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Países precisam 'se mexer', diz médico que monitora emergência do coronavírus na Itália

Lucas Ferraz - De Roma para a BBC News Brasil

14/03/2020 12h36

Em entrevista à BBC News Brasil, Giovanni Rezza, que coordena resposta à pandemia no país, reconhece erros e alerta: resposta de alguns países tem sido lenta.

Um dos rostos mais vistos pelos italianos na TV na primeira semana da emergência do coronavírus, que resultou num inédito confinamento nacional, foi o do médico Giovanni Rezza, diretor do departamento de doenças infectivas do Instituto Superior de Saúde, órgão subordinado ao Ministério da Saúde e principal centro de pesquisa, controle e consultoria técnico-científica da Itália.

Na atual crise, o ISS é o responsável por acompanhar a situação nacionalmente, reunindo dados regionais, vigiando a difusão e controlando as informações epidemiológicas do vírus. O instituto participa da divulgação de um boletim nacional, anunciado diariamente às 18 horas, em Roma, com o compilado das mortes do dia (mais de 1,2 mil até agora) , o número de novos infectados (média de 2 mil novos casos por dia) e os que eventualmente já se recuperaram.

Desde o acirramento da crise, Rezza participa dessa divulgação ? que os canais na TV acompanham ao vivo ? ao lado do diretor da Protezione Civile (equivalente italiano da Defesa Civil), Angelo Borrelli, outro comissário na linha de frente do enfrentamento ao corona.

"São dias longos, que parecem intermináveis. Não esperávamos nos encontrar numa situação assim tão grave, de improviso", comentou Rezza.

Em entrevista à BBC News Brasil por telefone, no fim da noite de sexta-feira (13 março), o médico disse que a Itália está sendo fortemente atingida pelo novo vírus porque ele chegou sorrateiramente num período frio em que é comum um aumento nos casos de gripe, o que dificultou a sua identificação no início.

Ele conta que o coronavírus já circulava pelo Norte do país (epicentro da crise italiana até agora) pelo menos desde janeiro e que será preciso esperar mais algumas semanas para avaliar os impactos da quarentena, prevista no decreto do governo até o dia 3 de abril.

Rezza reconhece falhas pontuais no início da crise e pede que os países estudem a emergência italiana para tirar lições. Na Lombardia, região do Norte e a mais afetada até agora, o sistema de saúde, considerado um dos melhores da Europa, está próximo do colapso.

"Se não houver contenção no Sul, os danos serão ainda piores", afirma ele.

Guitarrista nas horas vagas e admirador da Bossa Nova, o médico de 65 anos estava colaborando com pesquisadores brasileiros da Universidade de Goiás sobre o vírus do Mayaro, disseminado por mosquitos e que pode provocar sintomas semelhantes ao chikungunya, atividade que ele suspendeu por causa da emergência do coronavírus.

Confira os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil: Como tem sido acompanhar na linha de frente a emergência nacional?

Rezza: São dias longos, que parecem intermináveis. Vivemos com uma certa preocupação, pois não esperávamos nos encontrar numa situação assim. Pensávamos que o vírus fosse chegar aos poucos na Itália, mas nos encontramos improvisamente atingidos de forma pesada e numa região como a Lombardia, onde ele já deve ter começado a circular na metade de janeiro, durante o pico de influenza.

BBC News Brasil: O vírus chegou durante o pico de gripe que geralmente se registra em janeiro?

Rezza: Sim, entre janeiro e fevereiro. O novo vírus entrou em circulação num momento em que é normal haver mais casos de gripe. Tantos casos, no início, pareciam uma influenza. Foi difícil de diagnosticar naquele período. Esse foi um dos principais problemas. Quando nos encontramos de frente a esse situação, não tomamos tantas medidas ali para retardar a difusão.

BBC News Brasil: O que faltou no início da crise?

Rezza: Não aconteceu nada. Não se sabe como o vírus chegou da China. Muitas pessoas que têm o coronavírus não apresentam sintomas. Então se uma pessoa com um pouco de sintoma, que começou a tossir, mas não sentiu nada mais sério, ela começou a transmitir o vírus. Até que não se chegou a um caso grave, ninguém entendeu que o coronavírus estava por aqui. Porque todos poderiam pensar que era uma gripe, um resfriado forte. Isso provavelmente fez com que o vírus circulasse por um mês sem ser identificado, esse foi o maior problema. Quando as pessoas com infecção respiratória mais grave chegavam ao hospital, infectavam os operadores de saúde, médicos, enfermeiras, e assim o vírus se difundiu rapidamente.

BBC News Brasil: Quais são as lições dessa emergência?

Rezza: O problema é que o vírus se alastra muito rápido, se transmite muito facilmente, então pode infectar muita gente em pouco tempo. E isso pode provocar uma crise no sistema de saúde. Aqui temos uma população muito idosa, muitos pacientes precisam de terapia sub-intensiva ou mesmo intensiva, precisam de aparelhos para auxiliar a respiração, e aí começaram a faltar postos nas UTIs. Se não houver uma diminuição da circulação do vírus, colocamos em risco todo o sistema, na assistência e no tratamento. Colocamos em risco não só os doentes do Covid-19, mas todos os demais que convivem com outras doenças. Esse é o maior problema.

