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Brasil na OCDE: O que o país cedeu aos EUA em troca de apoio à entrada no 'clube dos países ricos'

10/10/2019 20h25

Discussão sobre apoio oficial dos americanos à entrada na organização ocorre após série de concessões, inclusive comerciais, de Bolsonaro a Trump.

Esse texto foi atualizado às 14h40 de 15 de janeiro de 2020.

Depois de parecer que não o faria, o presidente americano, Donald Trump, deve cumprir uma promessa que fez ao presidente Jair Bolsonaro no primeiro semestre do ano passado ? a de apoiar o ingresso do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Quando Bolsonaro visitou Trump na Casa Branca, em março do ano passado, saiu de lá tendo ouvido do presidente americano que ele se comprometeria com o apoio.

Meses e muitas concessões brasileiras depois, o secretário de Estado Americano, Mike Pompeo, defendeu abertamente o ingresso da Argentina, e não do Brasil, no grupo de 36 países que compõem a organização, fazendo parecer que as cessões brasileiras haviam sido em vão.

Nesta terça-feira (14), os Estados Unidos voltaram à promessa inicial, anunciando o apoio ao ingresso do Brasil na OCDE. "Os Estados Unidos querem que o Brasil se torne o próximo país a começar o processo de admissão na OCDE. O governo brasileiro está trabalhando para alinhar suas políticas econômicas com os padrões da OCDE enquanto prioriza a admissão à OCDE para reforçar as reformas econômicas", afirmou em nota um porta-voz do Escritório de Assuntos do Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado americano.

"Anúncio americano de prioridade ao Brasil para ingresso na OCDE comprova uma vez mais que estamos construindo uma parceria sólida com os EUA, capaz de gerar resultados de curto, médio e longo prazo, em benefício da transformação do Brasil na grande nação que sempre quisemos ser", publicou no Twitter o ministro brasileiro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.

Bolsonaro também comentou a manifestação dos EUA na manhã desta quarta-feira. "A notícia foi muito bem-vinda. Vinha trabalhando há meses em cima disso, de forma reservada obviamente. Houve o anúncio [dos EUA], são mais de 100 requisitos para ser aceito, estamos bastante adiantados, inclusive na frente da Argentina. E as vantagens do Brasil são muitas, equivalem ao nosso país entrar na primeira divisão", afirmou.

O apoio às pretensões brasileiras de estar na OCDE era considerado pelo Itamaraty como seu principal resultado na política internacional de alinhamento aos Estados Unidos adotada na gestão atual.

No entanto, em outubro do ano passado, revelou-se que Pompeo havia defendido a entrada da Argentina, e não do Brasil, na OCDE, em uma carta datada de final de agosto. Na época, a informação foi revelada pela Bloomberg e confirmada por outros veículos, inclusive a reportagem da BBC News Brasil.

Agrados aos EUA

A OCDE, atualmente com 36 países, é um fórum internacional que promove políticas públicas, realiza estudos e auxilia no desenvolvimento de seus membros, fomentando ações voltadas para a estabilidade financeira e fortalecer a economia global.

Foi criada em 1960, por 18 países europeus mais EUA e Canadá. Além de incluir vários dos países mais desenvolvidos do mundo, o grupo abriu suas portas para nações em desenvolvimento como México, Chile e Turquia. Brasil, Índia e China têm status de parceiros-chaves.

O Brasil apresentou um pedido formal para ingressar na OCDE em 2017, durante o governo do ex-presidente Michel Temer (MDB).

A expectativa era de que o pedido fosse atendido rapidamente, mas as negociações emperraram. Um dos entraves seria justamente a posição do governo dos EUA: além do Brasil, havia outros países pleiteando a entrada, e Washington considera que a entrada em massa de todos eles descaracterizaria a organização.

Além de Argentina e Romênia, desejam fazer parte do grupo países como Peru, Croácia e Bulgária.

Antes de Michel Temer, durante os governos dos petistas Lula e Dilma Rousseff, o país não pleiteava o ingresso na organização. Apesar disso, o Brasil já trabalha com a OCDE em diversos temas desde a década de 1990.

Para além do apoio ao pleito brasileiro na OCDE, Brasil e EUA também firmaram uma série de compromissos comerciais. Bolsonaro concordou em abrir uma cota anual de 750 mil toneladas de trigo americano com tarifa zero, medida que afeta a Argentina, principal vendedor de trigo para o Brasil.

No fim de agosto, o Ministério da Economia decidiu não só prorrogar por mais um ano a importação de etanol americano isenta de uma tarifa de 20%, como elevou a cota dos 600 milhões de litros para 750 milhões de litros ? a taxa passa a ser cobrada quando o volume negociado supera a cota.

