Topo

Esse conteúdo é antigo

Efeitos colaterais do coronavírus: as mortes 'ocultas' causadas pela covid-19

Zaria Gorvett - BBC Future

04/06/2020 11h06

Ao decretar confinamentos e concentrar todos os esforços médicos em combater a pandemia, países podem acabar 'ignorando' mortes causadas por fome e outras doenças, como câncer.

Emile Ouamouno, de dois anos, gostava de brincar dentro de uma grande árvore oca, perto de sua casa em Meliandou ? um vilarejo no coração da selva da Guiné, no oeste da África.

Mas outros seres vivos também descobriram o ambiente aconchegante da árvore: os morcegos. As crianças às vezes os pegavam lá, antes de assá-los para o jantar.

Então, Emile ficou doente. Em 28 de dezembro de 2013, ela morreu. Sua mãe, irmã e avó foram as próximas. Após os funerais, a doença violenta e misteriosa começou a se espalhar gradualmente.

Até 23 de março de 2014, havia 49 casos e 29 mortes ? e os cientistas confirmaram se tratar da temida ebola. Nos três anos e meio seguintes, o mundo ficou horrorizado quando a doença ceifou mais de 11.325 vidas.

Mas enquanto isso acontecia, outra tragédia se desenrolava.

O surto afetou gravemente o sistema de saúde local ? médicos e enfermeiros morreram, vários hospitais foram fechados e os que permaneceram abertos acabaram sobrecarregados com o vírus. Nos três países mais afetados ? Serra Leoa, Libéria e Guiné ? as pessoas começaram a deixar de procurar ajuda médica por medo.

Todas estavam apavoradas com a possibilidade de ser infectadas pela nova doença, mas também tinham medo dos médicos. Com seus macacões brancos de proteção, os profissionais de saúde ficaram estigmatizados, como se fossem "mensageiros da morte".

Dados mostram que, por causa disso, houve uma queda drástica no número de pessoas buscando auxílio médico. Mais de oito em cada dez mulheres grávidas deixaram de procurar ajuda para o parto, as taxas de vacinação caíram e houve 40% menos internações de crianças com malária. Ironicamente, após um intenso esforço internacional para combater a pandemia, esse dano colateral foi mais grave do que a própria doença.

Em 2020, o mundo corre o risco de assistir a um cenário semelhante.

Nenhum inimigo único

Desde o início, muitos países fizeram questão de tranquilizar o público sobre a estratégia de combate à covid-19 ? compraram leitos e respiradores, estocaram tratamentos não comprovados e remanejaram profissionais de saúde remanejados.

Por outro lado, à medida que os países concentraram esforços em combater as crescentes taxas de infecção, outros serviços médicos foram deixados de lado.

Cirurgias consideradas não urgentes foram adiadas ou canceladas, assim como foram temporariamente suspensos programas de apoio à saúde sexual, ao tabagismo, à saúde mental, tratamento dentário, vacinas, exames de câncer e de rotina.

E os efeitos colaterais já estão sendo sentidos ao redor do mundo.

Pacientes relatam ter recebido negativas para tratar câncer, diálise renal e cirurgias de transplante urgentes, com resultados algumas vezes fatais.

Nos Bálcãs, as mulheres foram levadas a recorrer a abortos experimentais perigosos, enquanto especialistas no Reino Unido relataram um aumento de pessoas fazendo seu próprio tratamento dentário sem ajuda de um profissional, alguma vezes envolvendo até supercola.

E, como em todas as crises, a atual pandemia parece destinada a atingir os países mais pobres com mais força. Os cientistas alertaram que, em alguns locais, interromper programas de controle de doenças como HIV, tuberculose e malária pode causar mortes na mesma escala daquelas causadas diretamente pelo vírus. Da mesma forma, os especialistas temem que os óbitos por doenças como a cólera possam exceder em muito as por covid-19.

