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Depois de receber transplante duplo de pulmões, jovem alerta sobre riscos de cigarros eletrônicos

Alessandra Corrêa - De Winston-Salem (EUA) para a BBC News Brasil

17/02/2020 16h06

'Quero que saibam que todos os seus sonhos e todos os seus planos para o futuro, tudo isso pode mudar se você continuar a usar cigarros eletrônicos. Por ser tão perigoso, realmente não vale a pena. Vocês devem parar', diz Daniel Ament à BBC News Brasil.

Em outubro do ano passado, no auge da crise provocada por uma misteriosa doença pulmonar ligada ao uso de cigarros eletrônicos que se alastrava pelos Estados Unidos, um adolescente anônimo virou manchete por ter sido o primeiro paciente afetado pelo surto a receber um transplante duplo de pulmões.

Agora, quatro meses depois e ainda se recuperando da cirurgia que salvou a sua vida, Daniel Ament, de 17 anos, decidiu revelar sua identidade e contar sua história para alertar outros jovens sobre os perigos relacionados ao uso de cigarros eletrônicos.

"Quero que saibam que todos os seus sonhos e todos os seus planos para o futuro, tudo isso pode mudar se você continuar a usar cigarros eletrônicos. Por ser tão perigoso, realmente não vale a pena. Vocês devem parar", diz Ament à BBC News Brasil.

Desde o primeiro caso, identificado em abril do ano passado, a doença, nomeada como EVALI, já causou 64 mortes e levou à hospitalização de 2.758 pessoas em todos os 50 Estados americanos, no Distrito de Columbia (onde fica a capital, Washington) e nos territórios de Porto Rico e Ilhas Virgens Americanas.

Antes de ficar doente, Ament era um adolescente que gostava de nadar, correr e velejar e sonhava em fazer parte dos Navy SEALs, força de elite da Marinha americana.

Hoje, ele precisa tomar mais de 20 comprimidos diários, e seu sistema imunológico ainda está comprometido.

Depois de dois meses e meio no hospital, onde os médicos constataram danos irreversíveis em seus pulmões e temiam que ele não fosse sobreviver, emagreceu 18 quilos e sofreu atrofia nos músculos.

"Tive de reaprender a respirar e a caminhar", conta.

Hábito cada vez mais comum

Ament, que nunca fumou cigarros convencionais, havia começado a usar cigarros eletrônicos aos 16 anos, poucos meses antes de ficar doente. O adolescente vive em Grosse Pointe, nos arredores de Detroit, no Estado de Michigan, e diz que muitos de seus colegas e amigos também fumavam cigarros eletrônicos.

"Era (um hábito) cada vez mais comum entre meus amigos", observa.

Ele conta que, no início, nem tinha seu próprio aparelho, fumando apenas quando os amigos ofereciam, mas com o tempo se tornou mais frequente.

Na maioria das vezes eram cigarros eletrônicos com nicotina, mas em cerca de dez ocasiões ele diz ter usado THC (tetra-hidrocanabinol, componente psicoativo da maconha). A maconha é legal em 33 Estados americanos ? em alguns para uso recreativo, em outros somente para uso medicinal.

Ao investigar a doença, o CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde americano) descobriu que muitas das mortes estavam ligadas ao uso de THC e à presença de acetato de vitamina E.

Esse componente em forma de óleo da vitamina costuma ser utilizado em cremes para pele e suplementos vitamínicos, mas não é autorizado em produtos à base de maconha para uso em cigarros eletrônicos. O CDC suspeita que acetato de vitamina E e outros componentes tenham sido usados para diluir o THC em produtos adulterados ilegalmente.

Mas Ament acredita que todos os cigarros eletrônicos que usou foram comprados em lojas autorizadas, e não do mercado negro. Além disso, 14% dos pacientes identificados com EVALI relataram ter usado apenas cigarros eletrônicos com nicotina, sem THC.

Os médicos não sabem que produto específico, se nicotina ou THC, causou os danos nos pulmões do jovem, mas apenas que a doença está ligada ao uso de cigarros eletrônicos.

'Risco de morte iminente'

Ament havia ouvido falar da doença misteriosa que estava afetando usuários de cigarros eletrônicos, a maioria jovens como ele, e decidiu parar de usar os dispositivos quando voltou às aulas, em setembro do ano passado, depois das férias do verão americano.

Mas, poucos dias depois, acordou com dor de cabeça, dores nas costas, febre alta e fadiga. Como os sintomas não passavam, foi levado ao pronto-socorro.

"Eu sentia dificuldade de respirar. E esta é a última coisa de que me lembro. Acordei 50 dias depois e só então soube que havia passado pelo transplante", relata.