A medida atendeu principalmente aos interesses dos americanos, os maiores exportadores ao Brasil, de etanol, produzido a partir do milho ? segundo dados oficiais, 99,7% do etanol importado pelo país vem dos EUA. Desagradou, em contrapartida, produtores do Nordeste brasileiro, que consideram desleal a competição com o preço oferecido pelos americanos,

Desde 2016, o Brasil é o país que mais compra etanol americano. A expectativa dos produtores brasileiros era de que o governo americano liberasse seu mercado de açúcar, um dos mais protegidos do mundo, mas não houve essa contrapartida por enquanto.

Concessões concretas em troca de apoio simbólico

"A negociação (para o apoio dos EUA à entrada brasileira na OCDE) envolveu concessões muito concretas do Brasil em torno de expectativas de apoio mais simbólico dos americanos", afirma Elaini da Silva, professora de relações internacionais da PUC.

Silva cita outros exemplos, como a concessão aos EUA da exploração da base espacial de Alcântara, no Maranhão, a isenção de vistos para turistas do país sem reciprocidade para brasileiros, e o fato de o Brasil ter abdicado do status de país em desenvolvimento nas negociações junto à Organização Mundial do Comércio (OMC), o que poderia trazer prejuízos tarifários às exportações brasileiras.

O tratamento diferenciado prevê benefícios para países emergentes em negociações com nações ricas. O Brasil tinha, por exemplo, mais prazo para cumprir determinações e margem maior para proteger produtos nacionais.

Além do impacto direto nas futuras negociações comerciais brasileiras, essa decisão afetou a relação com países do Brics ? grupo formado por Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul.

Isso porque essas nações vão acabar sendo mais pressionadas a abrir, também, mão do tratamento diferenciado. E a Índia já está retaliando o Brasil.

"Na OMC, a Índia já vetou outro dia a nomeação de um embaixador brasileiro para negociar questões na área de pesca e foi um veto ligado exatamente a essa negociação entre Estados Unidos e Brasil pela entrada na OCDE", explicou à BBC News Brasil antes da reviravolta o professor Marco Vieira, da Universidade de Birmingham, no Reino Unido.

"Portanto, o Brasil está se isolando não só no contexto de economias-chave na Europa e no acordo do Mercosul, mas também com parceiros do Sul global: as economias emergentes como a Índia."

Bolsonaro também não colocou na mesa para discussão o aumento protecionista de impostos sobre o aço ? medida de Trump contra os chineses que prejudicou o Brasil, tampouco o fim dos subsídios governamentais à produção de soja americana, que a torna competitiva em relação à safra nacional do grão.

E, além disso, o Brasil tem endossado a visão americana para o Oriente Médio. Antes de se eleger, Bolsonaro comprometeu-se a transferir a Embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, assim como fez Trump. Depois, recuou. A medida é polêmica, já que os países árabes defendem que a cidade deverá ter sua soberania repartida entre israelenses e palestinos.

Em dezembro, o Brasil inaugurou um escritório comercial em Jerusalém. Presente, o filho de Bolsonaro, deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), disse que aquele seria um primeiro passo para a transferência da Embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém. "[Meu pai] me disse que existe um compromisso firme, que a transferência da Embaixada a Jerusalém será realizada", disse o deputado.

Pressa?

Trump também anunciou no ano passado o Brasil como seu "aliado preferencial extra-Otan" ? nome para designar países que não são membros da aliança Organização do Tratado do Atlâncito Norte (Otan) mas que são aliados estratégicos militares dos EUA, ou seja, que terão um relacionamento de trabalho estratégico com as Forças Armadas americanas.

Para o Brasil, isso significa vantagens de acesso a tecnologia militar americana. Mas, segundo alguns analistas, também poderia arrastar o país para conflitos e disputas com países como China e Rússia, algo totalmente fora da agenda brasileira, além de ser de interesse dos EUA porque colocaria o país em sua área de influência de maneira ainda mais segura.

As concessões brasileiras, no entanto, talvez tenham sido apressadas.

"Como o Brasil tem se mostrado um aliado incondicional da gestão Trump, é provável que eles queiram extrair ainda mais concessões do país", afirma o embaixador Paulo Roberto de Almeida.

Reviravolta

Quando o apoio dos EUA à entrada da Argentina na OCDE foi revelada, em outubro do ano passado, o governo brasileiro foi tomado de supresa.

Havia dentro do próprio governo a expectativa de que o aperto de mãos com Trump seria o suficiente para que o Brasil furasse a fila de nações postulantes a membros da OCDE. O protocolo, no entanto, se impôs.

