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Como o desmatamento fez com que uma cidade fosse 'engolida' por dunas no Espírito Santo

Sarita Reed e Vinícius Fontana - De Vitória (ES) para a BBC News Brasil

23/11/2020 17h35

As dunas soterraram a antiga vila de Itaúnas, que existiu por quase 200 anos, entre os anos 1950 e 1970 no Espírito Santo.

Mar azul, rio, lagoas e dunas. Muitas dunas. Esse lugar idílico no norte do Espírito Santo, próximo à fronteira com a Bahia, chama-se Itaúnas.

Para ver o mar, é preciso primeiro subir os montes de areia da região, alguns com mais de 30 metros de altura. Porém, o que o visitante não percebe, à primeira vista, é que sob seus pés há não só areia, mas também as ruínas de uma vila inteira.

As dunas soterraram a antiga vila de Itaúnas, que existiu por quase 200 anos, entre os anos 1950 e 1970. À medida que a areia invadia suas casas, os moradores foram se deslocando. Alguns se mudaram para um terreno próximo, do outro lado do rio Itaúnas, onde atualmente se situa a nova vila.

Hoje em dia, a depender do vento, ainda é possível ver remanescentes da vila soterrada, como a igreja, o cemitério e alguns pertences pessoais, que eventualmente são descobertos no local.

Mas como uma vila que existiu por tanto tempo foi soterrada em pouco mais que uma década? Os estudiosos da história de Itaúnas apontam o principal culpado: o desmatamento.

A vila antiga

A velha Itaúnas era um povoado típico do litoral brasileiro remanescente do tempo colonial, um mosaico do povo que vivia na região: pescadores, quilombolas, indígenas, imigrantes portugueses, entre outros. Estima-se que a vila tinha 1500 habitantes na década de 1940.

O povoado vivia da pesca, da agricultura de subsistência e também da produção de farinha de mandioca. Ângelo Camilo, conhecido como 'Caboquinho', é um dos antigos moradores. Com 80 anos, nasceu na vila soterrada e hoje mora na nova Itaúnas.

"A vila antiga de Itaúnas era mil maravilhas. Você tinha seu porco, sua galinha, sua terrinha, abóbora, feijão... Só faltava mesmo querosene, pois não tinha energia. Comprava o sabão, o fumo, e o resto a gente tirava da roça", recorda.

Outra moradora daquela época é Maria Catarina Maia, 77. "Morava no interior, pertinho de Itaúnas, mas íamos com frequência à vila. De 15 em 15 dias íamos a pé para o baile. Dançávamos a noite toda, dava para dormir no meio da rua, não tinha confusão", relata.

Itaúnas era cortada por duas ruas, que os moradores recordam apenas como "a de cima e a de baixo". Conforme Caboquinho, a areia começou a entrar pela rua de cima, onde ele morava, no final dos anos 50.

"Lá por 1958 eu acompanhava as dunas, elas andavam 15 metros por ano. Eu fiz isso até 1961, 62, depois eu parei".

O soterramento gradual aconteceu até 1970, quando a última família deixou a vila antiga. Os moradores foram saindo aos poucos, desmontando suas casas de madeira e levando o material para a vila nova. Porém, muitos decidiram não ficar no local e se mudaram para cidades vizinhas ou até mesmo para outros estados.

As razões do soterramento

Os moradores se dividem quanto à causa do soterramento. Para Caboquinho, esse é um mistério que ninguém consegue revelar. Já Maria Catarina recorda que parte da área próxima à vila foi desmatada, e por ali a areia começou a entrar.

"Tinha uma mata na frente das dunas, de frente para a praia. Até que uma autoridade mandou derrubar todas aquelas árvores. Depois que derrubou, o vento batia e a areia veio chegando", afirma.

Conforme o oceanólogo e doutorando na University of Western Australia Nery Contti Neto, por mais que não haja registros precisos da época, estudos apontam que o desmatamento foi crucial para que as dunas invadissem a vila.

"No início, as dunas eram incipientes, com menos de um metro de altura. Por conta da retirada da vegetação, essas dunas cresceram e hoje têm cerca de 30 metros de altura", explica.

As dunas se formam quando as marés e, principalmente, os ventos carregam a areia da praia. Ao encontrar um obstáculo, ela se assenta e começa a se acumular. A vegetação costeira serve como barreira para "segurar" os sedimentos e dificultar seu avanço.

Com a retirada da vegetação, não há mais obstáculo que segure a areia. Além disso, a restinga ajuda a reduzir a velocidade do vento. Com o vento mais forte, os sedimentos conseguem avançar ainda mais.

Hoje em dia, as dunas estão em uma área protegida: o Parque Estadual de Itaúnas, criado em 1991. Curiosamente, a tragédia ambiental da antiga vila de Itaúnas poderia ter sido evitada se uma proposta de 1940 sobre a criação de uma reserva florestal tivesse sido acatada.

Principais ameaças

As ameaças aos ecossistemas costeiros no Brasil remontam à época da colonização, realizada pelo litoral, como lembra Clemente Coelho Júnior, professor-adjunto do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Pernambuco (UPE). "As primeiras cidades nasceram sobre a vegetação de restinga, à beira dos rios e do mar".

