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Quem era Freddie Mercury fora dos palcos?

Nick Levine - BBC Culture

19/10/2019 13h28

O líder da banda Queen era uma figura extravagante, mas até hoje é um ícone enigmático pela forma complexa como lidava com sua etnia e sexualidade.

Em 1984, dois anos após a organização Gay Men's Health Crisis ser formada em Nova York para combater a Aids, Freddie Mercury teve seu primeiro hit solo com Love Kills. A letra da música não alude à doença que o mataria sete anos depois, mas é possível que seu título seja uma referência velada.

"Tudo em relação a Freddie Mercury dizia respeito ao que estava implícito", diz Martin Aston, autor de Breaking Down The Walls Of Heartache: How Music Came Out ("Derrubando as Barreiras da Dor: Como a Música Saiu do Armário", em tradução livre).

Love Kills está incluída em Never Boring ("Tedioso Jamais", em tradução livre), uma nova coletânea que reúne grande parte do que Mercury gravou depois que deixou a banda Queen, incluindo seu único álbum solo, Mr. Bad Guy, de 1985, e sua ambiciosa colaboração com o cantor de ópera Montserrat Caballé, Barcelona, de 1988.

O lançamento oferece uma oportunidade de explorar a identidade e o status complexos de Mercury como um ícone queer, especialmente desde que o filme Bohemian Rhapsody foi acusado de menosprezar ou "higienizar" as relações do cantor com homens.

É impossível saber como Mercury definia sua sexualidade, porque, pelo menos em público, ele nunca abordou isso diretamente. Durante sua vida, o jornal britânico The Sun classificou o cantor como "estrela do rock bissexual" e, nos últimos anos, a mídia frequentemente dizia que ele era gay.

Mas, quando a revista de música NME perguntou a Mercury em 1974: "E aí, você é flexível?" Mercury respondeu: "Você é uma vaca esperta. Vamos colocar desta forma: houve um tempo em que eu era jovem e inexperiente. É uma coisa pela qual os meninos passam. Eu tive a minha dose de brincadeiras de estudante. Não vou elaborar mais." Em outra ocasião, ele respondeu uma pergunta semelhante, dizendo de brincadeira:" Sou tão gay quanto um narciso, minha querida!".

Embora Mercury estivesse morando com Jim Hutton, seu parceiro há seis anos no momento de sua morte, ele deixou a maior parte de sua herança para Mary Austin, com quem namorou por um tempo semelhante nos anos 1970 e de quem permaneceu próximo.

Austin ainda vive na mansão em Londres onde Mercury passou seus últimos anos. Ela raramente dá entrevistas, mas disse ao jornal britânico Daily Mail em 2013 que Mercury falou antes de morrer: "Se as coisas tivessem sido diferentes, você teria sido minha esposa, e essa casa teria sido sua de qualquer maneira".

Uma nova identidade

A sexualidade de Mercury não é o único aspecto de sua identidade que é complicado. Ele nasceu em 1946 como Farrokh Bulsara, filho de pais indianos parsi, na ilha de Zanzibar, na época um protetorado britânico e hoje parte da Tanzânia.

Frequentou internatos que seguiam o estilo britânico na Índia, onde começou a usar o nome Freddie. Ele adotou o sobrenome Mercury mais tarde, depois que sua família foi para o Reino Unido em 1964 e começou sua carreira musical no oeste de Londres.

"Acho que mudar o nome era parte de ele assumindo essa persona diferente. Isso o ajudou a ser essa pessoa que queria ser. Bulsara ainda estava lá, mas, para o público, ele seria esse personagem diferente, esse deus", diz Brian May, guitarrista do Queen, em um documentário de 2000.

Este personagem também o ajudou a evitar de alguns dos preconceitos raciais da época. "Não havia espaço para pessoas como ele na indústria da música ocidental, e Freddie sabia disso", diz Leo Kalyan, cantor e compositor britânico, paquistanês e indiano queer que considera Mercury "o melhor artista de todos os tempos".

