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Coronavírus: Boates de Berlim tentam sobreviver fazendo baladas 'virtuais'

Há anos a cena noturna da capital alemã resiste aos interesses de investidores - agora, a pandemia ameaça levar muitos clubes à falência - MENSCH MEIER/DIVULGAÇÃO via BBC
Há anos a cena noturna da capital alemã resiste aos interesses de investidores - agora, a pandemia ameaça levar muitos clubes à falência Imagem: MENSCH MEIER/DIVULGAÇÃO via BBC

Gabriel Bonis - De Berlim para a BBC News Brasil

06/04/2020 10h53

Há anos, a cena noturna da capital alemã resiste aos interesses de investidores. Agora, a pandemia pode levar muitos clubes à falência - e eles estão lutando para evitar que isso aconteça.

No início de 2020, Berlim perdeu a Griessmuehle, uma das casas noturnas mais famosas da meca da música eletrônica, que teve de fechar as portas. Os donos do espaço, uma antiga fábrica no valorizado distrito de Neukölln, pretendem construir ali lucrativos escritórios.

O feroz apetite de investidores e a gentrificação da capital alemã têm sido adversários constantes da vida noturna berlinense na última década. Famosa por sua liberdade e movimentos culturais alternativos, Berlim tem outras 24 casas noturnas ameaçadas, segundo a Club Commission, a associação das casas noturnas da cidade.

A cultura clubber de Berlim agora encara um problema bem maior: as boates estão fechadas desde 13 de março devido ao risco de contágio pelo novo coronavírus.

A pandemia do novo coronavírus ameaça uma indústria que gera 9 mil empregos, 168 milhões de euros (R$ 954 milhões) anuais em receitas diretas com eventos, quase 1,5 bilhão de euros (R$ 8,6 bilhões) em gastos de turistas (transporte, setor de hospitalidade, gastronomia, etc), e fazem parte da identidade cultural da cidade.

A pandemia ameaça uma indústria que gera 9 mil empregos, contribui consideravelmente com os cerca de 1,5 bilhão de euros (R$ 8,6 bilhões) que os turistas gastam ao ano e fazem parte da identidade cultural da cidade.

"Não temos renda, só doações no momento. E, claro, temos que pagar aluguel e impostos. Até agora, as doações cobriram os custos básicos. Ficamos impressionados com a resposta de nossos amigos", diz à BBC News Brasil Nanette Flaig, integrante do coletivo SO36, um legendário clube frequentado nos anos 1970 por David Bowie e Iggy Pop e que consegue a façanha de se manter há décadas no mesmo local em Kreuzberg.

"A primeira coisa que fizemos foi tentar reduzir nossos custos. Por isso, pedimos ao nosso senhorio para pagar o aluguel mais tarde e fizemos o mesmo sobre os impostos com as autoridades. Mas isso é apenas adiar a conta", afirma Elisabeth Steffen, do coletivo de organizadores do ://about blank.

"É uma situação muito difícil para a cultura clubber. Ninguém sabe quanto tempo ficaremos fechados. Esse cenário pode nos matar. Estamos coletando doações e fazendo merchandising, mas isso não cobre os custos", conta Anias Meier, do coletivo Mensch Meier.

Em um setor que depende da presença física de clientes em seus eventos, o isolamento social imposto pela pandemia pode significar a falência de muitas casas noturnas. É para evitar esse cenário que elas estão apostando em uma inusitada alternativa: as festas virtuais.

Por isso, a associação dos clubes Club Commission criaram o United We Stream, um movimento que transmite ao vivo as perfomances de DJs de vários clubes via streaming. Os sets ocorrem diariamente, sempre em um clube diferente.

Os conceitos das apresentações variam de acordo com as boates, mas os streamings mostram bandas tocando, geralmente, nos espaços tradicionais dos clubes sem a participação de ninguém além dos músicos - alguns até usam máscaras cirúrgicas - e das equipes técnicas.

Mas nada disso parece afetar os artistas, que investem em suas perfomances dançando e cantando de forma animada, como se tivessem uma plateia presente. O mesmo vale para os DJs, que surgem conduzindo os seus sets, ajustando equipamentos e controlando mixers em apresentações que podem passar de quatro horas.

Os shows costumam trazer elementos típicos das baladas berlinenses, como a iluminação seguindo o ritmo das músicas - incluindo luzes piscando e ambientes escuros. Tudo isso captado em diversos ângulos e câmeras, inclusive com efeitos visuais para criar uma atmosfera mais realista.

Os fãs participam de suas casas, do outro lado da tela do computador ou de smartphones, no isolamento, de onde podem dançar ou apenas acompanhar os sets. Para aqueles que desejam maior interação, há um chat ao vivo para comentários. Os vídeos atingem uma ampla audiência, alguns com mais de 200 mil visualizações.

