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A cidade de 3 mil pessoas tomada por um 'tsunami' de 20 milhões de pílulas de opioides nos EUA

Williamson, na Virgínia Ocidental, virou símbolo da crise de saúde pública que mata mais do que as armas - West Virginia Tourism Board
Williamson, na Virgínia Ocidental, virou símbolo da crise de saúde pública que mata mais do que as armas Imagem: West Virginia Tourism Board

Fernando Duarte - Do Serviço Mundial da BBC

31/03/2019 15h34

Williamson, na Virgínia Ocidental, virou símbolo da crise de saúde pública que mata mais do que as armas - e que agora está no centro de uma grande batalha legal no país.

Williamson é uma cidade de 3 mil habitantes no Estado americano da Virgínia Ocidental. A despeito do pequeno tamanho, o município consumiu um "tsunami" de pílulas de opioides entre 2006 e 2016: foram, segundo um relatório do Congresso americano, 20 milhões de unidades da droga que provoca uma epidemia de proporções nacionais e que virou problema de saúde pública nos EUA.

O mais recente episódio dessa crise ocorreu em 26 de março, quando a gigante farmacêutica Purdue acordou - em um dos muitos processos judiciais em torno do tema - pagar US$ 270 milhões ao Estado de Oklahoma, que acusa a fabricante do opioide OxyContin de ter, por meio de um marketing agressivo de seu produto, ajudado a fomentar a onda de overdoses que já deixou milhares de mortos no Estado.

No total, autoridades estimam que 218 mil americanos tenham morrido de overdose por opioides de receita médica entre 1999 e 2017, e a pequena Williamson se tornou um símbolo do problema.

Mas como uma cidade interiorana pôde ter sido inundada de remédios? Como a crise de saúde tomou a dimensão atual, colocando sob os holofotes uma gigante farmacêutica?

Milhões de receitas médicas

O influxo de pílulas a Williamson resulta em uma média de mais de 6,5 mil unidades de medicamento por morador da cidade.

Opioides são uma classe de drogas naturalmente encontradas na papoula, a mesma usada para produzir heroína. São prescritos para tratar diferentes graus de dor, porque agem de modo mais rápido, forte e duradouro do que analgésicos comuns.

Mas essas são as mesmas características que tornam os opioides não apenas potencialmente viciantes, mas também relativamente fáceis de causar overdose. A despeito disso, foram amplamente receitados a pacientes ao redor dos EUA nas últimas duas décadas. No ano de auge, 2012, o número de receitas passou de 225 milhões, ou 81,3 para cada 100 americanos.

Williamson é uma das centenas de cidades, condados ou Estados americanos que abriram processos judiciais contra a indústria farmacêutica.

E o OxyContin, da Purdue, se tornou o opioide receitado ligado ao maior número de usos excessivos, segundo a agência governamental Centro Nacional para Informação Biotecnológica.

"Pilliamson"

"Williamson ganhou o apelido de 'Pilliamson' (trocadilho com pill, que significa pílula em inglês) por causa dessa inacreditável quantidade de pílulas", diz à BBC Eric Eyre, jornalista baseado na Virgínia Ocidental.

Eyre venceu o prêmio jornalístico Pulitzer em 2017 de reportagem investigativa ao produzir uma série de notícias sobre o excesso de receitas médicas de analgésicos na Virgínia Ocidental, um dos Estados mais pobres de todos os EUA.

Dados da CDC, a principal agência de saúde americana, apontam que a Virgínia Ocidental tem a maior taxa de mortes por overdose no país: foram 57,3 mortes por 100 mil habitantes em 2017, mais do dobro da média nacional (21,7).

O condado de Mingo, onde fica Williamson, tem a quarta maior taxa nacional de mortes por excesso de medicamentos.

"Uma fuga"

"Altas taxas de mortes por drogas estão concentradas ou em comunidades abaladas e voltadas à mineração, ou as que dependem de empregos no setor de serviços", diz Shannon Monnat, professora-assistente na Universidade Syracuse, que estudou o impacto da crise de opioides na área rural americana.