As vacinas são uma preocupação particular. A Organização Mundial da Saúde calculou que pelo menos 80 milhões de crianças com menos de um ano de idade estão agora sob risco de difteria, poliomielite e sarampo, depois que a pandemia interrompeu a continuidade dos programas em pelo menos 68 países.

Há um risco real de retorno da poliomielite, apesar de um esforço de bilhões de dólares que vem se estendendo por décadas. A doença era considerada praticamente extinta.

Dano colateral

Enquanto isso, David Beasley, diretor executivo do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PAM), alertou que o mundo está à beira de uma fome de proporções "bíblicas" ? com 130 milhões de pessoas sob risco de morrer de fome, além do 135 milhões que já estão à beira da fome.

Além disso, acredita-se que os confinamentos decretados pela maioria dos países do mundo e a subsequente turbulência econômica possam aumentar as chamadas "mortes de desespero", já que algumas pessoas vêm recorrendo ao alcoolismo ou ao suicídio.

Para o epidemiologista Timothy Roberton , juntamente com colegas da Universidade Johns Hopkins, em Maryland (nos Estados Unidos), os efeitos colaterais da pandemia tornaram-se uma preocupação quase assim que ela começou.

"Muitos de nós analisamos a resposta ao surto de ebola na África Ocidental em 2014, então sabíamos o que poderia acontecer", diz ele.

Em particular, a equipe estava interessada em como a covid-19 poderia afetar mulheres e crianças em países de baixa renda. Eles usaram um modelo matemático para analisar o impacto de vários cenários de crescente gravidade e identificaram duas maneiras principais pelas quais a resposta ao covid-19 poderia aumentar o número de vítimas.

Uma é através da interrupção dos serviços de saúde.

"Isso pode acontecer porque as pessoas ficam com medo de buscar ajuda ? ou seja, o lado da demanda", diz Roberton.

Mas também há o lado da oferta: "os profissionais de saúde podem ficar doentes, podem ser deslocados para trabalhar na pandemia ou pode haver escassez de medicamentos".

Outro problema iminente diz respeito às famílias que não têm acesso a alimentos suficientes, o que pode aumentar sua suscetibilidade a doenças infecciosas.

No total, os cientistas previram que, no pior cenário, em que o uso de serviços de saúde é reduzido em até 50% e a desnutrição é aumentada no mesmo porcentual, mais de 1 milhão de crianças e 56,7 mil mães podem morrer como resultado indireto da pandemia. A maioria das mortes de crianças seria por pneumonia ou desidratação devido a diarreia, enquanto que, para as mulheres, provavelmente ocorreriam devido a complicações da gravidez ou do parto.

Quando essas mortes são adicionadas ao número das pessoas sob risco de fome, a tragédia se torna ainda maior. Atualmente, o PAM está fornecendo comida para quase 100 milhões de pessoas no mundo todos os dias ? e desse número, cerca de 30 milhões dependem desse fornecimento para sua própria sobrevivência. Segundo seu próprio levantamento, 300 mil pessoas podem morrer de fome todos os dias nos próximos meses, se esse serviço for interrompido. A projeção não inclui as pessoas que foram empurradas para a pobreza devido ao coronavírus.

A pandemia atual não apenas levará mais um número adicional de 130 milhões de pessoas à inanição, mas também ameaça as doações das quais o programa depende.

"Se a economia mundial for atingida e os países não puderem fornecer o financiamento esperado, então teremos que lidar com um cenário bastante assustador", diz Jane Howard, chefe de comunicações do PMA.

Exatamente como a covid-19 levará as pessoas à fome é um pouco mais complicado. oward explica que, ao contrário das imagens estereotipadas de pessoas famintas nas propagandas de pedido de doações na década de 90, que viviam nas partes mais remotas da África Subsaariana, hoje a desnutrição também é um grande problema nas cidades ? e são nelas que a pandemia deverá atingir as pessoas com mais força.