O público paga valores mensais ou realiza doações durante os streamings. Toda a renda é revertida para um fundo a ser acessado pelas boates seguindo diversos critérios.

A idéia, explica Steffen, é que as pessoas doem aquilo que normalmente gastariam em uma balada, como a taxa de entrada e bebidas. Em troca, eles podem assistir a shows ao vivo. "Não sabemos quanto tempo isso vai durar, então temos que encontrar uma maneira de superar essa crise."

"Atualmente, há 300 mil euros (cerca de R$ 1,7 milhão) no fundo. Isso não será suficiente. Mas isso também mostra que há o interesse das pessoas em salvar a nossa cultura", completa Meier.

Como a receita gerada pelo projeto não é o bastante para socorrer todo o setor - que antes da pandemia pressionava políticos para que as boates fossem reconhecidas como patrimônios culturaia a serem protegidos pela cidade -, muitos clubes tiveram que recorrer ao Estado para pagar os funcionários. O governo alemão aprovou um mega pacote de 750 bilhões de euros (R$ 4,3 trilhões) para ajudar a economia do país a enfrentar a crise causa pelo novo coronavírus.

Flaig diz que a ajuda do Estado, entretanto, é limitada. "O Estado ajuda a pagar os funcionários fixos com uma espécie de salário desemprego. Esse programa era normalmente destinado a trabalhadores da indústria, mas agora foi aberto para basicamente todos os que estão com problemas devido o coronavírus. Mas os estagiários são pagos com (o dinheiro das) doações porque eles não podem obter benefícios de desemprego."

Em posição precária, o Mensch Meier diz que não conseguiu pagar o aluguel deste mês, mas que negociou um acordo. "Teremos que pagar o aluguel em dois anos, com juros de 4%. Não é como se pudéssemos dobrar nossas festas ou ganhar 4% a mais por todos os meses que ficamos fechados. Não podemos simplesmente fazer esse dinheiro de volta", diz Meier.

A verba do United We Stream, argumenta Meier, ajudará as casas noturnas a pagar algu-mas contas nos próximos meses, mas se elas permanecerem inoperantes por muito mais tempo, o projeto não terá como salvá-las. "Em algumas semanas, as primeiras boates fe-charão. E em um ou dois meses, mais se seguirão. Nós vamos continuar lutando."

Em uma situação um pouco melhor, o ://about blank conseguiu levantar 100 mil euros em uma campanha de financiamento coletivo. "Temos muito apoio e os artistas estão doando discos ou camisetas. Assim podemos dar algo a quem contribui", afirma Steffen.

Ampla solidariedade

Grande parte dos clubes berlineses é ligad a movimentos feministas, antifascistas e antirracistas. Logo, não é surpresa que tenham decidido destinar 8% da arrecadação com o United We Stream para uma ONG que realiza resgates de imigrantes no Mar Mediterrâneo.

"A doação ao projeto de resgate marítimo é importante na cena dos clubes de Berlim. É uma posição política por valores liberais [democráticos] alternativos", defende Steffen.

Também não surpreende que as boates tenham escolhido enfrentar a crise juntas, em vez de competir entre si.

"A solidariedade é grande entre os clubes e organizações políticas em Berlim, porque todo mundo se conhece. O resultado é muito melhor se lutarmos juntos. Por exemplo, quando nossos amigos de outro clube pedem doações, compartilhamos isso em nossas redes sociais", afirma Flaig.

O streaming conjunto, diz Steffen, mostra a solidariedade não apenas entre as boates mais famosas, mas também aos empreendimentos menores que também recebem parte do dinheiro arrecadado. "Vamos ter que superar isso. Vales a pena salvar cada um de nós", completa Meier.

Um alento para os fãs

O isolamento social teve um impacto considerável nessa cidade em que as pistas de dança e a música eletrônica fazem parte do dia a dia de muita gente. Ainda que não substituam as festas reais, os streamings espantam a solidão.

"O feedback que recebemos da nossa transmissão para uma festa mensal focada em gays muçulmanos foi enorme. É claro que não é tão bom quanto o evento de verdade, mas esse é basicamente o único lugar onde essa comunidade pode ser ela mesma. Ser gay e muçulmano ainda é um problema às vezes. É uma pequena conexão que as pessoas podem sentir", diz Flaig.

Meier concorda com a colega.

"Fico muito feliz quando alguém posta um vídeo dançando ou celebrando via streaming porque há uma sensação de união, uma espécie de êxtase novamente. É uma forma de arte. E a arte é uma parte vital de uma sociedade saudável. Isso, obviamente, ajuda a atravessar esses tempos difíceis."