BBC News Brasil: Muito se falou nesta semana sobre o estresse dos médicos e enfermeiras e a alta contaminação entre eles. A Itália está preparada para enfrentar a emergência se ela piorar?

Rezza: A difusão do vírus explodiu em regiões que têm um ótimo sistema de saúde, como Lombardia e Vêneto. Os médicos italianos em geral são bem preparados. Os doentes eram muitos, muitos em UTIs, e também porque muitos operadores sanitários se infectaram, provavelmente não estavam todos preparados, faltavam máscaras apropriadas, algum problema aconteceu. Houve alguns focos de difusão dentro dos hospitais, o que é uma coisa absolutamente impensável.

BBC News Brasil: Isso aconteceu por causa da natureza desconhecida do vírus ou por erro de procedimento?

Rezza: Por ambos os motivos, por desconhecimento e por falta de precaução adequada. Especialmente no início. Depois, por falta de dispositivos individuais, por inexperiência ao lidar com um infecção contagiosa e perigosa, não foram tomadas todas as precauções.

BBC News Brasil: No início da crise, houve desencontros de comunicação e uma certa fricção entre o governo central e os governadores das regiões. Essa relação melhorou?

Rezza: Aquele foi um problema político entre o governo central e os governadores. Pode até haver desencontro sobre as questões políticas, mas a colaboração do ponto de vista científico existe e não há problema. As regiões estão colaborando, mas algumas têm um peso muito grande na emergência, como a Lombardia.

BBC News Brasil: A letalidade do Covid-19 na Itália é maior do que na China (6,7% contra 2,4%). Isso se explica pela grande população idosa ou o vírus chegou aqui com alguma mutação que o tornou mais agressivo?

Rezza: Não há sinal de mutação, ele é basicamente o mesmo que circulou na China. Isso se explica exatamente pela proporção maior de idosos, pessoas que já conviviam com patologias crônicas. Elas se agravam com o coronavírus.

BBC News Brasil: De cada quatro vítimas de covid-19 na Itália, três são homens. Há alguma explicação?

Rezza: Precisamos estudar os fatores que favorecem os danos nos homens. Precisamos observar se esse dado vai se atenuar com o tempo, ainda não temos uma evidência científica.

BBC News Brasil: Como está o sistema de saúde italiano nesse momento? Trabalha-se com a hipótese da crise se agravar no Sul?

Rezza: Precisamos ver se as medidas de distanciamento social vão funcionar. O grande medo é esse. Porque se um sistema de saúde como o da Lombardia entrou em crise, um dos melhores da Europa e direi também um dos melhores do mundo, certamente se a infecção chegar ao sul de forma potente provocará danos ainda maiores. Esse é um dos motivos para a quarentena ter sido imposta.

BBC News Brasil: Foi uma decisão acertada?

Rezza: Sim, certamente foi a melhor medida para o momento. Me surpreende que outros países europeus não estejam adotando, porque agora efetivamente é a melhor janela de oportunidade, o vírus já está circulando na Itália há algumas semanas, então eles poderiam ter feito qualquer coisa a mais para contê-lo. Da nossa parte, não tínhamos muita alternativa. Ou deixávamos o vírus se espalhar pelo sul ou tentávamos bloqueá-lo. Se não bloquear, pelo menos retardar a sua difusão.

BBC News Brasil: A reação dos outros países tem sido lenta?

Rezza: Havendo mais tempo, e visto aquilo que está acontecendo na Lombardia, penso que a resposta tem sido lenta. Deveriam se mexer antes. Muitos países ainda não começaram a dar atenção para a emergência.

BBC News Brasil: Como o senhor avalia o comportamento social na Itália nesses dias de quarentena?

Rezza: Vi uma grande mudança de domingo para segunda. Porque no domingo (dia 8) aconteceu de tudo. Gente que foi esquiar, gente que andava para a praia, pessoas que viajavam para o Sul lotando os trens. Aconteceu tudo aquilo que não deveria acontecer. Depois de segunda-feira, houve uma mudança de comportamento, como se uma preocupação tivesse tomado conta das pessoas. Em Roma, por exemplo, os casos estão aumentando, mas são relativamente poucos se comparados ao Norte. Roma hoje é uma cidade vazia, então quer dizer que alguma coisa está funcionando.

BBC News Brasil: É eficaz usar máscaras?

Rezza: As máscaras são uteis para a proteção dos outros. Elas bloqueiam a saliva. Se alguém tosse, ou tem um resfriado, elas diminuem o risco de infecção. Nesse ponto de vista, o uso pode ser positivo. Mas é inútil caminhar pela rua usando a máscara. Não serve para nada.


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