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'Ele pediu que o adotássemos se desenhando na nossa foto de família'

Sarah McDermott - BBC News

28/09/2020 07h51

George foi negligenciado por sua família de origem ao nascer, e depois uma adoção deu errado. Só havia uma família na qual ele se sentia em casa.

George* é uma das milhares de crianças do Reino Unido que foram viver em abrigos porque seus pais não podiam cuidar delas. Seriamente negligenciado, ele tem dificuldades de se expressar, mas houve algo muito importante que ele quis pedir a uma possível família adotiva ? e ele escolheu uma maneira muito particular para fazer isso.

George tinha três anos e meio quando foi morar com os Atkinsons, em um modelo de adoção temporário conhecido no exterior como foster care.

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Ao chegar, as crianças da família o levaram felizes para assistir TV na sala, enquanto os pais, Tony e Elsie, conversavam com a assistente social na cozinha. Mas George parecia não conhecer nenhum dos programas que Nancy e Stanley estavam zapeando.

Havia espaguete à bolonhesa para comer, mas quando Tony e Elsie deram o prato e talheres a George, ele ficou olhando para o chão. Os adultos apontaram para latas de feijão na dispensa e batatas fritas congeladas como alternativas de refeição, mas George parecia não reconhecer nada daquilo.

"Não sabíamos o que fazer", diz Tony. "Não conseguíamos envolve-lo de jeito nenhum."

Depois do jantar, Tony e Elsie estavam na pia lavando a louça quando George subitamente saiu de um canto onde estivera imóvel por mais de uma hora. Ele correu até a geladeira, tirou uma garrafa de dois litros de leite, mordeu a tampa de plástico e bebeu o leite direto dali.

"Tudo derramou em cima dele, mas pelo menos sabíamos que havia leite onde ele morou", lembra Tony, "embora ele não parecesse saber como colocá-lo em uma xícara."

Mais tarde, quando George parecia com sono e Tony disse que era hora de dormir, o menino pegou seu casaco e deitou-se embaixo dele no chão da sala. Tony gentilmente o conduziu escada acima para seu novo quarto.

"Ele parecia não estar familiarizado com o conceito de deitar em uma cama com um edredom", relata Tony.

George foi a segunda criança que os Atkinsons abrigaram. Antes, houve um bebê que, segundo Tony, "não sabia o que era ter medo". Mas George era muito mais complexo ? estava evidente para Tony e Elsie que ele tinha sido negligenciado por seus pais biológicos antes de ser tirado deles.

"George obviamente teve um caminho muito, muito difícil", afirma Tony. "Quando ele chegou a nós, estava muito pálido ? cinza, na verdade. Não era uma boa cor. Ele tinha a fala limitada, e não sabia que, diante da mesa, se senta em uma cadeira; para que servia uma colher ou o que era tomar banho."

"Não acho que alguém o tenha machucado fisicamente ? eles simplesmente não sabiam como cuidar dele."

No dia seguinte, Tony levou George a um parque próximo. Ele notou a criança olhando fixamente para algo, e percebeu que era uma árvore. Ele levou George até a árvore e juntos eles olharam e tocaram nela por uns 20 minutos.

"Esta é a casca e estas são as folhas", explicava o adulto.

"Esse garoto nunca tinha visto uma árvore antes e certamente nunca havia tocado em uma."

Tony e Elsie anotavam observações e as enviavam para a assistente social responsável por George.

"Isso dava a eles um retrato do que essa criança viveu e basicamente confirmava que ele precisava ser retirado de sua mãe e de seu pai", opina Tony. "Porque há um monte de coisas às quais crianças pequenas deveriam ter sido expostas aos três anos e meio que ele não tinha."

O menino gradualmente se adaptou à nova vida com os Atkinsons e parecia se sentir seguro com a família. Ele começou a emitir opiniões e ficava muito animado quando o micro-ondas apitava para sinalizar que seus feijões e salsichas em lata ? sua nova comida favorita ? estavam prontos.

Mas um dia Tony descobriu que George, então com quatro anos, havia desenhado nas paredes de todos os cômodos da casa círculos com um ponto no meio.

"Parecia que alguém tinha desenhado seios em todos os lugares", lembra Tony. "Alguns pais ficariam loucos, mas como pai adotivo, pensei: 'O que isso tudo indica?'"

"É um campo de força", disse George ao adulto, enquanto pressionava um dos pontinhos fazendo um barulhinho de "bip".

Então ele foi até a sala e apertou outro círculo: "Bip!"

"Isso nos mantém seguros", comemorou a criança.

Tony presumiu que George tinha visto algo semelhante na TV.

"Então eu disse: 'Temos uma porta da frente, isso nos mantém seguros'", lembra.

"E George respondeu: 'Nem sempre. As portas nem sempre nos mantêm seguros.'"

Para ajudar a criança a se sentir mais segura, Tony comprou no supermercado uma campainha convencional e barata, colocou-a no jardim da frente e disse a George que, se ele pressionasse o botão especial, uma tela de segurança envolveria toda a casa.

George poderia apertar o botão sempre que eles saíssem de casa, e apertar novamente quando voltassem.

