergência, criado para dar tempo suficiente para que as pessoas escapassem, não funcionou.

Muitos dos familiares em luto pela tragédia dizem que, se o alarme tivesse funcionado, menos vidas teriam sido perdidas.

Principal produtora de minério de ferro do planeta e maior mineradora do Brasil, a Vale é responsável por quase 80% do ferro exportado pelo país.

Em 2017, seus lucros superaram R$ 100 milhões (ou 34 bilhões de dólares). Em uma entrevista coletiva pouco após a tragédia, o presidente da companhia, Fabio Schvartsman, disse a jornalistas que o sistema de alarmes havia sido "engolfado" após a ruptura da barragem.

"Aconteceu um fato que não é muito usual: houve um rompimento muito rápido da barragem", declarou.

Em nota enviada mais tarde à BBC, a Vale disse: ""Devido à velocidade com que ocorreu o evento, não foi possível acionar as sirenes relativas à barragem".

Mas o professor de engenharia de minas Sergio Medici de Eston, da Universidade de São Paulo, rejeita a explicação.

"Falar que a sirene não tocou porque o evento foi muito rápido é brincadeira", ele diz. "A sirene não é para tocar só quando a barragem cai. A sirene pode tocar quando a coisa começa a ficar crítica, às vezes semanas antes, para as pessoas ficarem em alerta."

Em Brumadinho, todos os olhos estão voltados para a Vale. Os atingidos pela tragédia tentam encontrar respostas para o que ocorreu - mas, primeiro, elas buscam encontrar seus entes queridos.

quarto do casal BBC - Derrick Evans/BBC - Derrick Evans/BBC
Lama chegou ao quarto do casal
Imagem: Derrick Evans/BBC

Os socorristas

Manobrando pelo rio Paraopeba em um bote de resgates inflável, Eduardo veste uma segunda pele vermelha e preta e um capacete amarelo.

Atendendo a uma ocorrência registrada por dois pesquisadores que colhiam amostras do rio para medir níveis de toxicidade, o bombeiro olha atentamente para as margens em busca de sinais.

Sufocado pelo lodo vermelho, o rio vai perdendo, pouco a pouco, sinais de vida. Peixes mortos podem ser vistos boiando com as bocas abertas. Os mosquitos, até então abundantes, se dispersaram.

Eduardo finalmente encontra o que buscava: um torso sem pernas ou cabeça preso a um conjunto de galhos amontoados.

Com imenso cuidado, Eduardo e dois colegas bombeiros se posicionam para trazer o corpo para o bote. Cruzando os dedos com os de sua mão, como em um delicado cumprimento, Eduardo puxa lentamente o tronco, que depois é içado por um helicóptero.

Com os corações disparados e tremendo após o encontro inesperado, os pesquisadores decidem continuar a expedição pelo rio, agora com a escolta de Eduardo e seus colegas.

Mas, metros à frente, na margem esquerda do rio, o grupo encontra uma perna.

A expedição dos civis é então cancelada.

A operação de resgate é enorme. Aproximadamente 400 oficiais, entre bombeiros, policiais, membros do Exército e da Força Nacional lutam contra o tempo, na lama, com o apoio de helicópteros, tratores e cães farejadores.

Em alguns locais, eles contam que trabalham sobre 15 metros de lama.

Bombeiros BBC - Douglas Magno/AFP - Douglas Magno/AFP
Socorristas trabalharam intensamente em meio à lama
Imagem: Douglas Magno/AFP

Os bombeiros arriscam suas vidas enquanto procuram por corpos, mas precisam se proteger e minimizar riscos de infecção para poder completar a missão.

Depois de horas cavando e revirando a lama contaminada, eles passam por um banho de descontaminação com detergentes e sabão antibacteriano. Após voltarem para casa, todos serão testados pelos próximos 6 meses para terem certeza que estão saudáveis e que não foram contaminados pelos resíduos tóxicos presentes na lama.

"Encontrei dois corpos hoje", conta o jovem bombeiro Junior, enquanto espera pelo banho.

"Eles estavam em uma condição muito ruim porque a decomposição já começou. Mas eu tenho fé em Deus que vão ser identificados e que as famílias vão poder dar um enterro decente para eles."

