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Democratas vão às urnas nos EUA para definir qual esquerda enfrentará Donald Trump

Eleitores do Partido Democrata vão às urnas no estado de Iowa para escolher o seu pré-candidato preferido no primeiro dia de votação do processo de primárias da legenda em 2020 - AFP
Eleitores do Partido Democrata vão às urnas no estado de Iowa para escolher o seu pré-candidato preferido no primeiro dia de votação do processo de primárias da legenda em 2020 Imagem: AFP

Mariana Sanches - @mariana_sanches

Da BBC News Brasil em Washington

02/02/2020 06h47

A partir de segunda-feira, dia 3, os democratas terão pouco mais de 4 meses para tentar decifrar o enigma que, desde 2016, atormenta a cabeça de políticos de esquerda e de centro-esquerda nos EUA: quem é o candidato ideal para vencer Donald Trump?

É a essa pergunta que eleitores do Partido Democrata começarão a responder quando forem às urnas no estado de Iowa para escolher o seu pré-candidato preferido, no primeiro dia de votação do processo de primárias da legenda em 2020.

Em quase 4 anos, desde que Trump derrotou Hillary Clinton e se tornou o novo ocupante da Casa Branca, o Partido Democrata se dividiu entre os que acreditam que o melhor oponente está o mais à esquerda possível no espectro político e os que apostam numa posição mais centrista para bater Trump.

De um lado, estão postulantes antiestablishment, o senador por Vermont e autodenominado socialista Bernie Sanders e a senadora de Massachussets Elizabeth Warren, conhecida por suas posturas anti-Wall Street. De outro, candidatos alinhados com a tradição moderada da legenda, como o ex-vice-presidente Joe Biden, o bilionário e ex-prefeito de Nova York Michael Bloomberg, o veterano do Afeganistão e ex-prefeito no estado de Indiana Pete Buttigieg, e a senadora por Minnesota Amy Klobuchar.

Até meados de 2020, um deles será confirmado como o candidato democrata e terá a missão de tentar levar o partido de volta à Presidência.

Como funcionam as primárias americanas?

Diferente do que acontece no Brasil, onde os caciques partidários frequentemente apontam a portas fechadas seus candidatos para cargos do Executivo e as convenções das siglas costumam ser meras formalidades de apresentação desses nomes, nos Estados Unidos há um processo longo de decisão do público sobre quem deve representar o partido, que os americanos chamam de primárias.

O resultado final sobre quem será nomeado depende da convenção do partido. Em julho, os democratas farão a sua: um encontro dos 4.750 representantes — chamados de delegados — que têm direito a voto.

Mas a maior parte deles não vota como quer: 3.979 delegados são obrigados a votar de acordo com a preferência expressa pelos eleitores do seu estado nas primárias. Cada um dos 50 estados americanos fará, antes da convenção em julho, uma eleição local para determinar quem é o pré-candidato mais popular ali.

Contabilizados os votos, no caso dos democratas, aqueles nomes que receberem ao menos 15% da preferência do público local terão direito a um percentual proporcional de delegados daquele estado a seu favor na convenção.

Na convenção nacional, o candidato que obtiver a maioria dentre esses 3.979 delegados, ou seja, 50% +1 dos votos, ganha a indicação.

Caso ninguém obtenha maioria nessa primeira votação — o que não é comum, mas pode acontecer dada a grande fragmentação dos democratas esse ano — entram em jogo os demais 771 delegados do partido, chamados de superdelegados.

Os superdelegados são lideranças democratas que não estão obrigadas a votar conforme o resultado das primárias em seus estados, mas que só se manifestarão caso os delegados garantidos via primárias não dêem maioria a alguém.

Os primeiros serão os primeiros

É essa intrincada disputa que se inicia em fevereiro. Os primeiros a expressar sua vontade são os eleitores de Iowa, um estado do Meio-Oeste americano com cerca de 3 milhões de habitantes e que responde apenas pelo 30º maior PIB do país.

Embora não seja particularmente uma potência política ou econômica, Iowa tem um peso relevante em determinar o futuro da disputa entre os pré-candidatos de um partido.

