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Manifestações pró-Bolsonaro dão força para reforma da Previdência avançar, avalia analista político

Mariana Alvim

Em São Paulo

27/05/2019 18h58

A presença de apoiadores do governo observada nas ruas no domingo (27/05) atualiza a força do bolsonarismo e pode ser interpretada pelo Congresso como um apoio popular inédito à reforma da Previdência, na avaliação de Fernando Schüler, doutor em filosofia política e professor do Insper.

As manifestações melhoram as condições de negociação do governo no tabuleiro político do Congresso. Isto é evidente. Não é possível chegar à conclusão inversa, que li de alguns analistas, segundo a qual o sucesso dos movimentos faria mal ao governo. Não faz

Fernando Schüler, doutor em filosofia política

Nos últimos dias, analistas e políticos se dedicaram a prever os impactos das manifestações, inicialmente estimuladas pelo presidente Jair Bolsonaro, na relação do Planalto com sua própria base política e com outros poderes --sobretudo o Judiciário, representado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), e o Legislativo, protagonizado principalmente por parlamentares do chamado centrão (conjunto informal de partidos sem um posicionamento ideológico evidente).

Para Schüler, a retórica inflamada por vezes estimulada pelo próprio governo --e na mesma medida pela oposição, ele destaca, compondo um "diálogo de surdos"-- pode gerar "efeitos adversos" no Congresso mas, em termos pragmáticos, o novo modelo político representado por Bolsonaro mostra que suas pautas podem avançar também por caminhos diferentes.

Exemplo disso seria, para o analista, o de que "a reforma da Previdência está andando sozinha no Congresso", tendo se descolado do governo.

Em um diagnóstico mais amplo, porém, o pesquisador vê neste tipo de retórica o reflexo de uma "guerra cultural" fomentada na internet e cuja hostilidade e irrelevância debilitam a democracia e a própria capacidade de decisão do governo --como em batalhas recentes encampadas pelo Ministério da Educação.

As manifestações podem ser entendidas como um termômetro da popularidade do governo?

Fernando Schüler - As manifestações mostraram que o bolsonarismo prossegue sendo uma força política relevante na sociedade. A narrativa que embalou as manifestações reprisou o tema geral da campanha de Bolsonaro: a ideia do líder popular que se põe contra o sistema. O "recado" à velha política, a ideia difusa de que há uma elite em Brasilia que não permite que o país mude e avance.

É evidente que se trata de uma ideia muito vaga. Ninguém sabe bem para onde se deseja avançar, e nem quem são de fato as elites. Neste domingo, figuras como Rodrigo Maia, o centrão e o STF encarnaram este papel.

O que não deixa de ser curioso: Rodrigo Maia é o maior fiador das reformas que o próprio governo propõe ao Congresso. De todo modo, houve uma evidente demonstração de força do bolsonarismo.

E como avalia a presença da pauta da Previdência nas ruas?

Schüler - Era difícil imaginar uma multidão de pessoas saindo às ruas para apoiar um projeto duro como o da reforma da Previdência, e isto efetivamente aconteceu.

Vai aí um exemplo da complexidade da democracia contemporânea. Um governo de centro, moderado e bem comportado, como o de (Michel) Temer, ou do PSDB, dificilmente conseguiria algo parecido com isto.

Por outro lado, me parece evidente que a reforma da Previdência tem, hoje, um amplo apoio na sociedade. Na última pesquisa do Ibope, 83% das pessoas responderam que preferiam a reforma a ter que pagar mais impostos, e 59% consideravam a reforma necessária. Vem se consolidando a ideia de que é preciso reformar o sistema, mesmo que estejamos longe de um consenso sobre os termos em que a reforma deve ser feita.

Mas há quem diga que as manifestações e a participação inicial do Planalto em incentivá-las podem atrapalhar a relação com outros poderes, como no Congresso com parlamentares do centrão.