Decomposição é uma das palavras mais repetidas no Posto de Atendimento Feijão, uma das áreas de reunião das equipes de resgate. Em breve, os corpos estarão completamente decompostos e nem os cães conseguirão ajudar.

Nas primeiras semanas de resgates, tempestades de raios e chuvas fortes atrapalharam o progresso dos bombeiros.

"A chuva pesada atrapalha o movimento da aeronave, reduz a visibilidade dos pilotos e pode movimentar o pouco de lama que ainda resta na barragem", diz o tenente-coronel Anderson Passos, um dos comandantes das operações.

A empresa

Em 24 horas, autoridades organizaram uma força-tarefa especial, composta por membros dos ministérios públicos estadual e federal, defensorias Públicas das duas esferas, e policiais civis, militares e federais.

A investigação corre em três áreas: civil, ambiental e criminal. À frente de tudo isso está Andressa Lanchotti, uma promotora do Estado de Minas Gerais.

No 10º andar de um edifício cinza, de concreto, na região central de Belo Horizonte, Lanchotti está sentada em frente a um enorme quadro branco repleto de anotações, listas de nomes e planos relacionados à investigação.

"Isso não é para vocês," ela diz sorrindo, enquanto rapidamente vira o quadro contra a parede.

Lanchotti é amigável, mas bastante direta. A tragédia é familiar a ela e a todos os brasileiros.

Há pouco mais de três anos, em novembro de 2015, outra barragem do mesmo formato se rompeu em Mariana, matando 19 pessoas a apenas 75 quilômetros de Brumadinho.

Na ocasião, mais de 50 milhões de metros cúbicos de lama tóxica se espalharam pelo rio Doce, atravessando mais de 500 quilômetros, em dois Estados, dezenas de cidades e milhões de pessoas até chegar ao Oceano Atlântico.

Foi o maior desastre ambiental da história do Brasil - e Lanchotti, no fim de 2016, se tornou a responsável por conduzir as investigações sobre o caso.

Mas, em todo o Brasil, e especialmente em Minas Gerais, lobistas e políticos ligados a mineradoras exercem forte influência nestes processos.

Apenas dois meses depois da tragédia de Mariana, em janeiro de 2016, enquanto autoridades ainda tentavam controlar o alcance da lama, o governo estadual de Minas aprovou a lei 21.972, que acelerava processos de licenciamento ambiental.

No mês anterior, a BBC News Brasil revelou que o documento oficial do projeto de lei proposto por deputados federais para o novo Código da Mineração, que definiria novas regras para o setor, havia sido criado e alterado em computadores do escritório de advocacia Pinheiro Neto, que tinha como clientes mineradoras como Vale e BHP - apesar de ser assinado pelo deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG), relator do projeto de lei.

As mudanças feitas a partir das máquinas do escritório iam de tópicos socioambientais a valores de multas em caso de infrações.

Já em dezembro de 2017, o modelo de licenciamento usado pela Vale em Brumadinho foi criado pelo Conselho de Política Ambiental do Estado, o Copam, acelerando ainda mais o processo a partir de um dispositivo que ficou conhecido como "fast-track".

Vale BBC - Adriano Machado/Reuters - Adriano Machado/Reuters
Vale mantém uma forte presença na verdade
Imagem: Adriano Machado/Reuters

O novo formato permitiu, em alguns casos, encurtar o processo de licenciamento ambiental de três etapas para apenas uma, tornando mais fácil - e não mais difícil - para que companhias como a Vale consigam autorizações para mineração em áreas com riscos ambientais.

A dona da barragem de Mariana é a Samarco, uma empresa também controlada pela Vale, junto à mineradora anglo-australiana BHP. A empresa recorre contra uma multa do Ibama de R$ 350,7 milhões (cerca de US $ 94 milhões) por danos ambientais.

Acusações de homicídio culposo também foram feitas contra 19 executivos da Vale e da BHP Billiton, mas os julgamentos ainda não foram adiante.

"O sistema de justiça é muito complicado", diz Lanchotti. "Não se trata apenas dos promotores ou juízes. É também que o sistema permite inúmeros recursos, o que pode atrasar os resultados finais."