"Iowa não é o primeiro por ser o mais importante dos estados. Mas é o mais importante por ser o primeiro. O candidato que ganha ali obtém momentum, começa a eleição com imagem de vencedor, os holofotes se viram para ele. Isso traz uma vantagem competitiva tão grande que pode ser determinante para a escolha final", afirma Carlos Gustavo Poggio, professor de Relações Internacionais da Faap, especialista em Estados Unidos.

Desde 1972, em nove das doze primárias disputadas o vencedor em Iowa obteve a indicação final do partido. O ex-presidente Jimmy Carter, que governou os Estados Unidos entre 1977 e 1981, era um desconhecido mesmo entre os democratas no começo de 1976: só 4% dos correligionários expressavam preferência por ele.

Tudo mudou quando Carter, após um trabalho de campanha local, venceu a primária em Iowa. Foi assim que ele se tornou nacionalmente conhecido e acabou ganhando não apenas a indicação, mas a própria eleição presidencial.

Em apenas 3 ocasiões, Iowa falhou em predizer o vencedor da disputa. O ex-presidente Bill Clinton foi um dos que não caiu nas graças do público ali, mas chegou à Casa Branca.

No caso dos republicanos, como Trump disputa a reeleição e reuniu em torno de si apoio majoritário dentro do partido, não haverá disputa de primárias.

Afinal, quem é o candidato mais promissor?

As primárias dos democratas em 2020 entrarão para a história como uma das mais imprevisíveis porque, diferente do que normalmente acontece, os eleitores afirmam estar indo às urnas menos movidos por identificação com o candidato do que para escolher aquele que pode derrotar Trump.

Uma pesquisa feita pelo Instituto Ipsos para o site americano FiveThirtyEight mostra que essa é a principal motivação de dois terços dos democratas.

Em diversas pesquisas de opinião que simulam disputas com Trump, Biden é o democrata que mais abre vantagem contra o republicano — até 12 pontos percentuais de vantagem, a depender do levantamentos.

No entanto, essas pesquisas feitas muitos meses antes das eleições tendem a ser imprecisas, porque se baseiam mais na memória do eleitor sobre a pessoa do que na escolha final dele sobre um candidato — e Biden, como ex-vice-presidente, leva vantagem por ser bem conhecido dos americanos.

Além disso, um levantamento feito pela CNN em 15 Estados onde a diferença entre Trump e Hillary foi menor do que 8% em 2016 não mostra dianteira segura para nenhum dos democratas em relação ao republicano. A pesquisa foi feita em meados de janeiro.

Logo, esses levantamentos ainda não mostram um caminho seguro sobre quem teria o maior potencial eleitoral.

Mas o mesmo levantamento do FiveThirty Eight mostra que ao menos metade dos democratas está convencida de que o candidato mais palatável à maioria é Joe Biden. E aí começam os problemas, porque Joe Biden não é preferido por quase ninguém pelas ideias que defende.

Os moderados

Na dianteira na maior parte das pesquisas de opinião, Biden, de 77 anos, foi qualificado pela revista Time como o "favorito mais instável numa disputa em muitos anos". Ele não costuma seguir os scripts de discursos, é prolixo e com frequência escorrega em declarações polêmicas.

Na atual campanha, ao afirmar que quer liderar um governo sem partidarismos e reduzir a polarização, ele citou dois senadores que defendiam a segregação entre negros e brancos — de quem foi contemporâneo na Casa — como exemplos de "civilidade"no debate público, para horror de boa parte de seu partido.

Uma das estrelas dos democratas, a senadora negra Kamala Harris, chegou a dizer que se as ideias dos dois senadores tivessem prevalecido, ela nem sequer estaria nos Estados Unidos hoje.

Chamado a se desculpar, Biden se recusou, como se não compreendesse a diferença entre o tratamento dado à questão racial em 1970 e o debate sobre o assunto nos Estados Unidos 50 anos mais tarde.

Algo semelhante aconteceu quando sete mulheres vieram a público, no ano passado, dizer que Biden as havia tocado de maneira inapropriada. É frequente que ele distribua beijos e abraços não solicitados em seus eventos de campanha.

Confrontado sobre o tema, Biden afirmou ser um "político tátil" e disse que iria se esforçar para respeitar o "espaço pessoal das mulheres", uma resposta considerada insuficiente para parte dos democratas.

