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Sputnik V: por que muitos russos desconfiam da vacina criada no próprio país

Sarah Rainsford - Da BBC News em Moscou

05/03/2021 10h56

Imunizante já foi encomendado por vários países do mundo devido à sua alta eficácia, mas muitos russos ainda permanecem desconfiados.

Quando as autoridades do vilarejo de Sputnik, na Rússia, anunciaram recentemente que ofereceriam a vacina nacional de mesmo nome contra a covid-19 em uma clínica local, apenas 28 aposentados se registraram para tomar o imunizante.

O interesse no exterior pela vacina russa disparou desde que dados publicados na revista científica Lancet mostraram que ela é 91,6% eficaz contra o coronavírus, taxa similar à de outros imunizantes e superior à da CoronaVac, por exemplo, aplicada no Brasil.

Esse endosso foi um sucesso político, bem como científico, para um projeto de prestígio alardeado por Moscou e abertamente questionado por muitos no Ocidente.

Mas, embora países da América Latina à Europa estejam agora encomendando lotes da Sputnik, a taxa de vacinação na própria Rússia tem sido lenta, já que muitas pessoas se mostram relutantes em receber a injeção.

Baixos investimentos em publicidade sobre a vacina e uma desconfiança de muitos pela forma com que o país é conduzido politicamente ajudam a explicar o cenário.

Sputnik em Sputnik

"Todo mundo me amedrontou dizendo que iria doer, mas eu não senti nada", diz um aposentado, puxando seu suéter após uma injeção no vilarejo de Sputnik.

Atrás dele, uma enfermeira se inclina para dizer no ouvido de outro aposentado que ele deveria se abster de beber álcool por um tempo após a injeção.

A algumas horas de carro de Moscou, o vilarejo do Sputnik tem uma fazenda de gado, alguns blocos de apartamentos idênticos e nenhuma indicação do motivo pelo qual recebeu o nome em homenagem ao triunfo da corrida espacial soviética.

Já a ligação com a vacina é mais clara.

"O satélite Sputnik [em 1957] foi um grande avanço e esta vacina também é", ri Galina Bordadymova, servidora pública responsável pela vacinação no vilarejo, vestida com um casaco de pele, mas sem luvas, na rua extremamente fria.

"Planejamos a vinda de 25 pessoas, mas temos 28, por isso estamos satisfeitos", insiste, apesar de o grupo de risco na localidade somar mais de mil.

Sua equipe telefonou para moradores mais velhos, priorizando os mais vulneráveis ao vírus. "Qualquer pessoa que quisesse a vacina poderia obtê-la", diz Bordadymova.

Interesse internacional

Comentaristas do Ocidente inicialmente rejeitaram, até mesmo desdenharam, da Sputnik V, enquanto autoridades faziam afirmações ousadas com poucas evidências concretas.

Desde então, os dados dos testes de Fase 3 mostraram que a vacina é eficaz, com efeitos semelhantes aos imunizantes produzidos na Europa e nos Estados Unidos.

Como resultado, o interesse pela vacina no exterior explodiu - o Brasil é um dos países na fila pelo imunizante.

"Até mesmo nossos críticos ficaram sem argumentos", disse no mês passado Kirill Dmitriev, chefe do fundo de investimento estatal RDIF que financia a Sputnik.

A RDIF afirma que 39 países já registraram sua vacina e, para a alegria da Rússia, ela está até sendo chamada para ajudar a União Europeia, que vem tendo dificuldades para vacinar sua população por escassez de doses.

A Hungria foi a primeira a aprovar a vacina russa para uso de emergência e a Eslováquia acaba de receber 2 milhões de doses, ignorando discussões sobre o Sputnik ser uma "ferramenta" de influência russa.

A covid-19 não se preocupa com geopolítica, argumentou o primeiro-ministro eslovaco, Igor Matovic.

"Definitivamente a política é mais explicitamente citada no caso da vacina russa do que qualquer outra produzida no mundo hoje", disse Andrei Kortunov, do Conselho de Relações Exteriores russo.

Ainda assim, a Rússia agora tem tantos pedidos pela Sputnik que o Kremlin diz que não pode atender a todos com a capacidade de produção atual.

A RDIF diz que vai abastecer o mercado externo a partir de fábricas no exterior, e não com doses destinadas aos russos, mas ainda não deu detalhes como um cronograma.

"Para Putin, criar a vacina foi uma forma de provar ao mundo que a Rússia é um grande país desenvolvido, capaz de alcançar grande sucesso em esferas que exigem muita habilidade e tecnologia", argumenta Tatiana Stanovaya, da empresa de análises R.Politik.

Mas a aprovação da Sputnik em toda a União Europeia continua sendo uma meta difícil.

"Quando você decide comprar a vacina russa, parece que você investe ou aprova as conquistas do regime de Putin ou do próprio Putin", diz ela.

Cautela russa

No vilarejo de Sputnik, não há tal discussão sobre a política de vacinas.

Alguns residentes estão com medo de pegar a covid-19: dois moradores locais na casa dos 50 anos morreram do vírus na primeira onda da pandemia.

Mas os moradores parecem ainda mais cautelosos em tomar uma vacina.

Uma pesquisa nesta semana revelou que apenas 30% dos russos estão dispostos a receber a Sputnik V - queda de 8% desde seu lançamento, e apesar dos dados de segurança agora serem públicos.

"As pessoas estão com medo; existem todos os tipos de rumores sobre complicações", diz Lidia Nikolaevna, retirando a neve espessa da porta de sua garagem.

Ela estava hospitalizada com covid recentemente, então seu médico disse que ela ainda não precisava de uma injeção.

"Talvez mais tarde", arriscou Lídia, fazendo coro com outros moradores. "As pessoas dizem que está tudo bem, mas vamos ver. Se tudo correr bem, então acho que mais pessoas serão vacinadas."

"Os russos são conservadores: eles não confiam em seu próprio estado e não confiam em tudo o que pode sair desse Estado", afirma Andrei Kortunov, explicando a hesitação das pessoas.

Sem um lockdown nacional e uma menção mínima às mortes de covid pelas autoridades, eles poderiam ser perdoados por pensar que o perigo havia passado.

A TV estatal não foi usada com toda sua força persuasiva e o próprio presidente Vladimir Putin ainda não foi vacinado.

Portanto, apesar de vacinações em áreas remotas como Sputnik e pontos de vacinação em shopping centers, apenas 4 milhões de russos receberam até agora uma vacina contra a covid-19 - muito abaixo da meta do Ministério da Saúde de 60% de todos os adultos em seis meses.

O Kremlin reforça que não há déficit de vacina para uso doméstico.

Mas sua descrição da produção e da demanda doméstica como "em harmonia" para "esta etapa" sugere uma relutância em promover a campanha de vacinação com muita força, até que mais frascos rolem pelas correias das fábricas.

Voltando da clínica no vilarejo de Sputnik, o aposentado Anatoly disse que tomar a injeção não foi grande coisa.

"Foi super rápido", diz ele, imitando um soco no braço, ressalvando, contudo, não saber se realmente precisava ser vacinado.

"Estou saudável! Você só precisa beber samogon", insiste Anatoly, referindo-se à bebida com alta concentração de álcool de produção caseira.

"Acho que isso também vai me proteger da covid", ri o homem de 74 anos, antes de desaparecer em meio à neve.

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