"Só tivemos que fazer isso por alguns dias, e depois pintei (por cima) os círculos com pontos", diz Tony.

"Ele estava com medo e havia razões para isso que eu não entendia, mas eram reais e eu precisava fazer com que ele se sentisse seguro."

Durante os 16 meses que os Atkinsons cuidaram de George, um processo judicial determinou que seus pais biológicos não podiam cuidar dele e que ele nunca mais poderia voltar a morar com eles. A mãe e o pai de George tiveram um encontro final com o filho, que estava comcerca de quatro anos e meio.

Não havia nenhum outro parente que pudesse acolher George, e Tony e Elsie se perguntaram o que o futuro reservava.

"As pessoas simplesmente não querem adotar crianças quando elas têm quatro, cinco ou seis anos ? especialmente se elas têm problemas médicos, emocionais e todos os outros acontecendo", diz Tony.

Mas, contra todas as probabilidades, pouco antes de completar cinco anos, George foi escolhido por um casal que estava ansioso para adotar. Eles enviaram um álbum com fotos e legendas dizendo "Eu serei seu papai", "Eu serei sua mamãe", "Esta será sua nova casa" e "Esta vai ser o seu jardim".

"E então veio a percepção de que, como um cuidador temporário, haveria uma quantidade significativa de luto", recorda Tony, "porque é preciso entregar a criança".

A família adotiva veio visitar. Elsie, Nancy e Stanley saíram, e Tony mal conseguiu subir enquanto George e seus novos pais brincavam no tapete da sala e tentavam construir laços.

No segundo dia, a nova família levou George ao parque e no terceiro para uma visita à casa deles. A transição ocorreu suavemente por algumas semanas, e as coisas estavam indo muito bem ? George estava um pouco inseguro, mas sobretudo animado. Então, numa terça-feira de manhã, a assistente social buscou George e disse aos Atkinsons que era um adeus.

"A assistente social fechou a porta, eles entraram no carro, e então todos nós começamos a chorar", conta Tony.

"Às vezes, as pessoas me dizem: 'Eu nunca poderia abrigar uma criança assim porque ficaria muito chateado quando partisse'. Mas as lágrimas que você derrama são o preço para que essa criança tenha um lar para sempre ? e este é um preço o qual você está preparado para pagar."

Os Atkinsons mantiveram contato com a família adotiva de George por um tempo, mas Tony e Elsie sabiam que não podiam continuar visitando porque George precisava se firmar com seus novos pais. Então, conforme o contato diminuiu gradualmente, aquilo pareceu natural ? Tony e Elsie presumiram que tudo estava indo bem.

Mas 20 meses depois que George os deixou para viver com sua "família definitiva", houve notícias inesperadas.

"Recebemos um telefonema dizendo: 'Você se lembra daquele garotinho? Vocês são as únicas pessoas no mundo com quem ele tem alguma conexão. Você poderia aceitá-lo de volta?'. Aquela adoção foi interrompida", lembra Tony.

"Adoções às vezes são interrompidas nos primeiros dois ou três meses ? mas uma adoção interrompida após esse longo período de tempo é bastante incomum."

A essa altura, George tinha quase sete anos e Tony e Elsie sabiam que, se o recebessem de volta, não seria fácil.

"Porque íamos ter de volta uma criança muito irritada e problemática", conta o homem.

Depois de muita reflexão, os Atkinsons decidiram que criariam George novamente. No dia em que voltou, o menino correu para seu antigo quarto e colocou suas coisas por todos os cantos. Ele se virou muito bem, mas Tony e Elsie ficaram preocupados sobre como o rumo inesperado de sua adoção o afetaria.

"Aquele sentimento de 'meus pais biológicos não me amaram o suficiente para me manter; vocês, como cuidadores adotivos, não me mantiveram; depois, minha família adotiva me rejeitou. Eu não sou digno de amor, então vou afastar todos para provar isso'", relata Tony sobre os pensamentos que temia que o garoto tivesse. "Muitas crianças sob tutela têm uma reação semelhante."

Cerca de dois anos se passaram e, embora ter George de volta não tenha sido como navegar em um mar calmo, as coisas andavam bastante bem. Então, um dia, Tony percebeu que George estava "assustadoramente quieto" e foi ver o que ele estava fazendo.

Ele encontrou a criança sentada no chão da sala rodeado por cacos de vidro quebrado. Uma foto emoldurada de Tony e Elsie e seus dois filhos biológicos, tirada anos antes ? muito antes de George entrar em suas vidas ? estava em pedaços.

George quebrou a moldura, tirou a foto dela e desenhou a figura de uma criança pequena com um sorriso enorme ? ele mesmo ? atrás de Nancy e ao lado de Elsie.

"Até agora fico muito emocionado ao lembrar disso", conta Tony, que agora considera essa foto um tesouro de família, aquilo que ele gostaria de salvar se a casa estivesse pegando fogo.

"George não era necessariamente o garoto mais articulado do mundo, mas era óbvio que essa era sua maneira de comunicar algo bastante difícil para ele. Dizer 'quero estar na sua família' é uma posição extremamente vulnerável quando você tem oito anos e não tem outras opções. Você está realmente colocando seu coração para fora."

