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O motorista de aplicativo com covid-19 que foi despejado e morreu sem teto

Ashitha Nagesh

Da BBC News

28/04/2020 17h37

Rajesh Jayaseelan ficou doente em Londres, e não resistiu. Deixou dois filhos e a esposa - casal tinha acabado de fazer empréstimo para construir uma casa.

A última vez que Mary Jayaseelan falou com seu marido Rajesh, ele estava prestes a ser ligado a um respirador em uma enfermaria atendendo pacientes com covid-19.

Rajesh estava sendo tratado no hospital Northwick Park, em Londres, cidade onde ele trabalhou como motorista de Uber a maior parte do ano. Mary estava a 12 mil km de distância, em sua casa em Bangalore, na Índia, com seus dois filhos pequenos.

Até aquele momento, Rajesh repetidamente lhe dissera que ficaria bem, que ele estava se sentindo doente, mas ela não devia se preocupar, ele melhoraria — aos 44 anos, ele era jovem e saudável. Mas nessa ligação, ele desmoronou e admitiu: "Mary, estou com um pouco de medo".

Rajesh Jayaseelan morreu no dia seguinte.

'Humilde e gentil'

Rajesh e Mary se casaram em 24 de fevereiro de 2014 e alugaram uma casa em Hulimavu, no sul de Bangalore, que eles compartilharam a mãe dele, de 66 anos.

Durante a maior parte do ano, Rajesh alugava um quarto em Harrow, no norte de Londres, e dirigia um Uber na cidade. Ele trabalhava do fim da noite até as primeiras horas da manhã para poder economizar dinheiro suficiente para passar alguns meses com sua família na Índia.

Ele gostava de trabalhar como motorista, embora não percebesse que seu emprego o deixaria vulnerável na crise global da saúde que surgiria mais tarde.

"Ele morou em Londres por 22 anos e voltava à Índia por alguns meses", diz Mary.

"Ele amava Londres. Sempre falava comigo sobre como Londres era bonita e tão limpa. Eu nunca estive em Londres, então ele a descrevia para mim."

O casal foi muito feliz, diz Mary. Rajesh amava sua esposa e brincava com seus dois filhos, de seis e quatro anos. Quando não estava na Índia, ele conversava com eles pela internet todos os dias.

"Ele também era um cantor muito bom", diz Mary, cheia de orgulho. "Ele cantava muitas músicas em hindi."

Rajesh também era uma "pessoa humilde e gentil", acrescenta seu amigo Sunil Kumar. Sunil e Rajesh se conheceram em 2011 - ambos eram de Bangalore, então amigos em comum os colocaram em contato quando Sunil se mudou para o Reino Unido.

Ajudavam-se mutuamente a navegar pelos vários sistemas burocráticos do Reino Unido, emprestavam-se pequenas quantias de dinheiro quando necessário, e Sunil e sua esposa convidavam Rajesh para jantar em sua casa em Hertfordshire - mandando-o de volta com várias marmitas da deliciosa culinária do sul da Índia.

Embora Rajesh amasse Londres, ele não planejava ficar para sempre - ele queria voltar a morar de vez com sua família na Índia. O aluguel na terra natal era relativamente caro, então, durante sua última estadia em Bangalore, no final de 2019, ele e a esposa fizeram um empréstimo e compraram terras para construir sua própria casa.

O empréstimo não era problema, eles pensavam — Rajesh voltaria para Londres e ganharia dinheiro suficiente para pagar. A próxima vez que ele viajasse para Bangalore, ele disse à esposa, seria para sempre.

Ele voltou a Londres em 15 de janeiro. Menos de duas semanas depois, os primeiros casos de coronavírus foram relatados no Reino Unido.

O diagnóstico

Embora o vírus tivesse chegado, Rajesh não estava muito preocupado. Lojas e restaurantes ainda estavam abertos, as pessoas ainda estavam indo ao trabalho. Para todos, incluindo os motoristas do Uber, os negócios estavam normais e não mudaram muito por mais um mês.

Então, março chegou, e o vírus estava passando de pessoa para pessoa no país. O número de casos e mortes estava aumentando a cada dia. As pessoas foram instruídas a se isolarem por sete dias se tivessem algum sintoma — mesmo os leves, como febre ou tosse persistente.

