Topo

Esse conteúdo é antigo

Falas em reunião são ou não provas contra Bolsonaro?

A reunião ministerial foi registrada em fotos e vídeos pela Presidência da República - Marcos Corrêa / PR
A reunião ministerial foi registrada em fotos e vídeos pela Presidência da República Imagem: Marcos Corrêa / PR

Letícia Mori

Da BBC News Brasil em São Paulo

22/05/2020 22h42

Vídeo divulgado pelo STF é parte do inquérito sobre suposta interferência do presidente na Polícia Federal.

As declarações do presidente Jair Bolsonaro durante uma reunião ministerial ocorrida há um mês são "peças" em um "quebra-cabeças" da acusação do ex-ministro Sergio Moro de que o presidente interferiu na Polícia Federal, mas sozinhas não são provas de crime. É o que avaliam criminalistas ouvidos pela BBC News Brasil após a divulgação do vídeo do encontro pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

O vídeo é um dos documentos coletados no inquérito envolvendo suposta interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, relatada por Moro quando deixou o Ministério da Justiça e Segurança Pública.

A filmagem foi tornada pública nesta sexta-feira (22/05), por decisão do decano do STF, ministro Celso de Mello. O vídeo é longo e contém muitas outras falas de Bolsonaro e dos ministros sobre diversos assunto, mas contém alguns trechos que são mais relevantes para o inquérito sobre a PF.

Nele é possível ver Bolsonaro dizendo o que já havia sido descrito no relatório da AGU (Advocacia-Geral da União) sobre o encontro.

"Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança da ponta de linha que pertence à estrutura. Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira", disse o presidente.

Bolsonaro também reclama do fato de a Polícia Federal não lhe passar informações.

"E eu tenho o poder e vou interferir em todos os ministérios, sem exceção. Nos bancos eu falo com o Paulo Guedes, se tiver que interferir. Nunca tive problema com ele, zero problema com Paulo Guedes. Agora os demais, vou! Eu não posso ser surpreendido com notícias. Pô, eu tenho a PF que não me dá informações", diz ele.

Moro pediu demissão após ser surpreendido pela demissão de Maurício Valeixo da chefia da Polícia Federal. O ex-ministro da Justiça afirmou que Bolsonaro interferiu na PF, que está encarregada de investigações criminais que podem envolver familiares do presidente.

Bolsonaro, com Moro ao fundo, na reunião de 22 de abril - Plalacio do Planalto - Plalacio do Planalto
Bolsonaro na reunião de 22 de abril: 'Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro, oficialmente, e não consegui! E isso acabou'
Imagem: Plalacio do Planalto

Para Davi Tangerino, professor de direito criminal da FGV, o vídeo reforça a versão de Moro de que estava sofrendo ingerência — ou seja, é uma peça que ajuda a reforçar a narrativa de Moro, mas sozinho não é prova de cometimento de crime.

"Moro não mentiu. Ele disse que foi pressionado, e está aqui a prova. Mas quem defende o presidente pode argumentar que é uma pressão normal, não uma ingerência criminosa", afirma Tangerino.

O professor de criminologia da USP Maurício Dieter afirma que Bolsonaro tem o poder de nomear quem quiser para seus ministérios, e só há crime se foi possível provar que houve interferência para proteger seus familiares de investigações em andamento — o que as falas no vídeo, por si só, não comprovam.

Reunião de 22 de abril - Palacio do Planalto - Palacio do Planalto
'Então é isso que eu apelo a vocês (ministros), pô. Essa preocupação. Acordem para a política e se exponham, afinal de contas o governo é um só. E se eu cair, cai todo mundo'
Imagem: Palacio do Planalto

Para Dieter, o contexto de interferência — quando Bolsonaro diz 'vou interferir' — pode ser lido como legítimo, no sentido de ele querer que seus ministros "se aproximem mais de suas ideias e demonstrem maior lealdade em todas as suas manifestações".

"Nessa reunião Moro foi objeto de forte recriminação diante de seus pares; destinatário de indiretas e muito sarcasmo. Deve ter se sentido humilhado. E essa humilhação deve ter afetado sua memória, a ponto de indicar uma reunião cheia de grosserias e não poucas demonstrações de burrice como prova de algum crime por parte do presidente", opina o criminalista.

