Reichsbürger, o grupo com elos neonazistas que rejeita a Alemanha atual e avança em atos que negam a covid-19
A República Federal da Alemanha fundada após a Segunda Guerra Mundial não existe. É apenas um território sob ocupação permanente dos aliados, em uma "conspiração contra os alemães" por parte de Wall Street, "judeus" e o capital financeiro internacional. Seu governo e instituições são fantoches de forças estrangeiras. O Império Alemão, contudo, continua a existir legalmente e suas fronteiras deveriam ser restabelecidas, se possível, conforme aquelas de 1914, 1937 ou 1939, o que poderia incluir a apropriação de Estados estrangeiros soberanos como a Namíbia.
Essas são apenas algumas das ideias que, mesmo sem embasamento real, são defendidas pelos Reichsbürger (cidadãos do Reich/cidadãos imperiais), um movimento de extrema direita alemão com conexões neonazistas, forte antissemitismo e revisionismo histórico.
Os Reichsbürger, que também rejeitam o sistema legal alemão, atraem cada vez mais atenção na Alemanha por sua afinidade com armas, hostilidade a agentes da lei e violência. Em março deste ano, o governo baniu pela primeira vez em todo o país uma facção do movimento por considerá-la extremista e inconstitucional.
Cidadãos do Reich estavam entre as centenas de extremistas de direita e neonazistas que tentaram invadir o Reichstag (o prédio do Parlamento federal em Berlim) em 29 de agosto, após um protesto contra medidas adotadas para deter a pandemia do novo coronavírus — cerca de 38 mil pessoas entre neonazistas, anticapitalistas, ant-ivacinas e cidadãos "comuns" que duvidam da gravidade da pandemia foram ao evento na capital alemã.
"Os Reichsbürger abraçaram os protestos públicos contra as restrições do corona como uma ocasião bem-vinda para se reunir e ganhar visibilidade nas ruas. Eles estão mais presentes do que nunca", explica à BBC News Brasil Axel Salheiser, pesquisador do Instituto para a Democracia e a Sociedade Civil, em Jena, no Estado da Turíngia.
Na investida ao Parlamento, condenada por políticos de diversos espectros, destacava-se o grande número de bandeiras do Império Alemão, associada aos Reichsbürger e a grupos neonazistas. O símbolo também foi usado pelo regime de Adolf Hitler.
"O Reich sempre representou um lugar mítico, um paraíso seguro para os alemães", afirma Jan Rathje, especialista em extremismo de direita da Fundação Amadeu Antonio, em Berlim.
Na manifestação "anti-covid-19", diz o pesquisador, o uso da bandeira imperial como "em jogos de futebol" aponta para essa ideia mítica no imaginário dos Reichsbürger de "um lugar que não é a República Federal da Alemanha".
"É um lugar de esperança para o indivíduo pessoal, mas também no sentido folclórico de liberdade do povo alemão. Mas você tem que se perguntar posteriormente: liberdade contra o quê? Então a conspiração antissemita entra em jogo", completa Rathje.
Neste contexto, Salheiser acredita que não há fronteiras claras entre os Reichsbürger e neonazistas. Ambos compartilham um "terreno ideológico", incluindo o revisionismo histórico. "Os neonazistas alemães empunham as mesmas bandeiras preto-branco-vermelho ou exibem insígnias do Império Alemão pré-1918 que os Reichsbürger usam para expressar seu desprezo pela democracia."
Na Alemanha, disseminar material de propaganda ou simbologia nazista (suásticas, por exemplo) é um crime passível de até três anos de prisão. Logo, grupos extremistas utilizam outras imagens, como a bandeira do antigo império.
Quem são os Reichsbürger?
Os Reichsbürger são um movimento não uniforme composto por diversos grupos espalhados pela Alemanha e online. Parte deles expressa a sua contrariedade ao Estado alemão moderno rejeitando documentos oficiais, declarando a área de suas casas como territórios nacionais independentes, imprimindo passaportes destas "nações", criando suas próprias moedas e até "pseudo-unidades policiais".
Os autoproclamados 'cidadãos do Reich' se recusam a pagar impostos, não aceitam representantes eleitos democraticamente e são agressivos com funcionários públicos, oficiais de justiça e policiais que os abordam para executar ordens administrativas.
