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Autismo severo: 'Um dos nossos maiores desafios é proteger a nossa filha dela mesma'

Vinícius Lemos - De Cuiabá para BBC News Brasil

20/10/2019 10h41

Caroline Maduro foi diagnosticada na infância com a forma mais grave de do Transtorno do Espectro Autista. Estima-se que uma a cada 59 crianças tenha alguma característica desta condição, que, em alguns casos, pode envolver episódios de agressividade perigosos.

Caroline Maduro tem 29 anos, mas as paredes de seu quarto são forradas com placas de espuma coloridas muitas vezes encontradas em cômodos de crianças. Foi o jeito que sua família encontrou para evitar que ela se machuque.

Carola, como ela é chamada pelos parentes, tem autismo severo e, desde muito nova, tem crises de agressividade frequentes, que deixaram marcas em seu corpo, principalmente na cabeça.

"Um dos nossos maiores desafios é mantê-la íntegra, evitar que faça mal a si mesma", explica sua mãe, a dona de casa Graça Maduro, de 63 anos, à BBC News Brasil.

Carola precisa de cuidados constantes também porque tem dificuldades de fala e aprendizado e não consegue se alimentar ou ir ao banheiro sozinha. Sai de casa raras vezes, a maioria delas quando vai ao médico, sempre com a mãe.

Para cuidar da filha, Graça teve de abdicar da carreira de professora infantil e assistente social. "Não havia nenhum lugar onde poderia deixá-la enquanto estava trabalhando. Tive de parar. Naquela época, já era difícil. Hoje, as dificuldades continuam as mesmas."

A história de Carola evidencia as dificuldades enfrentadas por pessoas diagnosticadas com autismo severo e seus parentes. "Existe muito preconceito", diz Graça.

O Transtorno do Espectro Autista (TEA), conhecido popularmente como autismo, é uma desordem complexa do desenvolvimento cerebral caracterizada por dificuldades na socialização e comunicação, além de padrões de comportamentos repetitivos.

Manifesta-se em diferentes níveis. No mais severo, são necessários cuidados por toda a vida ? e os pacientes costumam ter outras condições, como deficiência intelectual, transtornos de linguagem, epilepsia ou síndromes genéticas.

Segundo um estudo de cientistas americanos, estima-se que, aproximadamente, uma a cada 59 crianças tenha alguma característica do TEA. Não há dados específicos sobre pessoas com o grau mais severo.

Pessoas como Carola têm inúmeras dificuldades no cotidiano. Por isso, o apoio dos parentes é fundamental. Os cuidados incluem tratamento multidisciplinar, intervenções psicoeducacionais e uso de técnicas para desenvolver a linguagem e a comunicação.

"Caso o autista grave tenha acesso a tratamento e apoio familiar, pode ter uma vida tranquila. Mas é importante olhar para todos os envolvidos, porque o esforço é constante. Muitas vezes, a família fica cansada ou adoecida com a situação", explica o psiquiatra Fernando Sumiya, colaborador do Programa do Transtorno do Espectro Autista (Protea), que capacita profissionais para lidar com essa condição.

Mãe e filha

Carola foi adotada quando tinha um 1 e 4 meses. Graça conta que morava próximo da casa da sua mãe biológica e acompanhou a gestação. "Essa mulher tinha perdido o marido quando estava grávida da Carola. Já tinha outros filhos e teve de continuar trabalhando, até o fim da gestação, para sustentar as crianças. Então, o fim de gravidez da Carola foi conturbado", conta.

Quando Carola nasceu, Graça diz que a mãe biológica não deu atenção ao bebê. "Ela não tinha os cuidados necessários com a Carola, nem a alimentava direito." Diz que então ela um dia a procurou. "Ela ofereceu a criança como quem oferece uma peça de roupa. Ccabei ficando com a minha filha, talvez por destino."

Em seguida, a dona de casa e o marido procuraram a Justiça para formalizar a adoção. "Fiz isso sabendo que existia alguma dificuldade, mas nunca pensei que fosse tão grave. Com 1 ano e 4 meses, ela parecia ter 8 meses. Na época, a gente ouvia falar pouco sobre autismo."

Com o passar do tempo, os atrasos de desenvolvimento se tornaram mais evidentes. Quando Carola tinha 7 anos, Graça ouviu de um psiquiatra que a garota era uma "doente mental irrecuperável". "Ele disse que terminaria meus dias visitando minha filha em um manicômio."