Já Tangerino afirma que "o vídeo sozinho não prova crime, mas também não é irrelevante".

"Nem sempre no direito penal você vai ter a prova igual as que aparecem nos seriados, uma única prova incontestável. Muitas vezes a conclusão de que um fato aconteceu se dá juntando peças", explica.

"Uma pessoa que é paranóica, como Bolsonaro, mesmo que tivesse cometido um crime, não deixaria um rastro claro, uma mensagem que dissesse: 'preciso trocar o Valeixo porque meu filho cometeu um crime'. Se estão esperando esse tipo de provas, não vai acontecer", diz Tangerino.

O professor de direito penal da USP Gustavo Badaró, também diz que não há nenhuma prova categórica no vídeo divulgado.

"Continua na mesma. Choque de versões. Não vi nenhuma 'bala de prata' contra o presidente", diz ele.

A versão do presidente é de que, quando fala em trocar a segurança, está se referindo à segurança física dos filhos — cuja segurança pessoal, no entanto, é de responsabilidade do GSI (Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República).

No vídeo Bolsonaro também diz 'meus amigos' quando fala da atuação da PF no Rio — amigos cuja segurança pessoal não é feita pela polícia ou pelo GSI.

Crime de responsabilidade

Embora, por si, não forneça nenhuma prova categórica de que Bolsonaro tenha cometido crime em relação à PF, segundos os criminalistas, o vídeo pode reforçar a discussão sobre o presidente ter cometido crime de responsabilidade.

Crimes de responsabilidade têm uma possibilidade maior de interpretação do que crimes comuns — nos quais é preciso que a atitude comprovada seja exatamente aquela descrita na lei, explica Davi Tangerino, da FGV.

Estão previstos como crimes de responsabilidade do presidente da República coisas mais amplas e abertas à interpretação, como, por exemplo, "proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo".

"O presidente tem um 'caminhão' de crimes de responsabilidade", opina. "O impeachment é um caminho jurídico muito mais verdadeiro, porque em vez de convivermos com uma acusação criminal nebulosa, que precisa de tempo para ser investigada, você têm elementos jurídicos mais do que suficientes para discutir o impedimento por crime de responsabilidade", afirma.

Outros juristas já disseram ver crime de responsabilidade em atos do presidente no passado — incluindo Miguel Reale, um dos autores do pedido de impeachment de Dilma Rousseff.

Para um impeachment contra Bolsonaro, seria preciso que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, aceitasse um dos pedidos que foram apresentados e que o impedimento fosse votado no Congresso.

No momento não há sinais de que isso possa acontecer — Bolsonaro tem negociado cargos com o Centrão para fortalecer sua base parlamentar, hoje pequena.

Situação de Moro

Ao abrir o inquérito sobre as acusações de Moro contra Bolsonaro, o procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou também que, se não comprovadas, isso poderia levar à denúncia contra Moro por denunciação caluniosa ou calúnia.

Os criminalistas, no entanto, não veem elementos para isso.

"A chance de o Moro ser criminalizado nesta historia beira a zero. Ele não mentiu", opina Tangerino.

Gustavo Badaró, da USP, concorda.

"O crime de denunciação caluniosa exige que se dê causa à instauração de inquérito contra pessoa 'que se sabe inocente'", explica. "Ou seja, é preciso ter certeza de que a pessoa contra quem se dá causa à instauração do inquérito é inocente."

"O Moro vai dizer que, na visão dele, não considerava o presidente inocente, que, ao menos subliminarmente, ele entendeu que era interferência nos inquéritos. Logo, não houve denunciação caluniosa", afirma.

O governo Bolsonaro teve início em 1º de janeiro de 2019, com a posse do presidente Jair Bolsonaro (então no PSL) e de seu vice-presidente, o general Hamilton Mourão (PRTB). Ao longo de seu mandato, Bolsonaro saiu do PSL e ficou sem partido até filiar ao PL para disputar a eleição de 2022, quando foi derrotado em sua tentativa de reeleição.