Em 23 de março, o primeiro-ministro, Boris Johnson, anunciou um bloqueio nacional com duração inicial de três semanas. Com isso, a maioria das empresas fecharia e as pessoas só seriam autorizadas a sair para fazer exercício exercício e idas essenciais às lojas, com exceção dos trabalhadores essenciais.

Como muitos motoristas do Uber, Rajesh continuou a trabalhar, mas rapidamente desenvolveu sintomas e teve que parar. Seu último dia de trabalho foi em 25 de março — uma corrida do aeroporto de Heathrow.

Seus sintomas pioraram e ele foi internado no hospital com desidratação. Enquanto estava lá, foi testado para o coronavírus. O resultado foi positivo.

Despejado

O hospital disse a Rajesh para voltar para casa, se isolar e retornar se seus sintomas piorassem. Ele seguiu a orientação e voltou para a casa onde alugava um quarto, mas as coisas estavam prestes a piorar.

"O proprietário da casa pediu para Rajesh sair por algum motivo, e quando ele voltou, o proprietário mudou as fechaduras, para que ele não pudesse entrar", diz Mary.

"Ele tentou bater na porta e pedir ao proprietário para falar com ele, mas ele não abriu a porta."

O dono do local não sabia sobre seu diagnóstico positivo — mas ele lhe disse que, como motorista do Uber, ele poderia trazer o coronavírus de volta para casa e que não era um risco que ela estava disposto a correr.

Sem ter para onde ir, Rajesh foi forçado a dormir em seu carro por várias noites.

"Ele não tinha comida lá, nada para comer", diz Mary.

Rajesh então ligou para seu amigo Sunil pedindo conselhos.

Última ligação

"Aquela foi a última ligação que ele fez para mim", diz Sunil. "Ele não entrou em detalhes sobre o que estava acontecendo com ele, mas como eu trabalho no NHS (sistema de saúde pública do Reino Unido), ele me fez perguntas como 'Quão seguros estamos?', 'É melhor voltar para a Índia?', coisas assim."

"Me perguntou se eu conhecia alguma rota, se havia alguma maneira possível de ir — ele queria ir para a Índia e ficar com sua família. Mas nessa época havia um bloqueio completo na Índia também."

Sunil disse a ele que a melhor coisa a fazer seria ficar em casa, não trabalhar e procurar o apoio financeiro para trabalhadores independentes que o governo acabara de anunciar, ou a assistência de 14 dias oferecida pela Uber.

Rajesh concordou e explicou que precisava encontrar um novo lugar para morar porque seu proprietário disse que ele era de alto risco. Mas, diz Sunil, ele não disse que já havia sido expulso: "Ele pode ter ficado envergonhado".

Rajesh voltou a tentar ligar para o proprietário para pedir que ele ficasse. Não houve resposta.

Depois de dias de busca, ele finalmente encontrou outro quarto em uma casa compartilhada em Harrow. O novo proprietário o fez pagar 4 mil libras adiantado — dinheiro que ele não tinha, e Mary diz que ele teve que pedir emprestado.

Quando Rajesh voltou a ter um abrigo, ele não quis arriscar ser despejado novamente. Ele se escondeu e evitou contato com todos os outros inquilinos, não quis nem cozinhar. Sua saúde piorava a cada dia que passava.

A única interação social que ele tinha eram telefonemas diários com a esposa, onde alternava entre tranquilizá-la e dizer que ficaria bem e chorar.

Foi durante uma dessas ligações que Mary percebeu que ele estava lutando para respirar.

"Ele chiava muito naquele quarto e todos os dias ficava pior", diz ela. "Uma noite eu disse para ele ir ao hospital. Ele não queria chamar uma ambulância porque não queria que outros lá soubessem que ele estava doente, para não ser despejado novamente."

Rajesh dirigiu ao hospital, apesar de estar profundamente sem fôlego. Quando chegou lá, ele foi diagnosticado com pneumonia.

"Na manhã seguinte, ele me ligou do hospital para uma videochamada — mas quando as crianças o viram, começaram a chorar por causa do quão doente ele estava", diz Mary. "Ele desligou o vídeo e me disse que não queria que se lembrassem dele tão mal". Eles se falariam apenas mais algumas vezes.