Apesar de Graça ter sido orientada por profissionais a internar a filha, nunca aceitou fazer isso. "Sempre soube que não era a saída."

Nos primeiros anos, Carola já apresentou dificuldades para caminhar, falar e socializar, mas seu autismo severo só foi diagnosticado aos 8 anos de idade. Como é comum entre diagnósticos deste tipo, também tem outras condições, como Transtorno Opositivo-Desafiador ? caracterizado por um comportamento desobediente -, Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) e epilepsia.

"Desde pequena, ela fez acompanhamento médico. O primeiro diagnóstico, por um neurologista, foi de atraso psicomotor. Ela começou a fazer tratamento com fisioterapeuta e fonoaudióloga e conseguiu evoluir bastante", relembra.

Família precisou se adaptar

Graça era dona de uma escola infantil em Petrópolis, na região serrana no Rio, onde mora até hoje. Carola chegou a estudar ali durante a infância, mas seu comportamento pouco sociável e às vezes agressivo foi um problema.

"Tentei primeiro uma escola especial, mas ela não se adaptou. Quando a levei para minha escola, muitos pais não gostaram, porque ela tinha surtos, gritava e assustava os outros alunos", diz Graça.

Como ela não encontrou um local para deixar a filha durante parte do dia, enquanto trabalhava, ela fechou sua escola. "Optei por cuidar dela."

Carola não foi alfabetizada, em razão de suas dificuldades de cognição. Aprendeu apenas conceitos básicos de cores e numerais. "Mas não outras coisas. Na época, não existia essa obrigatoriedade de ela ser aceita em uma escola."

O Ministério da Educação (MEC) afirma em nota à BBC News Brasil que atualmente proporciona meios para que estudantes com autismo frequentem escolas comuns e investe na formação de professores e em "salas multifuncionais" para a inserção destes estudantes em classes comuns do ensino regular.

Graça diz que a inclusão no ensino comum continua precária. "Hoje, as escolas são obrigadas a aceitar esse aluno, mas é uma inclusão fictícia. Os professores não conseguem cuidar dele no meio de outras crianças. Alunos com autismo acabam não interagindo com os outros."

Após Graça fechar a escola, ela passou a se dedicar à Carola e ao filho caçula, na época com 4 anos, com o apoio de uma cuidadora. Seu marido, que é microempresário, tornou-se o único responsável pelo sustento da casa.

A dona de casa afirma ser privilegiada pelo modo como consegue acompanhar a filha. "Tive a oportunidade de cuidar dela sem me preocupar tanto com a situação financeira, por mais que alguns períodos tenham sido difíceis. Podemos tratá-la com médico particular, que nos dá todo o suporte. Sempre a mantivemos confortável, bem alimentada e medicada. Muitos não têm essa possibilidade", diz.

O pai de Carola, Sérgio Maduro, diz que a vida da família mudou para que pudessem dar o acompanhamento adequado à filha. "Para que um possa sair, o outro tem de ficar em casa com a Carola. As dificuldades são muitas, porque não temos o apoio de ninguém", diz.

Um dos maiores medos da família é que Carola faça mal a si mesma. As placas de espuma foram colocadas no quarto após sucessivas crises de agressividade. "Por muitas vezes, desde a infância, ela bateu a cabeça na parede do quarto com força. Isso sempre nos preocupou", comenta Graça.

Segundo ela, Carola já falou diversas vezes em se matar. "Não sei muito bem se ela entende o que é isso, mas sempre tivemos medo de que concretize essa vontade", diz.

Carola também costuma dar socos em si mesma e já tentou agredir a mãe. Desde os 9 anos, Carola toma um medicamento antipsicótico, por orientação médica, para controlar as crises. "Nunca entendemos exatamente o que a leva a esses momentos de agressividade. Normalmente, há um gatilho. Às vezes, é alguma dor, mas nem sempre, e acabo não conseguindo identificar o que a incomoda", diz Graça.

Essa agressividade está presentes em diversos casos de autismo. Especialistas explicam que a característica pode estar atrelada à condição principalmente quando a pessoa apresenta outros problemas, como o Transtorno Opositivo-Desafiador.