"Sempre haverá um vão entre Joe Biden e o futuro", definiu o democrata Adam Green, co-fundador do Comitê de Campanha de Mudança Progressiva, que apoia a senadora Elizabeth Warren.

A avaliação de Green faz especial sentido quando se verifica quem diz que votará em Biden: são em sua maioria democratas conservadores, com mais de 40 anos de idade, que não estão entusiasmados pelo plano pouco transformador e disruptivo de governo de Biden, mas se sentem seguros justamente por isso.

"A campanha de Biden depende inteiramente dessa imagem de que ele é aquele que pode vencer Trump. E nada mais. Se perder essa imagem, acabou a candidatura", afirma Poggio.

Também na categoria de mais moderados estão Bloomberg, Klobuchar e Buttigieg.

Os progressistas

Do outro lado da arena, estão os cerca de 30% a 40% dos eleitores democratas para quem as ideias importam mais do que a possibilidade de vencer Trump. Nesse grupo, Bernie Sanders lidera, com Elizabeth Warren em segundo. Ambos defendem transformações profundas no modo de organização da sociedade americana: querem um sistema de saúde público para todos, pretendem quebrar o monopólio das grandes empresas de tecnologia, como Google e Facebook, dizem que vão taxar grandes fortunas e reduzir o uso de combustíveis fósseis que alimentam o aquecimento global.

São medidas que agradam ao eleitorado democrata jovem, mas tendem a espantar democratas mais moderados. "Fazer uma campanha numa direção só é complicado para os democratas porque privilegia só uma fatia do potencial eleitorado do partido. A base eleitoral democrata é muito mais heterogênea do que a republicana", diz Poggio.

A campanha de Sanders tem ganhado tração e algumas pesquisas sugerem que ele pode chegar em primeiro lugar na disputa em Iowa — superando Biden, o que levou parte de seus oponentes a atacarem diretamente o caráter pouco gregário da candidatura.

"Arriscamos nomear um candidato que não pode derrotar Donald Trump em novembro. E esse é um risco que não podemos correr ", dizia uma mensagem da campanha de Pete Buttigieg sobre Bernie a apoiadores, no penúltimo fim de semana antes do início das primárias.

Uma questão da qual Sanders não quis fugir: "Em termos de elegibilidade, que é uma pergunta justa, precisamos de uma campanha que tenha energia, que empolgue, que tenha um forte movimento de base, capaz de arrecadar dinheiro das famílias trabalhadoras para fazer campanha e não apenas dos bilionários e executivos de Wall Street", afirmou em um comício recente em Iowa.

Os apoiadores de Sanders são tão aguerridos que contrariar o senador de Vermont inspira preocupação entre os próprios democratas. Em 2016, boa parte de seus eleitores sequer apareceu nas urnas para apoiar Hillary Clinton contra Trump. Pesquisas atuais mostram que eles seguem sendo os menos comprometidos com os democratas.

Em meados de janeiro, um dos apoiadores de Sanders publicou um artigo no jornal britânico The Guardian no qual acusa Joe Biden de ter um "grande problema de corrupção".

Sanders se desculpou com o colega e pediu moderação aos seguidores, mas o texto foi amplamente compartilhado pelos partidários de Sanders, o que demonstra o grau de animosidade deles em relação aos democratas mais moderados.

"Sanders é um outsider como Trump era para os republicanos em 2016. Se ele ganhar agora a indicação dos democratas, será o fim dos partidos americanos como os conhecemos", diz Poggio.

A tradicional carta de apoio eleitoral do jornal americano The New York Times, declaradamente uma publicação democrata, é uma síntese da divisão dentro do partido: pela primeira vez desde 1860, o veículo não foi capaz de apontar um nome. A publicação optou por recomendar o voto em duas candidatas: Elizabeth Warren, para os eleitores mais progressistas, e Amy Klobuchar para os mais moderados.

Em sua justificativa para as escolhas, o jornal resumiu o dilema dos democratas: "Os modelos (democratas) radical e moderado merecem séria consideração. Se já houve algum momento para se abrir a novas ideias, esse momento é agora. Se já houve algum tempo para buscar estabilidade, esse tempo é agora".