Kalyan diz que Mercury era "inteligente o suficiente para saber que ele basicamente tinha de se disfarçar de homem branco para ter sucesso", e diz que sua descendência do sul da Ásia ainda não é totalmente compreendida hoje, "porque os sul-asiáticos ainda são deliberadamente ignorados na indústria da música ocidental".

Atualmente, a sexualidade de Mercury não é ignorada da mesma maneira de antes, mas ainda não existe uma maneira definitiva de descrevê-lo segundo este aspecto.

"Acho que se Freddie estivesse vivendo agora, provavelmente o chamaríamos de 'queer' em vez de 'gay' ou 'bissexual'. Não se tratava apenas de sexualidade para ele. Toda sua identidade e a personalidade extravagante que projetava no palco são algumas das principais coisas pelas quais o Queen tornou-se conhecido", diz Ryan Butcher, editor do site LGBT PinkNews.

Mas, como Mercury nunca se declarou LGBT ou se alinhou publicamente com o movimento de direitos LGBT, pode-se argumentar que seu status como um ícone queer é questionável. "Eu sei que durante toda a sua vida, Fred não pensou que era gay, ou isso não era importante", disse May em 2008.

No entanto, Aston ressalta que Mercury se tornou famoso na década de 1970, uma época em que artistas raramente falavam abertamente sobre sua sexualidade. "David Bowie se descreveu como bissexual [publicamente], mas ele tinha uma rede de segurança em sua esposa e filho."

Aston também destaca que Judy Garland é celebrada como um ícone queer "mesmo que ela não tenha ' feito declarações sobre qualquer coisa relacionada à homofobia e aceitação de LGBTs".

Em 1986, quando Mercury e o Queen fizeram sua performance mais icônica no festival Live Aid, havia alguns artistas de sucesso declaradamente gays.

O single mais vendido no Reino Unido naquele ano foi Don't Leave Me This Way, dos Communards, cujo vocalista Jimmy Somerville tinha orgulho de ser gay e era muito envolvido com o movimento pelos direitos LGBT.

No entanto, o vocalista do Wham!, George Michael, permaneceu no armário, e Boy George, do Culture Club, começou a se tornar famoso alguns anos antes enquanto ao mesmo tempo colocava sua homossexualidade em segundo plano.

"Embora eu tenha dito na época que preferia tomar uma xícara de chá a fazer sexo, minha vida sexual era realmente desenfreada", disse George ao jornal britânico The Guardian em 2007. "Mas fui educado a pensar que isso era sujo e errado e não deveria ser tornado público."

A abordagem de Mercury para conciliar sua vida privada com sua personalidade pública como líder de uma banda de rock com uma considerável base de fãs heterossexuais era divertida e sofisticada.

Como ele nunca respondeu aos boatos sobre sua sexualidade, foi fácil para os fãs interpretar seu estilo extravagante e teatral como algo caricato em vez de algo que evidenciava sua natureza queer.

A música solo de Mercury, Living on My Own, originalmente lançada em 1985, mas tornou-se a mais ouvida do Reino Unido dois anos após sua morte ao ser remixada para as boates, é uma expressão cativante de solidão que pinta Mercury como solteiro, mas não necessariamente um "solteiro confirmado". "Ele era tão caricato que isso era quase um blefe duplo", acrescenta Aston.

Ryan Butcher vai mais longe, descrevendo Mercury como "quase um agente secreto para a comunidade LGBT, lançando essas pequenas sementes da cultura queer na mentalidade heterossexual".

Nos anos 1980, Mercury era conhecido por seus coletes brancos e bigodes apertados - sua versão do visual que emergiu do Castro, bairro gay de San Francisco e se tornou popular no mundo gay, mas que era menos familiar para os fãs de música tradicionais.

Pode-se argumentar que Mercury estava efetivamente se escondendo à vista de todos. Certamente, ele não deixou sua fama impedi-lo de visitar locais gays populares de Londres como a boate Heaven e o pub Royal Vauxhall Tavern. A atriz Cleo Rocos escreveu em suas memórias de 2013 que ela, Mercury e o comediante Kenny Everett até conseguiram infiltrar a princesa Diana neste pub com um disfarce.