Depois daqueles primeiros sintomas, a condição de Ament se deteriorou rapidamente. Ele foi internado no hospital Ascension St. John, em Detroit, no dia 5 de setembro. Inicialmente, a suspeita era de pneumonia. Mas os médicos constataram que seus pulmões estavam extremamente inflamados, cheios de líquido e tecido morto.

Menos de duas semanas depois, como seu quadro se agravava, ele foi transferido para o Hospital Infantil de Michigan, onde foi mantido vivo graças a uma máquina de oxigenação por membrana extracorpórea, chamada de ECMO, que atua como coração e pulmões artificiais, oxigenando e circulando o sangue quando os órgãos do paciente não são capazes de desempenhar essas funções.

Em 3 de outubro, Ament foi transferido pela terceira vez, para o hospital Henry Ford. Os médicos disseram que nunca haviam visto nada parecido com o que encontraram nos pulmões de Daniel. Os danos eram tão graves e o risco de morte era tão alto que ele foi colocado no topo da lista de espera para transplante.

"Ele corria risco de morte iminente se não recebesse o transplante de pulmões", disse o cirurgião Hassan Nemeh, que liderou a equipe responsável pela cirurgia, realizada em 15 de outubro.

Sonho interrompido

Depois de 50 dias sedado, Ament acordou no hospital e descobriu que havia recebido o transplante. Ele ainda ficou várias semanas internado, e passou o aniversário de 17 anos no hospital.

Aos poucos, ele reaprendeu a andar e está recuperando a força nos músculos. Mas os médicos salientam que a recuperação depois de um transplante como o dele pode levar vários meses.

Seu sistema imunológico ainda está fraco, e ele terá de tomar medicamentos pelo resto da vida para evitar que seu organismo rejeite os pulmões transplantados. O sonho da carreira militar teve de ser abandonado.

Ament ainda não voltou à escola, e está estudando online em casa enquanto se recupera. Mas nas últimas semanas ele tem percorrido algumas escolas da região onde mora para compartilhar sua história e alertar outros jovens para os riscos dos cigarros eletrônicos.

Ele também criou uma organização sem fins lucrativos, a Fight4Wellness, para aumentar a conscientização sobre o problema e ajudar adolescentes que querem abandonar o hábito.

"Não posso fazer nada do que tinha planejado, mas estou me concentrando em outras coisas, na organização e em voltar à escola", afirma ele, que está no penúltimo ano do ensino médio.

Epidemia entre os jovens

Ament sabe que não é fácil convencer jovens a abandonarem os cigarros eletrônicos, e conta que seu próprio irmão gêmeo ainda não conseguiu se livrar do hábito. "O vício é muito forte", afirma.

O uso de cigarros eletrônicos entre adolescentes americanos é descrito por autoridades de saúde como uma epidemia. Mais de um em cada quatro alunos do ensino médio relatam terem usados os dispositivos nos últimos 30 dias, muitos dos quais, assim como Ament, nunca haviam fumado cigarros convencionais.

Apesar de a venda para menores de idade ser proibida, o número de estudantes americanos do ensino fundamental e médio que usam cigarros eletrônicos saltou de 3,6 milhões em 2018 para 5,4 milhões em 2019, segundo o CDC. Em 2011, eram apenas 220 mil.

No início do ano, o governo americano anunciou a proibição da maioria dos cigarros eletrônicos com sabores ? que costumam atrair os usuários jovens. Mas a medida foi criticada por não englobar mentolados ou com sabor de tabaco e deixar de fora alguns tipos de cigarros eletrônicos.

Fabricantes afirmam que os cigarros eletrônicos são menos nocivos para os pulmões do que os cigarros convencionais, já que não incluem as toxinas perigosas, muitas delas cancerígenas, provenientes da combustão do tabaco.

Diferentemente de cigarros convencionais, nos cigarros eletrônicos ou vaporizadores a nicotina, THC ou aromatizantes são misturados a um tipo de solvente ou óleo, que atua como difusor ao ser aquecido por uma bateria, transformado em vapor, que é inalado. O sabor pode ser alterado com a inclusão de outros químicos nessa solução líquida.

Mas especialistas alertam para os riscos de alguns químicos e da mistura de diferentes componentes que, mesmo que sejam seguros para ingestão, podem ser tóxicos ao serem inalados, e afirmam que ainda pode levar anos até que os efeitos do uso de cigarros eletrônicos na saúde da população sejam conhecidos.

Ament não sabe quem foi o doador de seus pulmões, mas pretende escrever uma carta para a família. "Quero que saibam como sou grato por ter uma segunda chance", diz.

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