Em 11 de abril, os médicos que cuidavam de Rajesh ligaram para Mary e explicaram que ele estava em estado crítico, e eles não achavam que sua condição melhoraria. Eles marcaram uma vídeo chamada para ela e as crianças poderem vê-lo uma última vez. Ele estava inconsciente e morreu duas horas depois.

Desigualdade

Embora a frase "o coronavírus não discrimina" tenha sido repetida frequentemente durante essa pandemia, é evidente que o vírus é pior para alguns do que outros. Um grupo particularmente afetado são os trabalhadores informais, que realizam trabalhos de curto prazo ou como freelancers, em vez de terem empregos permanentes.

Isso inclui motoristas autônomos, como Rajesh, além de entregadores de comida.

No ano passado, cerca de 4,7 milhões de pessoas no Reino Unido trabalhavam em empregos informais, enquanto, segundo um estudo de 2018, 60% da população global trabalha em condições de insegurança.

Pesquisas do Fórum Econômico Mundial e de outros órgãos mostram que esses trabalhadores são desproporcionalmente afetados pela pandemia.

Isso é resultado de uma combinação de fatores: muitos são classificados como trabalhadores essenciais", o que exige que continuem interagindo com estranhos; eles não têm licença médica remunerada garantida, o que dificulta o auto-isolamento; têm salários baixos e inconstantes, tornando mais provável que eles vivam em situações de habitação perigosas e inseguras; e eles não têm acesso a equipamento de proteção.

Ayako Ebata, do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, diz que, como as pessoas em trabalho informal "dependem muito de seus salários diários", estão sob muita pressão para não perder o emprego ou tirar uma folga, mesmo quando há riscos significativos à saúde.

"Não é porque eles sejam ignorantes ou desinformados, é porque todo o sistema os está forçando a tomar decisões que acabam sendo prejudiciais aos seus meios de subsistência e saúde", diz ela.

Alex Wood, sociólogo da Universidade de Oxford que estuda economia informal, concorda — e diz que a falta de proteção no local de trabalho piora o problema.

"Essas plataformas disseram às pessoas que elas não precisam se preocupar com [direitos e proteções] porque, quando a economia está boa, não há nenhum risco", diz ele.

"Mas na verdade quando você tem essas crises, são os trabalhadores que pagam - apesar de muitos deles agora serem classificados como essenciais."

Agora, motoristas no Reino Unido estão pedindo maior proteção por parte do governo. A United Private Hire Drivers (UPHD), um órgão comercial independente para motoristas autônomos, pediu nesta semana uma revisão urgente sobre o assunto.

"O que o governo está dizendo agora é que não é seguro você ir a uma barbearia, mas de alguma forma é seguro você andar em um Uber", diz James Farrar, da UPHD.

A raça também é um fator de risco. De acordo com vários estudos recentes, pessoas não-brancas no Reino Unido, como Rajesh, têm uma probabilidade desproporcionalmente maior de ter um trabalho inseguro do que seus colegas brancos.

Pesquisas realizadas no Congresso Sindical (TUC) no ano passado descobriram que os trabalhadores das minorias étnicas têm um terço a mais de probabilidade de estarem em trabalho inseguro.

Um relatório divulgado no mês passado pela Carnegie UK Trust, UCL e Operation Black Vote também constatou que os jovens de minorias, em particular, tinham 47% mais chances de estar em contratos temporários ? outra forma notoriamente instável de trabalho.

Luto

Depois de saber que seu filho havia morrido, a mãe de Rajesh ficou doente. Ela já sofria de hipertensão e pré-diabetes e passou a ficar confinada na cama. "Ela está inconsolável desde então", diz Mary.

Para pagar o empréstimo para a casa, contas médicas e escola das crianças, Mary está tentando encontrar um trabalho como faxineira, mas as medidas de quarentena estão dificultando muito.

Sunil está ajudando a família com dinheiro sempre que pode e pretende criar uma vaquinha online. Ele também está avaliando entrar com uma ação legal contra o dono do primeiro imóvel onde Rajesh morava. O Uber entrou em contato com a BBC para oferecer suas condolências, mas não ofereceu apoio financeiro à família.

Mas, mais do que tudo, Mary está lutando para aceitar tudo que mudou para sua família em um período tão curto de tempo.

"Agora que Rajesh se foi, nossa vida se tornou muito difícil", diz ela. "Eu não sei o que faremos sem ele."

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