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Por que uma gêmea que sofreu experimentos de Josef Mengele perdoou os nazistas

Imagem do curta-metragem "Eva Kor, o Poder Curador do Perdão", da BBC Ideas - BBC Ideas
Imagem do curta-metragem 'Eva Kor, o Poder Curador do Perdão', da BBC Ideas Imagem: BBC Ideas

28/02/2020 13h48

A história de Eva Kor começa como a de muitas das vítimas do Holocausto: com a prisão pelo "crime" de fazer parte de uma comunidade condenada.

"Um dia, em 1944, minha família e eu fomos presos e embarcados em trens de gado, sem comida ou água", disse ela à BBC Ideas.

"Nos levaram para a Polônia e nos deixaram em uma plataforma de triagem no campo de extermínio nazista de Auschwitz."

Foi então que um guarda percebeu algo diferente. "Ele nos viu, eu e minha irmã Miriam, agarradas à minha mãe."

Os recém-chegados a Auschwitz foram classificados. Os "fracos" foram imediatamente para as câmaras de gás. Os "fortes" eram designados para os trabalhos forçados.

Mas havia outra categoria: aqueles que seriam úteis para o dr. Josef Mengele e seus assistentes.

"Ele nos arrancou dos braços da minha mãe. Eu lembro de olhar para minha mãe. Eu não sabia disso na época, mas nunca mais a veria."

Eva e a irmã dela de 10 anos foram levadas porque eram gêmeas e Mengele as queria para seus experimentos.

Ela relembra o terror da primeira noite. "No chão sujo estavam espalhados os corpos de três meninas. Eles estavam nus e com os olhos bem abertos. Era um olhar horrível."

"Eu nunca tinha visto alguém morto antes. Isso me impactou fortemente."

"Prometi a mim mesma, silenciosamente, que faria tudo ao meu alcance para garantir que Miriam e eu não terminássemos no chão da latrina, e que de alguma forma sobreviveríamos e sairíamos vivas daquele campo."

Mengele tinha sido assistente de um conhecido pesquisador que estudava gêmeos no Instituto de Herança e Higiene Racial de Frankfurt. Ele começou a trabalhar em Auschwitz em maio de 1943.

Lá, ele tinha um "suprimento" quase ilimitado de gêmeos para estudar.

Como médico em Auschwitz desde 1943, Mengele torturou mais de mil gêmeos e outros prisioneiros como parte de suas ideias deformadas sobre ciência.

"Eles nos deixaram nuas por horas e mediram todas as partes de nossos corpos. Foi horrível e humilhante", lembra Eva.

"Três vezes por semana, eles nos levavam ao laboratório de sangue, amarravam meus dois braços e tiravam muito sangue do meu braço esquerdo. Às vezes era tanto que eu desmaiava. Eles queriam saber quanto sangue uma pessoa poderia perder e continuar vivendo."

"Eles também nos davam injeções: no mínimo cinco no meu braço direito."

Um dia, depois de receber uma injeção, Eva ficou gravemente doente.

"Que pena, ela é tão jovem e só tem mais duas semanas de vida", disse Mengele. Eu sabia que ele estava certo. Mas me recusei a morrer.

"Se eu morresse, Miriam receberia uma injeção letal para que ele pudesse abrir nossos dois corpos e comparar as autópsias."

"Nas duas semanas seguintes, eu estava entre a vida e a morte. E tudo que me lembro é que eu estava me arrastando pelo chão porque não conseguia mais andar."

"E enquanto eu me arrastava, eu desaparecia. Oscilava entre consciente e inconsciente, mas o tempo todo eu dizia para mim mesma: 'Eu devo sobreviver, devo sobreviver'."

Eva e sua irmã sobreviveram e em 1945 foram libertadas de Auschwitz.

"Nove meses depois, voltamos para casa e descobrimos que ninguém mais em nossa família sobreviveu. Encontramos apenas três fotos enrugadas... isso era tudo o que restava da minha família."

Eva se casou e começou uma família nos Estados Unidos. Mas a saúde da irmã ficou prejudicada por conta dos experimentos nazistas.

"Em 1987, doei um dos meus rins para salvá-la, mas ela morreu em 1993 e fiquei arrasada."

"Ela era a única na família que estava viva."

Com o passar dos anos, Eva tentou se curar de seu passado traumático.

Ela tomou a improvável decisão de entrar em contato com um médico nazista: Hans Münch.

Em 20 de agosto de 1993, "quando eu estava indo à Alemanha encontrar um médico nazista, fiquei incrivelmente nervosa e assustada."

"O dr. Münch tinha 82 anos na época. Ele me recebeu com bondade, respeito e consideração. Fiquei surpresa que um nazista me tratasse com respeito."

"Hans Münch era bacteriologista em Auschwitz, mas também tinha outra função: esperava do lado de fora das câmaras de gás e, quando as pessoas morriam, assinava um atestado de óbito. Sem nome, apenas com o número de mortos."

"Ele me disse: 'Esse é o meu problema, é um pesadelo com o qual vivo'."

"Perguntei se ele estava disposto a me acompanhar até Auschwitz e fazer a mesma declaração que fez para mim. E ele disse que adoraria."

O dr. Münch revisitou as câmaras de gás com Eva para assinar um documento confirmando que elas existiam.

Eva queria agradecer.

"Eu sabia que agradecer a um nazista era uma ideia louca. Uma sobrevivente de Auschwitz agradecendo a um nazista! As pessoas pensariam que eu tinha enlouquecido."

"Tentei encontrar uma maneira de agradecê-lo e, depois de 10 meses, uma ideia simples surgiu na minha cabeça: Que tal uma carta de perdão minha, uma sobrevivente de Auschwitz?"

"Eu sabia que seria um presente significativo para ele. Mas descobri o que foi uma experiência transformadora: descobri que tinha o poder de perdoar."

"Ninguém poderia me dar esse poder. Ninguém poderia tirar esse poder de mim."

"Para me desafiar, decidi que podia perdoar Mengele, a pessoa que me fez passar pelo inferno."

Mengele havia sido preso pelas Forças Armadas dos Estados Unidos, mas foi libertado por uma unidade que não sabia que seu nome estava na lista dos principais criminosos de guerra.

Ele trabalhou como agricultor na Baviera antes de fugir para a Argentina em 1949.

Embora as autoridades da Alemanha Ocidental tenham emitido um mandado de prisão em 1959, Mengele permaneceu na América do Sul até sua morte por afogamento após um derrame em uma praia no Brasil, em 1979.

Ele foi enterrado em São Paulo sob o nome de Wolfgang Gerhard.

Mas Eva não precisava dele vivo para perdoá-lo.

"Não foi fácil, mas senti que um peso enorme havia sido tirado de mim. Finalmente me senti livre."

"Quem decidiu que eu, como vítima, ficaria pelo resto da vida triste, zangada, desesperada e desamparada? Me recuso."

"Você nunca pode mudar o que aconteceu no passado. Tudo o que você pode fazer é mudar sua reação."

"Minha irmã e eu fomos transformadas em cobaias humanas. Toda a nossa família foi assassinada."

"Mas eu tenho o poder de perdoar."

"E você também."

Em memória de Eva Kor, que morreu durante a produção dessa reportagem (1934 - 2019) - Getty Images - Getty Images
Em memória de Eva Kor, que morreu durante a produção dessa reportagem (1934 - 2019)
Imagem: Getty Images