Tony disse a George que aquela era uma imagem adorável, e perguntou se o menino gostaria de se tornar um Atkinson.

"Ele apenas acenou com a cabeça", diz Tony. "Ele é cauteloso com suas emoções porque foi magoado muitas vezes. A essa altura, ele sabe que as adoções não duram necessariamente para sempre, não necessariamente têm finais felizes."

Tony e Elsie conversaram com os assistentes sociais sobre o início do longo processo de inscrição para adoção.

"O abrigo do tipo foster care é temporário, mesmo que dure dois anos", explica Tony. "Com a adoção, você está assumindo totalmente a criança, assumindo toda a responsabilidade ? financeira, relacional, emocional."

"Você basicamente está dizendo: 'você estará em nossa família como um filho de nascimento, então seus filhos serão meus netos e seus netos serão meus bisnetos.' É uma coisa muito grande a se fazer. "

Quatro anos atrás, aos nove anos, George finalmente se tornou um Atkinson. Mas Tony diz que mudar seu sobrenome e dizer que ele foi adotado não foi uma conclusão instantânea para os problemas enraizados que começaram quando seus pais se mostraram incapazes de criá-lo com segurança.

"Para lidar com essa ferida, é preciso uma quantidade enorme de tempo", diz o pai.

Tony diz que há um comportamento frequente em que a criança parece querer dificultar as coisas, a ponto de fazer os pais explodirem ? como se fosse para colocá-los em um limite perto de dizer "não te quero mais aqui". E a criança encontraria então novamente sua dor: "Eu sabia! Eu sabia que não era digno de amor".

"Então, o que você tem que fazer como um pai temporário ou adotivo é apenas capturar essa raiva e atender às necessidades da criança."

Desde que foi adotado, George passou pelo que Tony descreve como um "período de regressão", durante o qual ele "foi pai" e "mãe" de um bebê de brinquedo por cerca de três meses.

"Um daqueles realistas", diz Tony.

George conversava com o bebê ? que ele chamava de John ?, o lavava, vestia e levava para passear.

"Para George, John era tão real quanto você e eu", lembra o Tony. "George estava basicamente reencenando tudo o que havia perdido, foi lindo de assistir. Então, um dia, John foi empurrado para debaixo da cama e esquecido."

Outros momentos foram mais desafiadores, como quando George anunciou, no meio da noite, que queria urgentemente um iPhone.

"Não há como comprar um iPhone X para uma criança de sete anos às duas da manhã, mesmo que você ache que é uma boa ideia", brinca o pai.

Mas George foi inflexível, então Tony sugeriu que fossem ver se uma loja local tinha algum à venda.

"Com uma criança biológica, você nunca faria isso. Você diria: 'fique quieto e vá para a cama!'. Mas com um filho adotivo, você tem que pensar mais na hora de atender às suas necessidades ", diz Tony.

"Então subimos a rua, pegando o caminho mais longo possível para acalmá-lo gradualmente, e quando chegamos, vejam só, as venezianas estão fechadas porque são duas da manhã."

O pai então sugeriu imprimir a foto de um iPhone X, colando-a em um pedaço de papelão e... George concordou.

"Fomos para a cama por volta das quatro da manhã, absolutamente exaustos e com a paciência testada", disse Tony.

"Mas, ao atender a essas necessidades, você está formando gradualmente um vínculo de confiança com a criança, que poderá considerar: 'Acredito quando você diz que vai cuidar de mim; quando diz que nunca vou ter fome de novo; acredito que nunca serei negligenciado novamente; que nunca vou ficar sozinho novamente. Acredito em você quando você diz que me ama.'"

George fez 13 anos este ano e, embora achasse os aniversários muito difíceis ? ele destruía todos os presentes que recebia, aparentemente reproduzindo a dolorosa impressão que não era digno de amor ?, este foi a melhor celebração que já teve, apesar de ter ocorrido durante o isolamento por conta da pandemia de coronavírus.

"Agora ele fica muito animado com os presentes", conta o pai. "Mas em seu aniversário, ele às vezes ainda diz: 'Eu me pergunto o que meus pais biológicos estão pensando hoje?'"

Recentemente, ele fez uma pergunta para Tony ? a quem ele geralmente chama de 'pai' em casa, e 'Tony' quando eles estão fora.

"Ele me disse: 'Quando eu for mais velho, quando eu tiver filhos, como eles vão chamá-lo? Eles vão chamá-lo de Tony ou vão chamá-lo de vovô?'"

"Ele está ansioso para o futuro, ele está contando com ele. Isso é realmente lindo."

Já se passaram sete anos desde que George voltou para os Atkinsons e cerca de uma década que começou a ser criado por eles. E as coisas estão indo bem, apesar do começo de vida que George teve.

Tony se pergunta se os próprios pais de George foram negligenciados quando crianças ? talvez isso explique por que não sabiam como criar o filho?

"Mas, felizmente, se George tiver filhos", comemora Tony, "eles nunca terão que experimentar o que ele experimentou."

*Todos nomes reais foram alterados; ilustrações por Katie Horwich


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