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O vergonhoso passado do reformatório nos Estados Unidos onde foram encontrados dezenas de corpos de meninos

Pierina Pighi Bel (@PierinaPighi) - BBC News Mundo

25/05/2019 18h34

A escola Arthur G. Dozier funcionou de 1900 a 2011 sob responsabilidade do governo do Estado da Flórida. Ali, faleceram dezenas de menores de idade. Ex-alunos relatam que sofreram abusos físicos e psicológicos.

Jerry Cooper viu um garoto correr até morrer, durante um treino de futebol no reformatório Arthur G. Dozier, nos Estados Unidos, em 1961. Não foi o único caso. No local, que funcionou de 1900 a 2011 sob responsabilidade do governo do Estado da Flórida, dezenas de menores morreram.

No caso presenciado por Cooper, o menino "desmaiou, mas depois foi obrigado a correr outra volta, porque achavam que ele estava fingindo. E então ele caiu morto".

Segundo ex-internos, diversos abusos psicológicos e físicos como este ocorreram no reformatório, que funcionava na cidade de Marianna, no norte da Flórida.

Em 2013, foram descobertos 55 enterros nos terrenos da escola. E, em março, a empresa de limpeza ambiental Geosyntec encontrou 27 "anomalias" no local e recomendou tratá-las como "possíveis túmulos".

O que permitiu que esse centro de terror durasse 111 anos?

Senado da Flórida pediu desculpas às vítimas

Os abusos e mortes em Arthur G. Dozier levaram o Senado da Flórida a pedir desculpas às vítimas, em abril de 2017, seis anos após o fechamento do local.

"Esses ossos contam a história", disse o senador Darryl Rouson. "Eles contam uma história vergonhosa (...) Nós pedimos desculpas."

A história começou há 119 anos, quando o local foi inaugurado com o propósito de ser um reformatório para menores que haviam cometido algum crime. Mas, com o tempo, foi se tornando mais parecido com uma prisão, de acordo com um relatório de 2016 da Universidade do Sul da Flórida.

Pouco depois de ter sido criada, a instituição começou a receber jovens que haviam cometido delitos menores, como "incorrigibilidade" ou "falta à escola". Além disso, começaram a chegar crianças órfãs de até 5 anos.

Cooper, que viu a criança morrer de exaustão durante uma prática esportiva, chegou ao reformatório quando tinha 16 anos, por tentar escapar de casa três vezes. Assim que chegou, percebeu que a administração do local estava cometendo erros.

"A escola estava no meio do nada, isolada, eu acho que ninguém se importava com o que acontecia ali. A equipe do lugar estava livre para fazer o que quisesse a qualquer momento."

Mas o que faziam?

Relatos brutais

Os relatos de abusos começaram a aparecer em 1903, quando o local tinha apenas três anos.

De acordo com o relatório de 2016 da Universidade do Sul da Flórida, investigações realizadas por comitês legislativo descobriram que crianças de até cinco anos eram acorrentadas, internos eram obrigados a fazer "trabalho forçado", eram espancados, não recebiam educação, comida ou roupas. O local era "uma prisão" ou um "campo de prisioneiros com pouca ventilação e com superlotação".

Em 1914, um incêndio matou entre 10 e 12 pessoas que estavam trancadas em "celas escuras", com grades nas janelas e portas, vigiadas por guardas armados. Assim, não puderam escapar. Além disso, ninguém tentou resgatá-las.

Nos anos seguintes, funcionários, psicólogos e políticos denunciaram "espancamentos brutais, maus-tratos e isolamento".

Corpos com hematomas

Quando Cooper chegou ao reformatório, em 1961, os encarregados do local diziam aos internos que eles eram "um lixo" ou ameaçavam castigá-los, mesmo que não tivessem feito nada, conta ele.

"Eles nos batiam até que o corpo ficasse roxo, deixavam marcas nas nádegas e nas pernas", relata Cooper. "Vi muitos meninos espancados até sangrar, sangrando através de seu jeans", lembra. "Era pior do que se podia imaginar, especialmente para crianças pequenas".

Segundo Cooper, nem sempre havia uma razão para as sessões de espancamento.

"Eles levavam a gente para a 'Casa Branca', (uma construção) que era usada como local de castigo. Podiam levar a gente a qualquer hora do dia ou no meio da noite, tiravam da cama para bater na gente", conta.

Cooper diz que foi levado duas vezes à Casa Branca: uma por se recusar a jogar futebol e outra por brigar com um trabalhador.

"Uma vez eles me acordaram às 2 da manhã para me levar para a Casa Branca. A minha bata e a minha cueca ficaram grudadas na minha pele por causa dos golpes e feridas, eu fiquei com a pele preta e azul, cortado da cintura até os joelhos, minhas nádegas ficaram pretas como breu por cerca de três semanas, eu precisava de pontos, mas eu não os recebi", diz ele.

Até 1968, a escola teve um campus para internos "brancos" e outro para alunos de cor". O tratamento era "tão ruim para negros e brancos", segundo Copper. E, "se você fosse branco e eles te vissem conversando com um homem negro, isso era motivo para uma viagem para a Casa Branca", completa.

Denúncias frustradas

Mais de uma vez, os sobreviventes do reformatório fizeram denúncias coletivas contra vários funcionários e agências do estado da Flórida. Relataram abusos, como manter internos em confinamento solitário.

Mas nenhuma denúncia resultou em condenações contra qualquer um dos acusados.

Em 2009, Cooper e outros sobreviventes formaram a associação "Meninos da Casa Branca", para denunciar o abuso que alegam ter vivido na escola.

Glenn Hess, promotor estadual da Flórida encarregado de investigar o caso, disse à BBC News Mundo que "não era possível processar o caso depois de tantos anos, em grande parte porque os trabalhadores dos anos em discussão já estavam mortos".

No entanto, os depoimentos levaram o Departamento de Justiça dos EUA a investigar e reconhecer os excessos cometidos na escola, em 2011. O órgão afirmou que "muitos dos problemas foram o resultado da falta sistemática de treinamento, supervisão e vigilância", mas suas conclusões não se transformaram em sanções penais.

Nesse mesmo ano, o reformatório fechou devido a uma "crise orçamentária". Sua história, no entanto, continuaria aberta.

Mais sepulturas

Em 2013, antropólogos forenses da Universidade do Sul da Flórida foram autorizados a escavar uma área conhecida como "Boot Hill", que o reformatório usava como cemitério.

Como resultado, eles encontraram 55 túmulos e 51 conjuntos de restos humanos. As crianças haviam sido enterradas em caixões simples. Os restos foram recuperados juntamente com objetos como fivelas de cintos, botões e até mesmo um mármore.

Agora, o governo da Flórida está "cuidadosamente explorando a área onde as 27 anomalias foram identificadas", disse uma porta-voz da instituição à BBC News Mundo. "Se restos humanos forem encontrados, eles serão recuperados respeitosamente."

Nas próximas semanas, autoridades locais e estaduais e partes interessadas se reunirão para decidir o que fazer, continuou a porta-voz. "Esperamos que através deste processo possamos trazer algum alívio às vítimas, suas famílias e todos os afetados", acrescentou.

Cooper acredita que existam ainda mais sepulturas em Arthur G. Dozier. "Temos uma lista de aproximadamente 180 meninos desaparecidos". "Minha maior preocupação é que encontremos todas as crianças que podem estar enterradas na propriedade. Eu acho que serão encontrados mais corpos."

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