"Para muita gente, as instituições de trabalho e família se desmembraram ao longo dos últimos 30 anos, e isso deixou algumas pessoas com pouco sentido na vida. As drogas são um jeito de escapar da dor emocional ou a realidade de uma falta de conexão ou propósito na vida."

Em 2017, uma reportagem da emissora NBC entrevistou o serviço de atendimento emergencial de Williamson, que à época disse atender uma média de 50 casos de overdose por mês.

"É correto dizer que todo mundo em Williamson deve conhecer alguém afetado pelo abuso de drogas", diz à BBC Roger May, fotógrafo nascido na cidade.

"(O abuso) começou com os trabalhadores da mineração, que precisam do remédio para controlar suas dores, mas rapidamente começamos a ouvir histórias de pessoas da família também usando medicamentos (opioides), inclusive adolescentes, que roubavam as pílulas para levar a festas. Então, alguns anos depois, víamos as pessoas postando no Facebook que alguma pessoa havia tido overdose ou morrido."

Ponta do iceberg

Os números que Eric Eyre revelou em suas reportagens para o jornal Charleston Gazette-Mail mostraram que a crise em Williamson era apenas a ponta do iceberg.

Documentos obtidos por ele na Agência Nacional Antidrogas (DEA, na sigla em inglês) mostram que distribuidores farmacêuticos mandaram 780 milhões de pílulas de oxicodona e hidrocodona, os analgésicos opioides mais comuns, para farmácias da Virgínia Ocidental entre 2007 e 2012.

"Há o caso de Kermit, cidade de 400 moradores na Virgínia Ocidental, que também recebeu milhões de pílulas. Mas Williamson se tornou mais simbólica por causa do volume (de medicamentos) e do fato de que as pessoas viajavam centenas de quilômetros para comprar remédio lá", agrega Eyre.

Williamson fica perto da fronteira da Virgínia Ocidental com os Estados de Kentucky e Tennessee.

Essa localização geográfica, somada a uma regulação à época frouxa do influxo de remédios, fez com que a cidade virasse um destino perfeito para a abertura das chamadas "clínicas de tratamento da dor' - e para uma onda de receitas médicas de opioide.

As pessoas começavam a fazer fila às 6h da manhã na porta das farmácias, para pegar remédios.

Uma única médica, Katherine Hoover, abriu consultório em Williamson em 2002 e, até 2010 - quando a polícia realizou uma intervenção em sua clínica - ela já havia prescrito opioide 333 mil vezes.

'Plano de negócios'

Frankie Tack, especialista em vício em drogas da Universidade de Virgínia Ocidental, é parte de um grupo de acadêmicos que acredita que comunidades rurais se transformaram em boas oportunidades de expansão de negócios para gigantes farmacêuticas.

"Não acho que as empresas tenham acidentalmente despejado todas essas pílulas em cidades como Williamson. Era parte de um modelo de negócios, de alvejar comunidades que estariam sob maior risco", diz Tack à BBC.

"Na Virgínia Ocidental, há tantas cidades com gente envolvida em trabalho manual (que provoca dores no corpo) e com menor acesso a serviços médicos. Algumas sequer tem hospitais."

Ele conta que entrevistou pacientes que ingeriam opioides "sem saber o que eram, muito menos que era viciante".

"Se você analisa essa epidemia, vê que as vítimas eram inicialmente pessoas de meia-idade, gente com mais probabilidade de necessitar medicamentos para dor."

Mas fabricantes e distribuidores de medicamento têm sistematicamente negado essas acusações.

Dor crônica

Mas para entender como a epidemia chegou no ponto atual é preciso voltar duas décadas no tempo.

Em meados da décade de 90, cerca de 100 milhões de americanos eram, segundo estimativas, afetados por dor crônica, o que levou autoridades de saúde a pedir por menor regulação no uso de analgésicos mais poderosos.

O argumento principal em favor disso era de que pacientes com dor crônica - de idosos a operários que carregavam nas costas anos de trabalho braçal - teriam uma qualidade de vida melhor se tivessem acesso a medicamentos mais fortes.