Por isso, segundo a Agência Federal para Educação Cívica (BPB), as autoridades estão "preocupadas" com o número significativo de portes de armas legais entre membros do movimento e buscam suspender essas permissões quando "legalmente possível".
A polícia alemã apreendeu, em 2019, grandes quantidades de armamentos, munições e explosivos com cidadãos do Reich, incluindo com indivíduos cujos portes de armas haviam sido banidos.
A BPB considera como "muito elevado" o risco de os Reichsbürger violarem "a ordem legal", uma vez que não a reconhecem, e avalia o potencial para violência de parte desses indivíduos como "muito grande". Para Salheiser, essa "tendência para violência é flagrante", ainda que parta de uma minoria.
"O Estado liberal democrático e seus representantes são vistos como inimigos do povo - portanto, a resistência violenta parece legítima. Alguns se preparam para o 'Dia X' [cenário apocalíptico do colapso da sociedade] para superar a democracia e suas instituições. Eles se preparam para matar", diz.
"Hoje, pesquisadores e agências de segurança concordam sobre os perigos desta cena. Seus pensamentos rejeitam princípios fundamentais de nossa sociedade, como o Estado de Direito. Sua 'utopia social' se move entre uma monarquia autoritária (império alemão) e o Estado ilegal do 3º Reich (regime nazista)", afirma Paul Zschocke, pesquisador no Instituto de Pesquisa da Paz de Frankfurt.
Seitas religiosas
Embora haja muitas divisões entre grupos e "governos imperiais" no movimento, o perfil dos 'cidadãos do Reich' é claro: cerca de 75% são homens entre 40 e 60 anos, que tende a pertencer a segmentos mais desfavorecidos da sociedade.
Pesquisas nacionais do Bundesamt für Verfassungsschutz (BfV), o serviço de inteligência doméstico alemão, e da Bundeskriminalamt, a polícia federal, calculam que, em 2019, havia 19 mil membros dos movimentos Reichsbürger e Selbstverwalter (algo como cidadãos soberanos, que não se consideram parte da Alemanha ou sob sua jurisdição). Em 2017, esse número era de 16,5 mil.
Apesar dos dados oficiais, Rathje argumenta ser difícil determinar o tamanho real desses grupos, porque as informações atuais são do Escritório Federal para a Proteção à Constituição, uma instituição "não científica". Logo, ainda faltariam dados de estudos conduzidos por universidades e revisados por pares.
Atualmente, 950 Reichsbürger são classificados como extremistas de direita na Alemanha. Cerca de 530 possuem armas legais e ao menos 790 perderam essas autorizações.
Enquanto a BPB vê semelhanças do movimento com "redes e seitas religiosas", o Ministério do Interior diz em seu relatório anual sobre a proteção da Constituição que os Reichsbürger possuem uma "visão de mundo pouco sofisticada", moldada por, entre outros pontos, teorias da conspiração e antissemitismo. Desta forma, medidas "executivas" contra eles têm pouco sucesso e raramente resultam em saídas do movimento.
"A radicalização não acontece da noite para o dia, nem a desradicalização. Às vezes, a contra-ação do Estado é uma desculpa pronta para mergulhar ainda mais feliz na toca do coelho — ou serve à autoimagem de vítima da opressão estatal", afirma Salheiser.
Por causa de sua "convicção em uma agenda oculta", completa Zschocke, é "quase impossível" deliberar razoavelmente com um Reichsbürger. "Frequentemente, as ações do governo deixam seus seguidores mais convencidos de suas causas."
Origens recentes
A BPB rastreia o início do movimento por volta dos anos 1980, com Wolfgang Gerhard Günter Ebel. O ex-funcionário da companhia ferroviária da Alemanha Oriental se autointitulou "Chanceler do Reich" e formou o seu primeiro "governo" em Berlim Ocidental, em 1985, alegando ter sido encarregado pelos Aliados.
Ebel tinha clara postura antissemita. Para ele, a Alemanha pós-guerra era uma associação ilegal que acobertava uma conspiração "judaico-maçônica". Logo, declarou que os cidadãos do Reich não pagariam impostos, taxas ou multas àquele país.
