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Usados como ofensas na crise do PSL, emojis já servem de provas em casos na Justiça

Na Justiça brasileira, emojis servem tanto para reforçar acusações quanto para refutá-las - AFP
Na Justiça brasileira, emojis servem tanto para reforçar acusações quanto para refutá-las Imagem: AFP

Matheus Magenta - Da BBC News Brasil em Londres

23/10/2019 06h14

Desenho de uma banana serviu, por exemplo, para condenação por racismo em São Paulo; em outro caso, mensagem usando emoji de rosto com beijinho e coração reforçou argumentos para rejeitar acusação de assédio no trabalho.

Usados em trocas de ofensas pelas redes sociais, os emojis tiveram papel de destaque na crescente crise que envolve o partido do presidente Jair Bolsonaro, o PSL. Mas o que talvez poucos saibam é que os emojis já servem de prova em ao menos duas dezenas de processos judiciais no Brasil, tanto para reforçar acusações quanto para derrubá-las.

Esses milhares de símbolos de teclados de telefones celulares e de aplicativos passaram a fazer parte nos últimos anos, por exemplo, de acusações formais de assédio sexual, injúria racial e ameaça de morte. A tendência é mundial, e um levantamento acadêmico nos Estados Unidos identificou uma disparada de processos com citações a emojis — em 2018, foram encontrados 38.

Um magistrado brasileiro define um emoji como "um pictograma ou ideograma que nada mais é do que uma imagem que transmite a ideia de uma palavra". Para alguns especialistas, a imagem suplementa ou enfatiza o que está escrito, mas geralmente demanda contexto para estabelecer seu sentido.

Magistrados brasileiros têm apresentado interpretações diversas para os ícones de rostos, gestos, comidas e animais, entre outros. A BBC News Brasil analisou dezenas de processos judiciais que citam o uso de emojis em trocas de mensagens envolvendo acusados e acusadores.

"Na referida mensagem, o denunciado anexou uma foto da vítima e de colegas de trabalho dela, inseriu a imagem (emoji) de uma caveira e uma faca, fazendo alusão à morte da ex-esposa e de seu colega", escreve um juiz brasileiro em um processo sobre violência doméstica. Nesse caso, três meses depois, o réu atirou contra os dois, que sobreviveram, e foi preso preventivamente. "Nota-se que o denunciado submete a vítima à flagrante violência cíclica."

Emojis surgem também em um processo em meio a uma conversa para acertar um assassinato. "Do celular examinado pelo relatório, após o envio de fotos da vítima, há a mensagem com vários emojis de arma de fogo, autorizando a morte do ofendido. Em seguida, a pergunta 'Vô mata então?' e a resposta 'sim'." A vítima acabou morta.

Além de reforçar testemunhos, os símbolos podem também estar no cerne da acusação.

A figura de banana serviu, por exemplo, para uma condenação por racismo em São Paulo. O emoji da fruta foi compartilhado ao lado de uma foto de um homem "com o intuito de associar a vítima a um macaco, em razão da raça negra", afirmou um juiz.

O acusado admitiu ter enviado o desenho a uma amiga, mas em outro contexto, como uma referência a "um apelido utilizado por ambos desde a infância" e afirmou que a montagem racista foi fraudada por alguém com intuito de prejudicá-lo. A pena de um ano de prisão pela injúria racial chegou a ser aumentada em um terço pelo juiz porque foi "veiculada por um meio que facilita a divulgação de mensagens, no caso, o aplicativo WhatsApp". O réu recorre em liberdade.

Em outro processo trabalhista, uma empresa de informática do Rio Grande do Sul foi condenada por assédio moral após denúncia de um ex-funcionário, que relata, entre outros pontos, que uma banana foi deixada em sua mesa e que colegas se referiram a ele em uma conversa com um emoji de um macaco deitado na neve. A empresa nega a acusação.

Guilherme Beraldo de Andrade, professor do curso de direito da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e doutor em ciências da linguagem, afirma que o Código Civil brasileiro não considera o uso de um emoji por si só como um ato ilícito que atente contra a dignidade de uma pessoa, por exemplo.

"O emoji por si só não representaria o fato anti-jurídico por si só, isolado, mas poderia consolidar ou não um entendimento. É um complemento", afirmou à BBC News Brasil. "Sem adentrar num caso específico, é preciso analisar todo o contexto para saber se um pictograma foi usado como aquiescência de um assédio ou uma conversa vazia para não colocar o emprego em risco, por exemplo."

Segundo ele, ainda não existe no Brasil uma jurisprudência sobre o valor do emoji, uma tecnologia de linguagem, como prova irrefutável num processo judicial, por isso, hoje parte-se de interpretações individuais de magistrados sobre a adequação moral de seu uso.