A discussão evoluiu a ponto de o nível da dor ser declarado um "quinto sinal vital" dos pacientes - o que significa que sua medição e gerenciamento passou a ser visto como tão importante quanto o monitoramento da temperatura, pressão arterial, taxa respiratória e batimentos cardíacos.

Logo, receitas médicas com opioides passaram a ser distribuídas por todo o país - e farmacêuticas iniciaram uma corrida por sua parcela de mercado.

Multas

Uma dessas empresas é a Purdue Pharma. Em 1996, a companhia começou a vender seu carro-chefe, o OxyContin. Em 2001, já havia gerado US$ 1 bilhão com vendas do opioide.

Rapidamente, porém, começaram a surgir relatos de mortes ligadas ao excesso de opioides, puxando uma alta na taxa geral de mortes por overdose nos EUA - de 16.849 em 1999 para 36 mil em 2007.

No mesmo ano, a Purdue foi multada em mais de US$ 600 milhões, depois de admitir culpa por enganar o público a respeito do risco de vício presente no OxyContin. Foi uma das multas mais altas já aplicadas a uma empresa farmacêutica na história dos EUA.

A empresa de informações de saúde IQVIA estima que o OxyContin tenha gerado à Purdue US$ 35 bilhões em vendas. Pesquisas apontam que o medicamento tenha respondido por 82% das vendas da empresa em 2017.

No início deste mês, a Purdue anunciou que estava avaliando pedir falência, para conter os processos legais contra si e negociar acordos fora dos tribunais.

O acordo em Oklahoma seria o primeiro em que a companhia responderia perante um júri popular a respeito da responsabilidade das empresas farmacêuticas na crise de opioides americana. O caso foi decidido em acordo extrajudicial, mas a farmacêutica é ré em centenas de outros processos.

As mortes por overdose continuam crescendo - foram mais de 70 mil casos em 2017. Autoridades têm contido as receitas médicas, mas ainda assim elas são altas - 58,7 receitas a cada 100 americanos.

Ao mesmo tempo, viciados em opioides têm recorrido a medicamentos falsificados ou a drogas ilícitas, como a heroína.

Investigação no Congresso

Overdoses são hoje a maior causa de mortes entre adultos abaixo de 55 anos e matam tanto quanto armas de fogo e acidentes de trânsito somados.

"Já houve epidemias de drogas antes nos EUA, mas elas tendiam a ser concentradas em 'bolsões'. Esta é diferente: muitas pessoas se viciam, mesmo quando usam o opioide corretamente", diz Frankie Tack.

O "tsunami" de pílulas em Williamson foi um dos destaques de uma investigação do Congresso - tornada pública em dezembro passado - a respeito da crise de opioides na Virgínia Ocidental.

A investigação teceu duras críticas não apenas às empresas farmacêuticas, mas também à agência antidrogas DEA.

"Nossa apuração revelou falhas sistêmicas tanto por distribuidores quanto pela DEA, que contribuíram - e fracassaram em conter - a crise de opioides no Estado", disse em comunicado o líder do Comitê de Energia e Comércio da Casa, Greg Walden.

Especialistas preveem que a montanha de processos legais contra farmacêuticas resultem em vultuosos acordos extrajudiciais, tais quais os que envolveram a indústria tabagista americana no fim dos anos 1990 - um dos acordos superou o valor de US$ 200 bilhões.

"Cidades, condados e Estados abriram processos legais buscando reparações contra os gastos públicos relacionados à epidemia de opioides", explica Nora Engstrom, professora de Direito da Universidade Stanford. "Alguns economistas estimaram que, em 2015, o custo econômico dessa crise foi de US$ 504 bilhões, ou 2,8% do PIB americano."

No âmbito local, esses custos são sentidos mais fortemente. No condado de Mingo, onde fica Williamson, um levantamento estimou que a crise de opioides custou quase US$ 7 mil para cada habitante - cuja renda per capita é pouco superior a US$ 20 mil.

"Os opioides devastaram comunidades inteiras na Virgínia Ocidental e em outras partes dos EUA", diz Roger May. "A sensação é de que tiraram vantagem de algumas pessoas."