"Nem todo indivíduo com autismo é agressivo. Depende muito das comorbidades (os transtornos relacionados) daquela pessoa. Mas, quando há agressividade, é importante contar com uma equipe multidisciplinar, porque é um tratamento que envolve vários profissionais", afirma Sumiya.

O tratamento de Carola

Não existe medicamento para tratar o autismo. Os remédios atenuam outras dificuldades. No caso de Carola, ela também é medicada para controlar sua epilepsia e distúrbio do sono, que pode fazer com que passe dias sem dormir.

O psiquiatra Thiago Coronato, que a acompanha desde 2015, explica que o tratamento se concentra em ajudá-la a dormir e seu comportamento agressivo. "O objetivo é melhorar a cognição dela e a interação com o mundo, além do trabalho de reabilitação psicomotor."

Carola também faz tratamentos alternativos, com supervisão médica. Por quase um ano, tomou óleo de canabidiol doado pelo pai de um garoto com autismo que não havia se adaptado ao produto e já havia conseguido autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importá-lo. "Mas não trouxe o resultado positivo que esperávamos, e acabamos não importando", afirma Graça.

Carola costumava sentar e andar sozinha até novembro passado, quando foi internada após uma grave crise epiléptica que a acometeu enquanto dormia. "Isso causou uma lesão cerebral, que a prejudicou ainda mais", diz sua mãe.

Graça criou uma página no Facebook, chamada "O autismo em minha vida", que tem quase 25 mil seguidores, na qual relata a rotina de Carola. "Comecei a publicar porque a quantidade de autistas no nível da Carola é grande, e a falta de apoio do poder público é imenso. As pessoas passam muitas necessidades, e isso precisa ser falado", diz.

Todos os tratamentos e remédios de Carola são custeados pelos pais em razão das dificuldades no Sistema Único de Saúde (SUS) para atender pacientes com autismo. Eles entraram na Justiça para consegui-los gratuitamente.

"O atendimento no SUS é muito precário. Depender do atendimento público e ficar aguardando vaga é muito complicado. Quase não existe psiquiatra na rede. Isso acaba deixando as famílias ainda mais transtornadas", pontua Graça.

Para Graça, as políticas públicas atuais são ineficientes para atender todas as pessoas com autismo severo. "Há muitos casos como o da minha filha. Com tantas dificuldades, muitos pais internam seus filhos, porque precisam trabalhar, e não há locais adequados que atendam pessoas com autismo. Normalmente, são hospitais psiquiátricos que atendem outros tipos de doenças mentais. Os autistas são tratados como doentes mentais e não recebem o apoio adequado para evoluir."

Em nota, o Ministério da Saúde disse à BBC News Brasil que pacientes com autismo são atendidos pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que oferece acompanhamento e avaliações para esses pacientes. "A avaliação multiprofissional é realizada por uma equipe composta por médico psiquiatra ou neurologista e profissionais da área de reabilitação para estabelecer o impacto e repercussões no desenvolvimento global do indivíduo", afirmou a pasta.

Segundo o ministério, 2589 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) no país que cuidam de pessoas "com transtornos mentais e usuários de álcool e outras drogas". "O objetivo é oferecer acompanhamento de saúde mental e reinserção social, pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários", afirmou a pasta.

Graça afirma que a filha estava regredindo antes de ter a crise epiléptica, o que gravou esse quadro. "Ela tem Transtorno Desintegrativo, que faz com que perda habilidades que já conquistou. Hoje, nossa luta é para conseguir fazer com que ela não regrida mais, para que possa ter mais qualidade de vida." Mas, com fisioterapia e tratamentos alternativos, Carola recuperou parte dos movimentos perdidos.

Por diversas vezes, Graça se viu esgotada física e emocionalmente, em razão do cuidado intenso com a filha. Mas diz que nunca pensou em desistir de Carola. Diz que continuará a se dedicar integralmente à ela. "Vivo em função dela, porque meu caçula tem 23 anos e se mudou para fazer faculdade. A gente amadurece muito quando passa por isso", afirma.

"Muitas vezes ouvi de médicos ou de pessoas próximas que não deveria cuidar dela. Diziam que era loucura abandonar minha vida por ela, que Carola não é minha filha. Mas é, sim. É minha responsabilidade desde o dia em que a adotei, e farei isso até quando Deus quiser."


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