"Se você mora em uma zona rural, pode ter uma horta ou uma vaca", diz ela. "Você tem como minimizar os efeitos disso. Mas em uma cidade você está absolutamente à mercê dos preços no mercado."

No momento, a principal preocupação é com operários de fábricas, motoristas de riquixás e trabalhadores da construção civil.

O dilema da idade

Claro, há outra razão pela qual muitos países podem sofrer mais mortes por danos colaterais, em vez do próprio vírus: a idade de sua população.

É sabido que a covid-19 afeta mais os idosos ? no Brasil, eles são cerca de 70% das vítimas, segundo dados do Ministério da Saúde.

Por outro lado, os países de baixa renda tendem a ter mais populações jovens. No país mais jovem do mundo - Níger, na África Ocidental ? a idade média é de apenas 15,2 anos. Até agora, 254 mortes foram registradas por causa do coronavírus ali.

Em contraste, a Itália tem uma idade média que gira em torno de 45, bem como um dos maiores saldos de mortos por covid-19 ? foram mais de 33 mil óbitos.

O grau em que a pandemia é responsável por essas fatalidades ainda está sob debate ? pode ser que haja menos anos de vida perdidos diretamente para o vírus do que parece.

Por exemplo, enquanto os idosos têm maior risco de morte por covid-19, eles também correm risco maior de morte por outras doenças sazonais ou respiratórias, como norovírus ou pneumonia. No momento, ainda há significativamente mais mortes a cada mês do que o normal para esta época do ano. Mas se o total de mortos cair posteriormente para abaixo da média, é possível que o vírus tenha antecipado a morte de idosos por meses, e não anos.

De fato, mesmo em países ricos, acredita-se que as mortes indiretas possam eventualmente eclipsar o número de mortes diretas a longo prazo.

Tome-se o câncer por exemplo. Desde o início da pandemia, grande parte das ações destinadas a reduzir a carga da doença e torná-la menos fatal ? do papanicolau à mamografia ? foi afetado. Para algumas pessoas, isso inevitavelmente terá consequências fatais.

"O câncer não pode esperar", diz Sara Hiom, diretora de diagnóstico precoce e inteligência em câncer da Cancer Research UK, uma ONG que financia pesquisas científicas sobre o câncer. "O câncer sempre será mais fácil de tratar e curar, quanto mais cedo for diagnosticado."

Os programas de detecção precoce do câncer foram interrompidos em alguns países desde o início dos confinamentos. Para aqueles que já têm um diagnóstico, pode demorar muito tempo antes de poderem iniciar o tratamento ? e Hiom explica que quando a pandemia começar a diminuir, recuperar o atraso pode ser um processo extremamente lento.

Economia

Finalmente, há a questão da recessão iminente, que já começou oficialmente na Alemanha e deve ser a mais grave desde a Grande Depressão.

E muitas organizações de saúde, grandes e pequenas, dependem de contribuições de doadores privados e do público em geral ? e uma economia em recessão pode representar um revés nesse trabalho, bem como nos esforços de pesquisa acadêmica, por muitos anos.

Então, o que pode ser feito para minimizar as consequências indiretas da covid-19?

Howard aponta para uma lista de coisas que o PMA enumera, desde ajudar os governos a trazer redes de segurança para suas populações ? como continuar a fornecer merendas gratuitas para as crianças, mesmo com as escolas estando fechadas, a manter as cadeias de suprimentos funcionando e evitar barreiras comerciais.

"São pequenas coisas que realmente podem ter um grande impacto", diz ela. "Por exemplo, se você determinar que caminhoneiros internacionais tenham que entrar em quarentena, sua cadeia de suprimentos entrará em colapso. Então, no sul da África, temos convencido os governos a enviar cartas a certas transportadoras contratadas, garantindo os direitos à livre circulação dos motoristas."

  • Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!

https://www.youtube.com/watch?v=80XHCb7EjZ4

https://www.youtube.com/watch?v=xJo0vcTedVE

https://www.youtube.com/watch?v=FOE9BfJcMf0&t=226s