Ela lista problemas que vão desde a falta de monitoramento até a falta de vontade política para transformações efetivas, até concluir:

"Enquanto estas questões não forem resolvidas, eu não posso garantir que novas tragédias como estas não aconteçam no Brasil."

Apenas quarto dias depois da ruptura em Brumadinho, Lanchotti coordenou as prisões temporárias de cinco pessoas - três empregados da Vale e dois engenheiros da companhia alemã TÜV SÜD, responsável pelo monitoramento da barragem.

Estes engenheiros haviam sido contratados pela Vale para fazerem inspeções regulares na barragem, obrigatórias segundo a legislação brasileira, além de assinarem certificados de estabilidade da estrutura.

Com apenas 35 inspetores do governo para mais de 1.000 minas ativas e não ativas em todo o Brasil, a maioria das empresas contrata seus próprios inspetores privados para assinar a papelada - uma prática permitida pela lei, mas criticada pela sociedade.

No caso da Vale, foi a empresa alemã TÜV SÜD.

"Muitas vezes, as agências governamentais não realizam inspeções, mas delegam essa responsabilidade de volta às próprias empresas, para monitorar suas próprias atividades", diz Lanchotti. "Infelizmente, os eventos recentes mostraram que essa forma de automonitoramento simplesmente não é eficaz".

Para especialistas, o caso também gera possíveis conflitos de interesses.

"As empresas tendem a escolher auditores que ofereçam a opinião mais fácil, rápida e barata possível ", diz o professor da UFJF Bruno Milanez, especialista em políticas ambientais e membro do Comitê em Defesa dos Territórios frente à Mineração.

"Nas últimas grandes interrupções de barragens que tivemos em Minas Gerais - 2014, 2015 e 2019 - os auditores escolhidos e contratados por essas empresas haviam certificado essas barragens poucos meses antes dos episódios", diz. "É importante entender que essa falta de recursos é uma opção política e que o orçamento da Agência Nacional de Mineração foi reduzido em 2018."

Hoje, em Minas Gerais, o orçamento total para a inspeção de barragens é de R$ 163 mil.

Dois dias após as prisões, advogados da Vale conseguiram um habeas corpus de soltura dos cinco homens no Superior Tribunal de Justiça. Eles foram fotografados na saída da Penitenciária Nelson Hungria, em Contagem, com os rostos cobertos por casacos e folhas de papel.

Mas partes dos depoimentos dos executivos foram vazados pela Polícia Federal dias depois.

Parte do vazamento, publicado no Jornal Nacional da TV Globo, mostrava uma troca de e-mails registrada apenas dois dias antes da tragédia. Nas mensagens, executivos discutiam leituras discrepantes em equipamentos que mediam a pressão na barragem.

Um dos engenheiros da TÜV SÜD, Makoto Namba, chegou a ser questionado pela polícia sobre o que faria, considerando essas leituras, se seu filho estivesse trabalhando no local da represa.

Ele respondeu, segundo o relatório, que "após a confirmação das leituras, ligaria imediatamente para seu filho para que saísse do local, e que também ligaria para o setor de emergência da Vale responsável pelo acionamento do PAEBM [Plano de Ação de Emergência de Barragens de Mineração] para as providências cabíveis".

Em seu depoimento, ao qual a BBC News Brasil também teve acesso, Makoto Namba também disse que se sentiu pressionado por um funcionário da Vale a assinar o laudo de estabilidade da barragem em junho de 2018.

Tanto a Vale quanto a TÜV SÜD disseram à BBC que não comentariam o caso enquanto as investigações estiverem em andamento.

Um funcionário da Vale que sobreviveu à tragédia e concordou em conversar com a BBC News Brasil em condição de anonimato confirmou problemas recentes na barragem - onde trabalhava diariamente.

Segundo ele, um encanamento quebrado vinha despejando água de uma nascente existente na parte superior da barragem, dentro da estrutura que se rompeu em Brumadinho desde pelo menos o fim de 2018.

"A nascente ficava na cabeça dela", diz. "Dizem que (o cano da nascente) tirava essa água para fora (da barragem). Só que esse cano foi rompido. Esse cano rompeu e essa água estava caindo no meio dela. Tanto que o meio dela era molhado. O meio dessa barragem era molhado, o meio não era seco, não."

