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Coronavírus: o que está por trás da 'explosão' de mortes em casa em meio à pandemia de covid-19

Paula Adamo Idoeta - Da BBC News Brasil em São Paulo

01/06/2020 05h04

Médicos e pesquisadores alertam que população em geral está tendo menos acesso ao sistema de saúde, levando a mortes possivelmente evitáveis, tanto por coronavírus quanto por outras doenças.

Em um único plantão, uma médica do Samu (Serviço do Atendimento Móvel de Urgência) em Manaus chegou a atestar cinco mortes por covid-19 de pessoas que morreram em suas próprias casas.

"Era muita coisa. Antes disso, eu não costumava constatar nenhum óbito (doméstico) no meu plantão", conta a médica, que pediu para não ser identificada. "Em geral eram pessoas idosas, de 70, 80 anos. Esperavam em casa mesmo, porque sabiam que não iam ter assistência nos hospitais (superlotados). Tentavam no limite tudo o que podiam em casa."

Enquanto a situação é dramática em boa parte da rede de saúde brasileira em meio à pandemia, há pacientes como esses, em estado grave, que nem estão tendo a chance de receber atendimento médico: estão morrendo fora dos hospitais, muitas vezes de uma piora rápida e inesperada da covid-19 ou com medo de ir ao médico e pegar a doença.

No Brasil, as mortes em casa totalizaram 27,2 mil entre 16 de março e 30 de abril. Isso representa um aumento de 10,4% em relação ao mesmo período no ano passado, segundo dados divulgados em 7 de maio pelos cartórios no Portal da Transparência do Registro Civil.

Em alguns Estados esse aumento foi muito maior: o Amazonas teve 149%, o Rio de Janeiro, 40% a mais e São Paulo, 14,5%.

É um fenômeno que tem se repetido em outros países e regiões cujos sistemas de saúde têm sido duramente atingidos pelo novo coronavírus. No Reino Unido, um levantamento recente do jornal The Guardian identificou cerca de 8.000 mortes domiciliares a mais durante a pandemia do que no mesmo período de anos anteriores.

Nos EUA, o país com o maior número de casos e mortes de covid-19 no mundo, também há preocupações com um aumento expressivo de mortes fora de hospitais. Em abril, um levantamento feito na cidade de Nova York apontou que o número de moradores morrendo em casa subiu para 200 por dia. Antes da pandemia, eram 20 a 25 por dia.

Lá, também, aumentou o temor das pessoas em procurar médicos e hospitais. Em abril, uma pesquisa do Colégio Americano de Médicos Emergenciais apontou que quase um terço dos adultos ativamente adiaram ou evitaram buscar atenção médica, com medo de se exporem ao coronavírus.

Quatro causas prováveis

Desse total, segundo as certidões de óbito, 80% das pessoas morreram de problemas não relacionados à covid-19. Isso parece ser um indicativo de que pacientes com outras enfermidades graves podem estar tendo menos acesso a tratamentos, uma vez que quase todo o sistema de saúde está voltado ao controle da pandemia.

Para Jason Oke, estatístico do Departamento de Ciências de Cuidados Primários da Universidade de Oxford, no Reino Unido, a ausência de detalhamento dos dados até agora dificulta explicações definitivas sobre o aumento das mortes domésticas. Mas ele aponta três causas prováveis e simultâneas:

  • Pacientes com covid-19 com quadro moderado, mas que pioraram repentinamente;
  • Pacientes com doenças terminais que provavelmente morreriam em hospitais mas, em meio à pandemia, acabam temendo a hospitalização e ficam em casa;
  • Pacientes com outros problemas médicos, desde sinais de mal-estar que podem ser de um infarto até um AVC, por exemplo. Com medo de se infectar, esses pacientes estão evitando buscar atendimento médico e perdendo acesso adequado ao serviço de saúde.

Nesse último caso, os pacientes podem acabar morrendo não por causa do coronavírus em si, mas como um efeito colateral da pandemia.

"No momento, é difícil determinar com certeza, mas é provável que essas três coisas estejam acontecendo juntas", diz Oke à BBC News Brasil. "Ainda não temos dados completos, e não é que as pessoas estejam sendo impedidas de ir ao médico, mas há menos exames de câncer e menos cirurgias sendo feitos, e há evidências também de que as pessoas estão fazendo menos consultas e evitando ir aos hospitais."

A essas hipóteses o epidemiologista Paulo Lotufo, professor de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da USP, soma os estragos que o novo coronavírus pode causar no corpo, e que, em alguns casos, vão muito além do quadro gripal ou do comprometimento pulmonar.

"A gente inicialmente achava que o vírus causasse só uma gripe ou, nos casos mais graves, uma pneumonia. Mas não é só isso. O vírus atua também no sistema circulatório, elevando o risco de uma morte súbita em casa por doenças cardíacas", explica o médico.

Outro efeito "terrível", diz Lotufo, é que há casos em que o vírus "atua no sistema nervoso central, fazendo com que o cérebro deixe de identificar a baixa oxigenação do pulmão. Alguns pacientes relatam uma sensação de bem-estar (respiratório) mesmo estando péssimos. Chegam no hospital com oxigenação muito baixa, quadro em que normalmente estariam em coma, mas chegam conversando".