Schüler - As manifestações melhoram as condições de negociação do governo no tabuleiro político do Congresso. Isto é evidente. Não é possível chegar à conclusão inversa, que li de alguns analistas, segundo a qual o sucesso dos movimentos faria mal ao governo. Não faz.

É evidente que há efeitos adversos. É previsível que haja alguma irritação por parte de partidos do centrão, e de figuras como Rodrigo Maia. Possivelmente toda esta crítica seja uma injustiça a Rodrigo Maia. Mas o Congresso é sensível ao que se passa nas ruas. Há uma força real, na sociedade, a favor das reformas.

No mais, tenho observado que a reforma da Previdência, desde a votação na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara, não pertence mais ao governo. Ela caminha à revelia e mesmo apesar do governo. E é liderada precisamente por Rodrigo Maia e setores ligados ao centrão. Não acho que isto mude, com as manifestações.

Atos pró-governo ocorrem em vários estados

UOL Notícias

Na semana passada, no Twitter, você enumerou algumas conquistas do governo no Congresso e ironizou: "Não estávamos em uma crise terminal? Não éramos ingovernáveis?". No entanto, alguns dias antes, o próprio presidente compartilhou nas redes sociais um texto afirmando que o Brasil é ingovernável.

Schüler - A minha crítica é para todos os lados. Existe hoje uma retórica, tanto do governo como da oposição, e uma espécie de modus vivendi difuso nas redes sociais que são pautadas pelo exagero, pelo imediatismo, por uma radicalização vazia...

O debate digital concentra um nível de radicalidade muito superior ao da média da sociedade.

Se você lê o mundo, a sociedade, a política pela internet, terá a impressão de que vivemos uma crise permanente, que o país está em guerra e estamos à beira do abismo. Discutimos a cor das roupinhas das meninas e dos meninos; depois, as notas do ministro da Educação no primeiro semestre; o presidente fala do golden shower, que aliás é o tuíte mais curtido até agora dele.

Boa parte do debate político na internet é pautado pela irrelevância. E a irrelevância cria um problema para a tomada de decisão, porque informação irrelevante produz decisões subótimas.

Mas, partindo do governo, este modus vivendi está justamente gerando crises que talvez não se impunham com tanta frequência em outros contextos.

Schüler - O governo não está isento disso, nem a oposição. Procuro ver isso como uma característica da democracia digital.

Por exemplo, o tal do texto que foi distribuído por WhatsApp (por Bolsonaro, sobre a "ingovernabilidade" do Brasil). Era absolutamente irrelevante. Tanto é que hoje ninguém mais se lembra do que estava escrito.

Dias depois, você vê que nada daquilo fazia sentido. O Congresso aprovou a reforma administrativa, a MP das Companhias Aéreas, a reforma tributária teve um pequeno avanço na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara...

Mas esta guerra cultural parece ter efeitos práticos, certo? Por exemplo, no caso dos cortes de verbas para as universidades federais?

Schüler - Esse é um bom exemplo. O que de fato aconteceu? No início da sua gestão, o ministro Weintraub (Abraham Weintraub, titular da Educação) cometeu erros. Na minha visão, eles derivam da sua incursão nesse universo da guerra cultural.

Quando ele diz que vai fazer cortes por causa da "baderna", quando sugere que alunos filmem professores, ou quando dá a entender que ciências humanas são menos importantes ou úteis...

Todo esse conjunto de declarações foi justamente esse elemento teatral, de uma guerra cultural - eu diria, inútil da política. "Inútil" em que pese produzir impactos na política.

Agora, quando vemos os cortes --os cortes não, os contingenciamentos-- isso é uma decorrência perfeitamente previsível da crise fiscal brasileira.

É um contingenciamento porque este ano tivemos um fator adicional: a expectativa de crescimento da economia não se realizou (para 2019).

Se não fizermos reformas (como da Previdência), não é um problema de gostar ou não gostar. O problema é objetivo: não tem como fabricar dinheiro. Então, esses cortes são um aperitivo do que vai vir, objetivamente.