"A diplomacia internacional tem um tempo próprio, bem mais lento que o tempo da política de redes sociais do Bolsonaro. O processo de ingresso na OCDE leva anos. O presidente quis sugerir à sua base que sua relação especial com Trump faria milagres, mas não existem milagres", afirma Guilherme Casarões, professor de política internacional da Fundação Getúlio Vargas.

Após a repercussão da carta de Pompeo, em outubro do ano passada, a Embaixada dos EUA no Brasil divulgou comunicado reiterando apoio à entrada do Brasil na OCDE, mas ressaltando que expansão do grupo deve ser feita "em um ritmo controlado". Depois, o Departamento de Estado americano divulgou nota afirmando que o país apoiava, sim, a entrada do Brasil na OCDE e que a carta revelada pela imprensa "não refletia com precisão a posição dos Estados Unidos" em relação à ampliação da organização.

"Apoiamos com entusiasmo a entrada do Brasil nesta importante instituição e os Estados Unidos farão um esforço grande para apoiar a entrada do Brasil", dizia o texto.

O secretário Pompeo reproduziu a mensagem no Twitter, afirmando também que o governo dos EUA dá apoio a que o Brasil "inicie o processo" de entrada na OCDE. Bolsonaro retuitou as mensagens do americano acrescentando, em inglês, a frase "Not today, fake news media!" ("Hoje, não, mídia mentirosa" em tradução livre).

Mais tarde, o próprio Trump postou sobre o assunto em seu Twitter. Ele chamou de "fake news" a reportagem da Bloomberg e afirmou que "o comunicado conjunto que eu e o presidente Bolsonaro divulgamos em março deixa absolutamente claro meu completo apoio ao início do processo brasileiro para se tornar um membro da OCDE. Os Estados Unidos apoiam o presidente Jair Bolsonaro".

A mensagem deixa claro que os americanos consideram que o Brasil está apenas iniciando sua jornada para se mostrar apto a compor a OCDE.

Nos bastidores, autoridades brasileiras pressionaram pelo informe da embaixada para mitigar a reação negativa à carta de Pompeo. O Itamaraty e a embaixada brasileira em Washington não comentaram. Já a OCDE afirmou que o ingresso de seis novos membros está em curso e que o processo é sigiloso e depende do consenso entre os membros atuais.

Publicamente, integrantes do governo agiram para minimizar a decisão dos EUA.

"Toda a histeria sobre a OCDE na imprensa revela o quão incompetentes e desinformadas são as pessoas que escrevem sobre política no Brasil. Não há fato novo. Os EUA estão cumprindo exatamente o que foi acordado em março e agindo de acordo com o cronograma estabelecido na ocasião", afirmou no Twitter Filipe G. Martins, assessor especial da Presidência para assuntos internacionais.

"Argentina enfrenta desafios conjunturais que tornam o início do processo de acessão emergencial. Por isso, Brasil e EUA concordaram com um cronograma que teria início com a Argentina. Trata-se de fato público e notório, omitido pela imprensa por incompetência ou desonestidade", acrescentou.

À época, o americano Michael Shifter, presidente do think thank Inter-american Dialogue, especializado nas relações entre EUA e América Latina, classificou o acontecimento como "definitivamente um grande abalo para Bolsonaro, que apostou tudo nesse relacionamento com Trump".

"Parece que a decisão dos EUA é a visão tradicional, ir devagar com a entrada de países na OCDE. Mas certamente Trump prometeu (a Bolsonaro) outra coisa", acrescentou.

Na sua visão, o que ocorreu poderia indicar que, ao contrário do alardeado, as relações entre EUA e Brasil não mudaram tanto assim.

"(Há) esta certa admiração mútua entre Bolsonaro e Trump, e muito da retórica dos dois soa muito parecida. Mas quando o assunto são decisões reais, talvez as coisas não tenham mudado muito. Está tudo no nível superficial, e quando você precisa agir para construir uma parceria mais significativa, como se tornar membro da OCDE, os EUA basicamente aplicam seus critérios normais sobre a extensão da OCDE, o que tem sido mais ou menos a política tradicional (em governos anteriores)."

Segundo observadores, Bolsonaro confiava em uma indicação expressa não apenas por sua propalada proximidade presidencial com Trump. Desde março do ano passado, quando ocorreu a visita, o governo brasileiro fez uma série de concessões, inclusive comerciais, aos americanos em troca do endosso à vaga na organização.

Agora, por fim, está obtendo apoio. Segundo a revista Época, responsável por revelar nesta terça, 14, a mudança do posicionamento dos EUA em relação ao Brasil na OCDE, a medida serve para "dar a impressão que o alinhamento brasileiro será recompensado", já que a sensação até agora é de que o Brasil havia cedido mais do que ganhado.


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