Ele conta ter notado o vazamento pela primeira vez um mês antes do desastre.

A fala reforça suspeitas investigadas pelo Ministério Público e pela Polícia Federal. Em depoimento no dia 1º de fevereiro, o engenheiro Makoto Namba afirmou que sabia da existência de uma nascente na parte superior da barragem e diz que parte desta água era despejada dentro da estrutura.

"A água excedente desta nascente corria para dentro da barragem", disse o engenheiro aos investigadores, admitindo que a chance de "ruptura (da barragem) estaria acima do recomendado". Ainda de acordo com o depoimento, Namba afirmou que solicitou que a Vale fizesse um estudo sobre as nascentes localizadas na parte superior da barragem. Disse também que, em julho de 2018, foi construída uma barreira e colocada tubulação na nascente para desviar a água do reservatório. O estudo, segundo ele, estaria em fase de contratação pela Vale.

Para especialistas como o professor Carlos Martinez, que dá aulas sobe segurança de barragens nas universidades federais de Itajubá e de Minas Gerais, em Belo Horizonte, o episódio narrado confirmaria suspeitas percebidas em imagens de satélite da região e sugeriria que a área deveria ter sido imediatamente evacuada por "risco iminente de ruptura".

"Há fotografias mostrando que esta área estava escura. Fotos tiradas dois, três dias antes mostrando que estava escuro, o que indica que havia água acumulada. Era evidente que havia risco", afirma.

"Água constante vindo da nascente aumenta a pressão na barragem. A existência da nascente vertendo água para dentro da barragem seria inaceitável. Se for confirmado, é inaceitável que a área não tenha sido evacuada na hora", afirma.

Martinez continua: "O topo molhado já seria motivo para sair correndo, se a segurança estivesse sendo levada a sério pelos técnicos. Porque isso mostra que há infiltração, que a água não está sendo absorvida como deveria. Quando é assim, a pressão dentro da barragem cresce tanto que os filtros começam a se sobrecarregar. O sinal de alerta mais importante é justamente isso, quando a água acumula e começa a molhar tudo."

Questionada, a Vale não comentou sobre a existência de nascentes na parte superior da barragem, como indicado pelo funcionário, e se limitou a informar que "não havia nascentes dentro do corpo da barragem".

"Não havia registro de aumento nos níveis de água na barragem. Ao contrário, os dados indicam redução neste nível na seção principal da estrutura", disse a empresa.

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UOL Notícias

Ameaça iminente

Duas semanas depois do desastre de Brumadinho, sirenes tocaram no meio da noite em duas outras barragens de Minas Gerais, anunciando um possível colapso.

A Vale é dona de uma delas, próxima a cidade de Barão de Cocais, a mais de 120 km de Brumadinho. A outra, próxima à Itatiaiuçu e a apenas 30 km de Brumadinho, é controlada por outra mineradora, a ArcelorMittal.

Da noite para o dia, 700 pessoas foram evacuadas para ginásios e hotéis.

Dias depois, mais um alarme, novamente em uma barragem da Vale, soou em Nova Lima, a 40 km de Brumadinho. Mais 100 pessoas tiveram que deixar suas casas. A cidade de 93,5 mil habitantes é rodeada por nada menos que 26 barragens de mineração.

A sequência de alertas, logo após a tragédia, parece ter finalmente chamado atenção para a escala do problema no país.

Há pelo menos 790 barragens de rejeitos em todo o Brasil, muitas delas localizadas logo acima de vilarejos ou cidades, como era o caso do Córrego do Feijão.

Todas elas foram classificadas por seus potenciais de risco. A escala não estima as chances de ruptura, mas o estrago que cada uma delas seria capaz de gerar.

Mais de 200 foram classificadas como "alto potencial de estrago" - ou seja, estão acima de povoados ou próximas a grandes rios e ecossistemas.

Tanto Brumadinho quanto Mariana haviam sido classificadas como "baixo risco de ruptura" por inspetores do governo, mas "alto potencial de estrago" por conta de sua posição geográfica.

Em Minas Gerais, a situação é mais dramática. O Estado produz 53% de todo o minério de ferro brasileiro e reúne a maior quantidade de minas e barragens do país.