O talvez mais notório processo judicial internacional envolvendo emojis ocorreu em Israel, em 2018. Após visitarem um imóvel, os potenciais inquilinos enviaram uma mensagem ao proprietário com uma série de emojis comemorativos, entre eles uma garrafa de champanhe e um sinal com a mão conhecido também como "paz e amor".

Os futuros inquilinos desistiram de alugar o imóvel, mas o proprietário já havia retirado a propriedade do mercado. Um juiz decidiu que os emojis eram suficientes para denotar a intenção de alugar a residência — e determinou o pagamento de 8.000 shekels (cerca de US$ 2.000 ou R$ 7.360) por danos e honorários legais.

Sorrisos são usados para derrubar acusações de assédio

Se por um lado os emojis servem para reforçar acusações, por outro, essas imagens podem ser usadas para refutá-las. Em dois casos, magistrados interpretaram o uso de símbolos de rostos em trocas de mensagens como sinais de intimidade, e isso acabou reforçando decisões de rejeitar duas acusações feitas por mulheres.

Na primeira denúncia, um supervisor é acusado de ter pressionado uma funcionária contra a parede tentando beijá-la e de mandar mensagens em redes sociais "de natureza romântica ou sexual" fora do expediente. Ela fora subordinada dele por dois anos.

"Nota-se, ainda, que um pouco abaixo a autora envia um 'emoji' em que se visualiza um beijinho com coração, o que reforça ainda mais a conclusão de que, ainda que o interesse romântico não fosse recíproco, a autora dava sinais de que o era", escreveu um juiz trabalhista de São Paulo, que rejeitou o pedido de indenização por danos morais decorrente de assédio sexual.

Em outro processo trabalhista em São Paulo, uma ex-funcionária de uma rede de lanchonetes também acusou o chefe de assédio sexual, disse ter sido demitida por tê-lo rejeitado e foi à Justiça pedir indenização por danos morais. Mas perdeu na primeira e na segunda instâncias.

"Não se extrai das impressões do aplicativo WhatsApp o alegado assédio sexual, aliás, os símbolos (emojis) permitem concluir uma intimidade autorizada pela reclamante", escreveu a magistrada que relatou o recurso apresentado por ela.

Segundo a ferramenta Emoji Tracker, 9 dos 10 emojis mais usados no Twitter envolvem carinhas e corações. No topo está a imagem do rosto que chora de tanto rir.

Presença crescente de emojis na Justiça americana

O professor Eric Goldman, do curso de direito da Universidade da Santa Clara, na Califórnia, é uma das principais referências em emojis dos Estados Unidos. Ele fez um levantamento de processos judiciais no país que mencionam emoticons (desenhos com símbolos do teclado) e emojis (figuras em si). São 165 ao todo, de 2004 a 2018. O último ano concentra 30% dos casos.

Segundo o estudo, os primeiros emojis surgem em decisões judiciais americanas em 2015, em cinco casos. Em 2018, já somavam 38. Há menções a emojis de sorriso, tristeza, cara de anjo, beijo, cowboy, armas e dinheiro, entre outros exemplos.

Para Goldman, há uma série de desafios à interpretação dos emojis que vão além das diferenças regionais. Em sua opinião, os símbolos são pequenos e parecidos, mudam constantemente nas plataformas, têm significados múltiplos e fazem parte de uma "gramática" que não foi normatizada ou pacificada.

A variedade de símbolos com significados semelhantes "reflete as preocupações das plataformas com a proteção da propriedade intelectual dos emojis, o que os leva a introduzir variações desnecessárias que criam uma confusão que poderia ser evitável, mas a propriedade intelectual pode atrapalhar a capacidade de nos comunicarmos", escreve Goldman no artigo "Emojis e a Lei", de 2018.

Há iniciativas na internet que buscam reunir ou uniformizar símbolos e significados, a exemplo da Emojipedia, uma espécie de dicionário dos símbolos com significados, data de surgimento e a imagem que o código tem em diferentes celulares, por exemplo. O consórcio Unicode, organização sem fins lucrativos que normatiza a codificação dos caracteres dos teclados, tem uma espécie de repositório desses símbolos.

Parte dos especialistas exalta o surgimento dos emojis e sua contribuição à comunicação. O professor de linguística Vyvyan Evans, autor de O Código Emoji: A Linguística por Trás das Carinhas Sorridentes e dos Gatos Assustados, disse em entrevista recente à BBC que os emojis representam a "primeira forma verdadeiramente universal de comunicação do mundo" e "a nova linguagem universal".

Mas outros afirmam que esses símbolos não passam de ferramentas usadas para complementar a linguagem escrita. Um estudo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) tem usado emojis para ensinar computadores a entenderem o sarcasmo, que algoritmos não conseguem captar apenas "lendo" as palavras.