Essa questão das universidades surge no debate político como se fosse uma questão ideológica, e não é. E aí é um erro das duas partes: o governo erra e a oposição também. O Brasil vive hoje um diálogo de surdos.

O governo explica mal, comunica mal, ideologizou a questão no início; e a oposição também se recusa a enfrentar o problema das reformas, do déficit fiscal.

E como avalia decisões do Congresso que vão na contramão da agenda do Planalto, como a permanência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) no ministério da Economia e a demora no avanço do pacote anticrime de Sergio Moro (ministro da Justiça e Segurança Pública)?

Schüler - O governo Bolsonaro foi constituído dentro de um novo paradigma - goste-se ou não. Não foi um governo produzido a partir de uma negociação no sistema partidário: ele compõe o governo a partir de sua convicção.

Então, o governo não tem uma base orgânica no Congresso, e possivelmente não terá. É outro padrão, alguns chamam de nova política.

O que estamos assistindo hoje é um aprendizado em torno desse modelo. Um exemplo que para mim está se tornando muito claro disso é que a reforma da Previdência está andando sozinha no Congresso --ela se descolou do governo.

Houve uma aprovação na CCJ que não foi liderada pelo governo, mas por 15 partidos --sem que praticamente nada tenha sido negociado, no sentido convencional do termo.

Mas houve uma sequência de liberação de emendas parlamentares no contexto da tramitação da proposta da Previdência.

Schüler - As emendas parlamentares são de execução obrigatória. O governo pode administrar o ritmo de liberação de emendas, mas não pode fazer escolhas. Isso diminui em muito o poder de barganha em relação às emendas.

De verdade, o governo negociou muito pouco com as moedas de troca convencionais.

Estou vendo que o governo fará negociações no varejo, mas em um volume e com uma organicidade muito menor do que no passado.

O fato de a reforma da Previdência estar andando de maneira descolada do governo é um sinal de que esse conceito vago que estamos apelidando de "nova política" talvez esteja funcionando. O governo bem ou mal vem mostrando que resultados no Congresso podem ser obtidos sem o troca-troca tradicional.

Em outubro, em entrevista à BBC News Brasil, você afirmou que Bolsonaro estava gradativamente sendo "domesticado" e que sua ascensão não representava risco à democracia. Você mantém essa avaliação?

Schüler - Evidente. Continuaremos tendo até o final do governo a exasperação, o barulho, uma certa radicalização... Mas do ponto de vista prático, temos uma democracia em pleno funcionamento.

A não ser que qualquer coisa que desagrade a alguém passe a ser entendido como risco à democracia.

Quando falo em um governo mais "domesticado", não é uma autocontenção por parte do governo --é uma contenção que as instituições fazem.

A democracia é uma máquina de moderar posições: não é que as pessoas ficam mais gentis, mas o processo torna a tomada de posições mais moderada no final.

Você vê a história desse governo, é uma história de recuos --no caso do pedido para que alunos fossem perfilados e filmados cantando o hino, no porte de fuzil para civis...

Os teóricos que fizeram drama, falaram de risco democrático, precisam se explicar. O risco democrático é simplesmente um presidente do qual eles discordam? Na minha visão, isso não é o risco democrático --isto é a democracia.

Sou um grande admirador daquele que é um dos maiores líderes políticos dos últimos 50 anos, o Barack Obama. No dia seguinte à eleição do Trump ele disse: tem muita gente com a cabeça quente, mas a democracia é um zigue-zague -um dia a gente ganha, no outro perde, e quem perde vai para casa, esfria a cabeça e aceita a legitimidade dos outros.

O governo Bolsonaro teve início em 1º de janeiro de 2019, com a posse do presidente Jair Bolsonaro (então no PSL) e de seu vice-presidente, o general Hamilton Mourão (PRTB). Ao longo de seu mandato, Bolsonaro saiu do PSL e ficou sem partido até filiar ao PL para disputar a eleição de 2022, quando foi derrotado em sua tentativa de reeleição.