Itabira, onde a Vale foi fundada em 1942, tem 120 mil habitantes e 19 barragens. Em alguns bairros, os jardins das casas estão diretamente virados para as montanhas de rejeitos. As cinco barragens mais próximas abrigam um total de 423 milhões de metros cúbicos de material tóxico - 33 vezes o volume lançado no mês passado pela barragem de Brumadinho.

Já em Mariana, atingida em novembro de 2015, uma população de 60 mil pessoas é circundada por 15 barragens.

Nos arredores da cidade, no vilarejo de Bento Rodrigues, 600 pessoas vivem no ameaçador caminho de 5 barragens.

Dois meses após se eleger, em dezembro do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro prometeu relaxar as leis ambientais, argumentando que elas "trazem problemas intermináveis" e "impedem que prefeitos, governadores e presidentes construam" projetos de infraestrutura.

Procurado pela BBC News Brasil, o governo não comentou as frases do presidente e informou que, após o desastre, anunciou a proibição de novas barragens de rejeitos do modelo de Brumadinho.

As 87 que estão atualmente em operação - 10 delas de propriedade da Vale - serão desativadas até 2021.

Mas mesmo depois de uma mina ser desativada, as inspeções de segurança devem continuar, já que a lama tóxica ficará para sempre dentro da barragem.

O governo também disse que pressionaria as empresas para garantir que as fiscalizações sejam mais rigorosas, mas não fez comentários sobre o número de inspetores contratados para este serviço.

Assim, essas verificações diárias ainda dependem do sistema atual, pelo qual as empresas efetivamente monitoram suas próprias atividades.

'Nunca mais'

"Mariana, nunca mais."

Estas foram as palavras do CEO da Vale, Fabio Schvartsman, em um discurso em um auditório da empresa para colegas no dia em que tomou posse da empresa, em maio de 2017.

Dois dias depois do desastre de Brumadinho, ele prometeu novamente em uma entrevista na televisão que trabalharia para "isso nunca mais acontecer".

Moradores de Minas Gerais e Estados como o Pará, onde a empresa explora boa parte de seus minérios, e procuradores do Ministério Público estão céticos, já que esta não é primeira tentativa de colocar a Vale nos eixos.

Eles reconhecem que levar uma empresa tão grande e influente a assumir responsabilidades não costuma acontecer de forma rápida ou simples.

Mas, até o momento, alguns juízes e políticos parecem estar mais atentos.

Decisões judiciais já suspenderam algumas das operações mais rentáveis ??da Vale e congelaram R$ 12,6 bilhões (ou cerca de US$ 3,2 bilhões) em ativos da empresa.

Vale lembrar que ainda não houve destinação para estes valores - e bloqueios semelhantes aconteceram após episódio de Mariana.

No final da semana passada, outros oito funcionários da Vale, incluindo dois executivos, foram presos provisoriamente. Mandados de busca também foram servidos para quatro representantes da alemã TÜV SÜD.

Na última sexta-feira, após quase três anos engavetado, o Projeto de Lei 3.676/16, conhecido como 'Mar de Lama Nunca Mais', foi aprovado pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais por unanimidade.

O texto, que contou com mais de 55 mil assinaturas da sociedade civil, traz mais etapas para processos de licenciamento ambiental e fiscalização e proíbe a construção de estruturas próximas a comunidades no Estado.

De volta a Brumadinho, a luta dos moradores por justiça e a reconstrução de suas vidas está apenas começando.

Sob uma enorme marquise branca, erguida como parte do esforço de resgate, mais de 400 pessoas esperaram sentadas pela chegada de representantes da Vale aparecerem.

Por semanas, muitas dessas famílias têm vivido em abrigos temporários, sobrevivendo de cestas básicas e água engarrafada, tudo financiado pela empresa.

Com muitas escolas locais ainda fechadas, 30 ou mais crianças jogavam futebol na parte de trás da marquise. Uma sala de aula improvisada foi criada por voluntários de igrejas, que oferecem pinturas faciais, um canto para leitura e um espaço com almofadas para descanso.

Por gerações, a Vale tem sido a principal fonte de renda e estabilidade para as pessoas que moram aqui. Mas as mais de 300 vítimas e outros milhares de desabrigados e desempregados trouxeram aos moradores um misto de raiva e temor por impunidade.