As pistas que Mercury deu

Talvez uma das maneiras mais ousadas pelas quais Mercury se expressou neste sentido foi no clipe de 1984 do Queen para o single I Want to Break Free, em que ele e seus colegas de banda se vestiram como personagens femininas da novela britânica Coronation Street, uma decisão que prejudicou sua carreira nos Estados Unidos.

"Lembro-me de estar em uma turnê promocional no interior dos Estados Unidos e ver as pessoas ficarem pálidas e dizer: 'Não, não podemos exibir isso. Não podemos. Você sabe, parece homossexual", disse May em 2017.

Enquanto isso, nas músicas do Queen, sempre havia pistas sobre a vida privada de Mercury para os fãs que queriam - e tinham o conhecimento da cena gay - localizá-los.

No hit de 1978, Don't Stop Me Now, Mercury canta que ele quer "tornar você uma mulher supersônica" e "um homem supersônico a partir de você". No vídeo, ele veste uma camiseta do Mineshaft, um popular bar gay de Nova York da época.

Até o nome da banda, Queen (rainha, em inglês), pode ser visto como uma alusão à identidade de seu vocalista. "É tão óbvio do que se trata o nome 'Queen', mas, quando contei à minha mãe há alguns anos, ela não conseguiu acreditar e disse que sempre pensou que significava apenas 'realeza' ou 'majestosa'", diz Kalyan.

Kalyan diz ainda que a música de Mercury tem elementos de sua descendência sul-asiática, citando o uso da palavra árabe "Bismillah" em Bohemian Rhapsody. "Somente uma pessoa com conhecimento da cultura islâmica saberia essa palavra, que é a primeira palavra do Alcorão [que significa "em Nome de Deus"], e a colocaria em uma música", diz ele.

Kalyan acrescenta que, entre a comunidade do sul da Ásia, "é muito comum se saber que Freddie era indiano e tinha sido maciçamente inspirado por cantores de Bollywood como Lata Mangeshkar, conhecida por ter uma voz incrível como Freddie".

Mas quando se tratava de sua sexualidade e etnia, Mercury preferiu manter sua privacidade em vez de fazer declarações diretas até o fim de sua vida.

Como aponta Kaylan, "ele não falou sobre ir à escola na Índia ou sobre seu amor por Lata Mangeshkar. Isso não fazia parte da narrativa dele". Tampouco fazia parte disso sua sexualidade: em 22 de novembro de 1991, após o que chamou de "grandes especulações" na imprensa, Mercury finalmente divulgou uma declaração confirmando que tinha HIV e Aids, mas não mencionou seu relacionamento com Jim Hutton.

Cerca de 24 horas depois, ele morreu. "Pense nisso: uma das maiores estrelas do planeta anuncia que tem Aids e depois morre da doença", diz Ryan Butcher, para quem isso gerou "um choque cultural que parece quase inimaginável hoje".

Mercury havia sido diagnosticado com HIV quatro anos antes. Butcher acredita que sua amizade com Diana enquanto vivia com HIV e Aids pode ter sido um fator importante na decisão da princesa de promover uma maior conscientização sobre o vírus e a doença. Mas isso, como tantas coisas com Mercury, é algo que provavelmente nunca saberemos ao certo.

Quase 28 anos após sua morte, Freddie Mercury continua a ser amado. "Ele não era apenas um ícone, mas um tesouro nacional britânico", diz Aston. Kalyan o chama de "um grande ícone gay" e "um ícone pardo do sul da Ásia na música ocidental".

Não é possível saber Mercury teria gostado ou não de ser chamado assim, mas não se pode menosprezar o que ele conquistou em sua vida. Em uma época em que a homofobia e o racismo eram muito mais prevalentes do que hoje, ele era um sul-asiático líder de uma banda que lançou um dos singles mais icônicos do rock, Bohemian Rhapsody, e o álbum mais vendido na história no Reino Unido, Queen's Greatest Hits.

No entanto, também é possível imaginar que a mística que ele cultivou em torno de sua identidade, tenha ele sido forçado a fazer isso ou não, apenas engrandeceu seu status como um dos enigmas mais cativantes do pop.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site da BBC Culture.

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