Os sinais para se buscar atendimento

Com tudo isso, para médicos que estão acompanhando o avanço da pandemia, uma preocupação é justamente com essa repentina piora que alguns pacientes com covid-19 em estágio moderado podem apresentar.

A recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é de que, na impossibilidade de se hospitalizarem todos os pacientes da covid-19 por causa das limitações do sistema de saúde, os que tenham sintomas leves (a ampla maioria) podem ficar em casa, "desde que eles possam ser acompanhados e cuidados por membros da família".

"Se e quando possível, um elo de comunicação com um provedor de cuidados em saúde ou com um profissional de saúde deve ser estabelecido durante o período de cuidados em casa, até os sintomas do paciente passarem", diz a recomendação.

Não é essa, no entanto, a realidade da maioria das pessoas, gerando preocupações de que o quadro se agrave, mas passe despercebido de pacientes e cuidadores.

"Como não há um monitoramento diário desses pacientes (por profissionais de saúde), existe o risco de as coisas darem errado muito rapidamente", diz à BBC News Brasil o médico Bharat Pankhania, professor palestrante da Escola de Medicina da Universidade de Exeter (Reino Unido), especializado em controle de doenças infecciosas.

O principal sinal de alerta para pacientes e cuidadores, diz ele, é a sensação de cansaço extremo ao fazer atividades cotidianas, além da falta de ar e letargia. "É o sinal de que o paciente precisa de suplemento de oxigênio."

Ao buscar ajuda médica aos primeiros sinais de cansaço, o objetivo é evitar que o quadro se agrave - por exemplo com o desenvolvimento de uma pneumonia viral ou com a chamada "tempestade de citocinas".

Citocinas são substâncias excretadas pelo sistema imunológico para atacar o vírus. Mas pode acontecer de uma resposta excessiva do sistema imunológico levar as citocinas a atacarem os órgãos do próprio corpo.

"Se a tempestade de citocina atacar, pode causar muito dano ao corpo e fazer o paciente piorar rapidamente", diz Pankhania.

É preciso chegar ao médico antes que uma pneumonia viral se instale, diz ele, "porque se ele já tiver a pneumonia, também já pode ser muito tarde".

Para a médica de Manaus entrevistada no início desta reportagem, pessoas com sintomas persistentes de covid-19 (alguns dias de febre, tosse e dores de cabeça e no corpo) devem buscar atendimento médico, mesmo antes de bater a sensação forte de cansaço. Sobretudo se elas forem pessoas dos grupos de risco, como idosos, obesos, fumantes e pessoas com comorbidades.

"Essas pessoas não podem esperar em casa, porque a piora é muito rápida", diz ela.

A BBC News Brasil consultou a Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde quanto a se há recomendações adicionais para pacientes em casa, para que fiquem alertas para eventuais sinais de piora repentina. Também questionou se o serviço de teleatendimento TeleSus é capaz de identificar esses pacientes e orientá-los. A BBC News Brasil aguarda a resposta do ministério para acrescentá-la na reportagem.

Menos exames sendo feitos

Outra questão levantada por associações médicas é que, assim como no Reino Unido, tem caído no Brasil o número de atendimentos médicos relacionados a o outros problemas que não a covid-19.

Um levantamento da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica e da Sociedade Brasileira de Patologia aponta que ao menos 50 mil brasileiros podem ter ficado sem diagnóstico de câncer entre 11 de março e 11 de maio, já que menos exames estão sendo realizados.

O levantamento calcula uma queda de 50% a 90% na realização de diferentes tipos de biópsias. Com o diagnóstico tardio ou inexistente, o risco é de que tumores avancem, não detectados, para o estágio avançado.

Além disso, a sobrecarga geral no sistema de saúde causada pelo novo coronavírus dificulta o atendimento de pacientes em estado grave por outros motivos, explica Paulo Lotufo, da USP.

"Imagine um pronto-socorro lotado de pacientes com covid-19, e alguém sofre um acidente de moto e não consegue ser operado por causa da superlotação (das Unidades de Terapia Intensiva). Sua morte não vai ser pelo acidente em si, mas em consequência da pandemia", afirma.

"É por isso que é tão importante reduzirmos o número de casos (de infecções), para que, caso você tenha uma apendicite, possa ser tratado."

'Mais pobres são mais afetados'

Todo esse cenário tende a afetar proporcionalmente mais a população mais pobre, tanto no Brasil como no Reino Unido, diz o médico Pankhania, da Universidade de Exeter.

"São os mais pobres os que têm mais chances de morrer em casa."

"São eles que têm de perseverar mais, sair para trabalhar porque não podem fazer reuniões pelo Zoom, enfrentar aglomerações. As pessoas mais ricas têm a quem chamar e têm mais chances de serem observadas (por médicos). Com tudo isso junto, a covid-19 é uma espécie de eliminadora de pessoas pobres, porque as afeta de modo muito desproporcional."

De todo modo, em Manaus, a médica do Samu ouvida pela BBC News Brasil dá ao menos um sinal de alento: diz que, nas últimas duas a três semanas, têm diminuído bastante os casos de atendimento, tanto nas ambulâncias quanto nos pronto-socorros e UTI, de casos de covid-19.

"Entre meados de março e final de abril, vivemos um caos, um período de inferno, pelo qual eu nunca havia passado antes", diz ela. "Agora, quase não tenho feito atendimentos. Os casos ainda são muito graves, mas estão diminuindo."


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