Segundo a BPB, Ebel distorceu informações parcialmente reais para alegar a inexistência do Estado alemão moderno. Entre elas, que a Alemanha não possui uma Constituição e não é soberana porque não houve um tratado de paz com os Aliados. Contudo, a Lei Básica de 1949 é a Constituição do país, ainda que tenha sido criada como uma saída temporária à espera de que os territórios ocupados pela União Soviética fossem reanexados.
A República Federal da Alemanha, além disso, conquistou a soberania plena em 1990, quando o Tratado Dois-Mais-Quatro reunificou o país e definiu que os Aliados abriam mão de seus direitos em relação à Alemanha.
O movimento iniciado por Ebel sofreu uma cisão em 2004, quando foi fundado em Hanover um"governo no exílio", independente dos Aliados. E a liderança deste grupo ficou com o "chanceler" Norbert Rudolf Schittke, um extremista de direita monitorado pelas autoridades que minimiza o regime nazista e acredita que os alemães são as verdadeiras vítimas da Segunda Guerra Mundial.
Diversos outros grupos surgiram nas últimas décadas. Mas Rathje destaca que parte do movimento pode ter origem por volta dos anos 1950, uma vez que a ideia de reestabelecer o Império Alemão e libertá-lo da ocupação estrangeira era um dos objetivos de nazistas dentro da República Federal da Alemanha.
"Eles criaram o Partido Socialista do Reich, o primeiro a ser banido como inconstitucional [na Alemanha pós-guerra]. Ele até carregava em seu objetivo no nome", afirma.
Quando a organização foi proibida, neonazistas e a extrema direita prosseguiram com o plano. "É por isso que nas manifestações neonazistas e de extremistas de direita na Alemanha sempre haverá bandeiras preta-branca-vermelha que representam o Império."
Violência e ataques a agente da lei
O movimento começou a se radicalizar no início dos anos 2010. E desde novembro de 2016, o sistema de inteligência alemão monitora de perto a suas atividades.
Os Reichsbürger, por outro lado, demonstravam agressividade já nos anos 1980 e 1990. Como não pagam impostos, eles entram em disputas legais contra o Estado. Ebel e seus seguidores enviavam cartas às autoridades com sentenças de morte proferidas pelo "governo do Reich" contra funcionários públicos por atuarem em um "Estado ilegal".
Em 2019, segundo o BfV, cidadãos do Reich e Selbstverwalter cometeram 589 crimes extremistas politicamente motivados. Destes, 121 foram registrados como atos de violência, além de 156 casos de coerção e ameaças, 81 de extorsão e 31 de resistência a policiais.
Mas o episódio que mudou a percepção das autoridades sobre o perigo dos Reichsbürger ocorreu em outubro de 2016, em Georgensgmünd, no Estado da Baviera. Policias tentavam executar mandados de busca e apreensão quando foram recebidos a tiros por um homem de 50 anos, que matou um dos oficiais e feriu outros três. O réu foi condenado à prisão perpétua.
Antes daquele caso, em agosto de 2016, outro cidadão do Reich feriu um policial com uma arma de fogo, também durante a execução de um mandato. Ele foi sentenciado a sete anos de prisão por tentativa de homicídio.
Há ainda diversos outros casos de conflitos graves com a polícia. Em março de 2018, por exemplo, três policiais na Baixa Saxônia foram atacados e tiveram sua viatura seguida cidadãos do Reich ao tentarem conduzir um mandato de prisão contra um Reichsbürger.
"Mesmo que se aceite que toda sociedade tem suas 'franjas lunáticas', é preciso ver que a atitude hostil e conspiratória desses grupos os torna muito perigosos. Junto com a propaganda de posse de armas, tudo isso cria uma mistura explosiva", diz Zschocke.
Para os Reichsbürger e a extrema direita de forma geral, argumenta o pesquisador, é "essencial" criar uma nova visão de mundo em torno do 'status quo ante' (como as coisas eram antes), distante da sociedade moderna que constantemente nega o "seu mundo".
"[Ou seja] forte masculinidade em vez de igualdade de gêneros, segurança nos papéis sociais ao invés de incerteza da liberdade a todos, um Estado forte que apoia 'o interesse geral'. A bandeira do Império habita todos esses anseios e pela rejeição ao nosso atual Estado de Direito, a República Federal", diz Zschocke.
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