Depois de quase uma hora de espera, três representantes da empresa aparecem. Mas o debate sobre compensações de emergência, abrigos e cadastros rapidamente escala para gritos e acusações.

"Para matar, vocês são rápidos", grita uma mulher no meio da multidão.

"Vocês mataram meu irmão em 10 segundos e agora vão esperar quantos meses para aliviar o que minha mãe está sentindo?"

A resposta da Vale é burocrática e desperta lágrimas em uma plateia abalada e impotente.

"Neste momento, não podemos nos responsabilizar por algo que ainda está sendo avaliado. Primeiro, precisamos entender a extensão do problema ", diz um dos representantes da empresa. "Ainda não temos informações suficientes para responder a essas solicitações."

Semanas depois, quase um mês após o desastre, a Vale finalmente concordou em pagar renda de emergência às famílias. O acordo prevê que todos os adultos que vivem em Brumadinho e em comunidades no entorno receberão um salário mínimo mensal (R$ 998), enquanto todas os adolescentes receberão metade de um salário (R$ 499) e as crianças terão direito a um quarto do salário: R$ 249,50 mensais.

Os valores serão pagos por um ano, retroativos até a data da tragédia - 25 de janeiro.

Como os moradores, o município ainda aguarda esclarecimentos.

Dias depois do desastre, o prefeito de Brumadinho, Avimar de Melo Barcelos, recebeu jornalistas na prefeitura e disse que a cidade "vive do minério".

"Cerca de 60% ou mais de nossa receita vem de royalties pagos pela mineração de minério de ferro. E a maior parte é paga pela Vale", disse.

Segundo Barcelos, a cidade "pararia" sem os recursos.

"Vai parar o comércio, vai parar quase tudo na cidade. Nós temos hoje 26 postos de Saúde da Família, temos hospital, Unidade de Pronto-Atendimento, temos as escolas, que nós dá o material escolar, tudo de primeira qualidade, nós não vamos ter como atender isso mais", afirmou.

"Infelizmente essa é a realidade e a gente vai cobrar da Vale."

Edmundo Netto Junior é um procurador federal que trabalha na força-tarefa que investiga a tragédia.

Ele passou todos os dias do ultimo mês visitando famílias que perderam - ou ainda procuram os corpos de - parentes.

Uma das famílias incluía o pequeno William, de sete anos.

A tia do garoto mostrou ao procurador um desenho feito por William naquela manhã.

No centro da imagem está um helicóptero brilhante pintado de azul e branco.

Mas, pendendo da parte inferior da aeronave, uma linha comprida representa uma das redes usadas pelas equipes de salvamento para recolher corpos na lama.

"Ele deu este desenho para um dos bombeiros e pediu para encontrarem seu avô", conta Netto Junior.

A pintura de William também mostra um traço vertical forte, desenhado logo atrás da rede dos bombeiros.

A imagem lembra uma cicatriz escura cortando a paisagem.

"Isso é muito forte", diz o experiente procurador. "Esta é uma comunidade que foi marcada para sempre."

Para ele, as tragédias deveriam ensinar aos municípios que é necessário diversificar fontes de renda e emprego. "É preciso construir um modelo menos dependente, em que outas atividades econômicas sejam prestigiadas. A mineração ocupa áreas enormes que também poderiam estar produzindo outas coisas - sejam plantações, indústrias, seja comércio e serviços."

Para ele, Mariana e Brumadinho deveriam ter imposto um modelo de mineração sustentável ao país.

"Uma mineração menos lucrativa. As tragédias nos mostraram que empresas como a Vale lucram a partir dos riscos que impõem às comunidades. O mesmo risco que reduz custos quando uma barragem é feita no modelo a montante permite a Vale um processo de mineração mais barato e rentável - mas também custos mais caros para a sociedade ", continua Netto Junior.

"Esses custos foram escondidos sob o tapete por muito tempo, mas após a tragédia os prejuízos para a sociedade ficam cada vez mais claros".

O desenho de um menino de apenas 7 anos seria um dos exemplos.

"A comunidade esta traumatizada. E vai levar esses impactos psicológicos para a vida toda." 

*Com colaboração de Camilla Costa, Amanda Rossi e Nathalia Passarinho