Nas últimas décadas, não só Itaúnas sofreu consequências graves pela retirada de vegetação costeira. Foram sentidos inúmeros impactos ao longo do litoral. "Atafona, no Rio de Janeiro, já foi destruída. O sul do Espírito Santo é outro exemplo, assim como Santa Catarina, onde há um histórico de colocar casas na beira da praia", cita Contti Neto.

No Nordeste brasileiro, fazendas de camarões construídas em áreas de manguezal foram soterradas pela areia, também em decorrência da devastação da vegetação nativa - mais uma evidência de como o descaso com a preservação ambiental é, também, contraproducente.

De forma geral, hoje a grande ameaça a esses ecossistemas ainda é a ocupação humana, sobretudo fruto da expansão imobiliária impulsionada pelo turismo. "A erosão costeira só passa a ser um problema quando você tem pessoas que ocupam o litoral. E aí então tudo que foi construído pelo homem passa a ser ameaçado pelo processo costeiro", explica Pedro Walfir, pesquisador da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do Instituto Tecnológico Vale e coordenador do grupo de zona costeira do MapBiomas.

As mudanças climáticas e o aquecimento global são também grandes reveses, pois ocasionam a subida relativa do nível do mar, promovendo erosões costeiras em grande parte do mundo.

Na contramão de convenções internacionais sobre conservação, em setembro deste ano, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), presidido pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, votou pelo enfraquecimento da legislação ambiental, revogando, entre outras, uma resolução que delimitava faixas de proteção mínima de 300m para manguezais e áreas de restinga do litoral.

Especialistas associam a decisão do Conama pela revogação da resolução a uma reestruturação estratégica pela qual o Conselho passou no ano passado, na qual o número de seus integrantes foi reduzido de 96 para 23. "Tiraram os assentos das universidades, das ongs, das classes sociais. De todos aqueles que de fato defendem a conservação da natureza. Ficaram apenas aqueles que tecnicamente sempre vão votar com o governo", explica Coelho Júnior.

Em outubro, a ministra do STF Rosa Weber suspendeu liminarmente a revogação da resolução. A questão ainda será avaliada pelo Plenário da Corte.

O que pode ser feito

A atual legislação ambiental é adequada e suficiente para a conservação e o uso sustentável dos ecossistemas costeiros, porém, esforços são necessários para que ela seja amplamente implementada na prática, opina Pedro Walfir: "Precisamos fazer com que essas leis que estão vigentes valham cada vez mais, e não afrouxá-las ou desrespeitá-las".

O cumprimento das leis, por sua vez, depende de fiscalização, que vem sofrendo reduções sistemáticas no governo Bolsonaro. "Muito da fiscalização pode ser realizada remotamente, usando imagens de sensores remotos e drones, por exemplo. As pessoas que trabalham hoje nos órgãos de fiscalização precisam estar equipadas com instrumentos e conhecimentos sobre técnicas de fiscalização remota", diz Walfir.

Clemente Coelho Júnior, da UPE, destaca quatro principais frentes de ação para a proteção dos ecossistemas costeiros: investimento em projetos de restauração desses ecossistemas; investimento em saneamento básico, cuja baixa taxa no Brasil é responsável pela contaminação de rios e mares; elaboração de planos diretores, nos municípios litorâneos, que resguardem a biodiversidade; e mudança para uma matriz energética de baixo carbono aliada à adoção de práticas de consumo consciente.

A nova vila

Os moradores que se deslocaram para a nova vila após o soterramento relatam que a vida mudou bastante naquela época. "Dói o coração da gente. A gente tinha mais amizades, ia na casa de um vizinho. Ficou tudo muito diferente do que havia na outra vila", avalia Maria Catarina.

"O rio Itaúnas tinha muito peixe, hoje não tem mais nada. O progresso e as empresas de papel vieram, lá nos anos 70, e acabaram com toda a nossa vegetação, com nossas guardas, com nossas nascentes", lamenta Caboquinho.

Na região, há extensas plantações de eucalipto que fornecem madeira para empresas de celulose, que continuam a expandir suas operações.

Nos anos 80, era comum também a extração clandestina de areia das dunas, destinada à construção civil.

Hoje Itaúnas é um importante polo turístico. Se antes a principal atividade era a pesca e a agricultura de subsistência, atualmente o turismo é o motor econômico da região. A pressão imobiliária e industrial foi muito intensa até a criação do Parque Estadual de Itaúnas, em 1991, que passou a garantir a proteção ambiental do entorno da vila.

Com a existência do parque e das normas de proteção ambiental, especialistas apontam que é improvável que um novo desastre ambiental, como o que aconteceu há 50 anos, volte a ocorrer. As dunas continuam a se movimentar cerca de cinco metros por ano, mas, com a manutenção da área e o replantio da restinga, é possível fazer um controle adequado do ambiente.

"O que aconteceu em Itaúnas no passado é um sinal de alerta para a gente hoje", diz Coelho Júnior, da UPE. "Nos dá indicação do que não fazer quando se fala em retirada de vegetação".

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