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Como pedido de SOS em decoração de Halloween revelou prisão secreta na China

Julie estava no sótão de sua casa, abrindo o "kit de cemitério", quando caiu uma carta no chão - Flying Cloud Productions
Julie estava no sótão de sua casa, abrindo o 'kit de cemitério', quando caiu uma carta no chão Imagem: Flying Cloud Productions

16/04/2021 06h50Atualizada em 16/04/2021 06h50

Uma mãe preparava uma festa para a filha nos Estados Unidos quando abriu uma caixa com decoração de Halloween que estava guardada no sótão havia alguns anos. Na caixa, encontrou uma carta, escrita à mão, com um pedido de socorro.

Essa carta acabaria se tornando notícia internacional e se tornaria peça-chave no desmantelamento dos notórios campos de reeducação na China, em que centenas de milhares de opositores e membros de minorias religiosas ou grupos proibidos eram submetidos, segundo organizações de direitos humanos e relatos de ex-prisioneiros, a trabalhos forçados, humilhações e até torturas.

Esse caso surpreendente é contado em um episódio do podcast 'Que História!', produzido e apresentado por Thomas Pappon.

Dia da bruxas

No outono de 2012, na cidade de Damascus, no Estado de Oregon, nos EUA, a americana Julie Keith estava preparando a festa de aniversário de cinco anos de sua filha. O tema da festa era Halloween. Em entrevista ao programa Outlook, da BBC, ela conta que foi ao sótão atrás de uma caixa que tinha comprado havia dois anos com decoração típica do Dia das Bruxas.

"Era um kit de cemitério. Tinha umas lápides de isopor, esqueletos falsos, ossos, tecidos com manchas de sangue...E quando estava abrindo essas caixas, caiu uma carta no chão. Ela dizia: 'Senhor, se por caso você comprou esse produto, por favor repasse essa carta para a Comissão de Direitos Humanos da ONU. Milhares de pessoas aqui, perseguidas pelo Partido Comunista chinês, lhe serão eternamente gratas. Esse produto foi fabricado na Unidade A, Departamento 2 do campo de trabalhos forçados Masanjia, em Shenyang, na China. As pessoas aqui trabalham 15 horas por dia, sem parar no fim de semana, sem férias ou qualquer descanso. Caso contrário, são submetidas a torturas, maus tratos e xingamentos, quase sem pagamento. Muitos deles são seguidores da Falung Gong, são pessoas totalmente inocentes'."

A carta não era assinada. Julie tirou uma foto dela e a postou na internet. Ela achou um pequeno milagre ter encontrado a carta e queria compartilhá-la com amigos. Alguns sugeriram que ela enviasse a carta a organizações de defesa de direitos humanos, o que ela fez, mas, sem receber resposta. Ela resolveu então mostrar a carta para a chefe do departamento de comunicações da empresa em que trabalhava. Esta telefonou para um amigo jornalista da publicação local The Oregonian.

"Eles mandaram uma estagiária para me entrevistar", diz Julie. "Ela tinha começado havia poucos meses no jornal. E, num belo dia, num fim de semana, a matéria saiu, matéria de capa. Fui comprar o jornal, e minha cara estava ali, na primeira página. Imediatamente, comecei a receber vários telefonemas. Televisões locais, Fox, CNN, Epic Times, todos queriam falar comigo."

A história da carta correu o mundo. Pouco se sabia sobre os chamados campos de reeducação por trabalho na China, admirada pelo crescimento econômico extraordinário, mas criticada pelo histórico de perseguição de opositores, minorias étnicas e religiosas. E justamente por causa dessa perseguição Julie acabou recebendo duras críticas por ter divulgada a carta.

"Eu lia os comentários online, e muitos diziam que cometi um erro", ela conta, "porque agora as pessoas desse campo sofreriam ainda mais punições".

"Fiquei arrasada. Achei que talvez tivesse mesmo feito a coisa errada. A carta diz em que unidade e que departamento as pessoas estavam no campo. Mas eu ficava sempre voltando ao que a carta dizia. Afinal, o autor da carta queria que eu a divulgasse."

Mas quem era o autor da carta? Julie Keith só viria a saber detalhes sobre ele anos mais tarde, graças à pesquisa de um cineasta canadense de origem chinesa, Leon Lee.

Em entrevista ao Outlook, Leon conta que ouviu a história no noticiário. Ele acompanhava questões ligadas à China havia um tempo, e sabia da reputação do notório campo de Massanjia. "Imediatamente, achei que, se alguém mandou uma carta de Massanjia, deveria haver uma boa história por trás dela."

Leon tinha feito documentários focando em assuntos chineses que dificilmente são abordados na China. Um de seus filmes mais conhecidos, Human Harvest ('Colheita Humana'), sobre o comércio ilegal de órgãos humanos extraídos de prisioneiros políticos, foi visto em vários países e recebeu mais de uma dezena de prêmios. Leon não pode entrar na China, mas graças a seus filmes, ele conseguiu criar uma rede de contatos com dissidentes e jornalistas chineses, dispostos a ajudá-lo. Demorou alguns anos, até ele chegar ao autor da carta, Sun Yi, e poder falar com ele, via Skype.

Nesse contato, Sun Yi disse que sua história precisava ser contada e se dispôs a filmar depoimentos seus e a ajudar como pudesse. Sem poder entrar no país para ajudá-lo, Leon teve de dirigi-lo à distância.

"Foi o filme mais difícil que já fiz", diz ele. "Sun Yi não sabia usar uma câmera. Marcamos sessões de treinamento pelo Skype, para ensinar coisas básicas, como filmar, como captar áudio, como comprimir arquivos".

"Por razões de segurança, eles fez dois tipos de trabalho. Um foi fazer contatos com outras pessoas que passaram pelo campo. Conseguimos entrevistar um guarda, que tinha torturado ele, por exemplo. E o outro, foi gravar depoimentos sobre seu dia a dia, sobre a difícil realidade de um ativista de direitos humanos na China".

Sun Yi vivia uma realidade cheia de perigos. Ele dedicava boa parte de sua vida a divulgar o modo de vida da Falun Gong, um grupo que prega exercícios de meditação e tem raízes em ensinamentos do budismo sobre compaixão e tolerância.

Ela é proibida na China desde 1999, vista como um "culto diabólico" e ameaça ao Partido Comunista.

Seus seguidores passaram a ser perseguidos e enviados aos notórios campos de reeducação. Além deles, críticos do regime, seguidores de crenças religiosas e pessoas acusadas de crimes menores eram enviados sem julgamento a esses campos para cumprirem penas de até 3 anos.

'Inferno na Terra'

Leon conta que Sun Yi era engenheiro, e que tinha um bom emprego e uma família, até 1999, quando sua vida "foi virada de cabeça para baixo".

"Perdeu o emprego, foi detido mais de uma dezena de vezes por imprimir e distribuir panfletos sobre a Falun Gong. Em 2008, antes dos Jogos Olímpicos, houve uma intensificação da repressão à Falun Gong, por supostas razões de segurança, e Sun Yi foi detido e condenado a dois anos e meio de prisão no campo de Massanjia."

Sun Yi descreveu sua experiência no campo como o 'inferno na terra'. Ele e outros membros da Falun Gong eram torturados até renunciarem à sua crença.

Ele diz ter sido colocado em uma cama, amarrado pelas pernas e braços, com o corpo esticado até o limite. Que a dor fez ele desmaiar várias vezes. Ele diz ter resistido, e jurou contar ao mundo sobre as condições as quais ele e seus companheiros estavam sendo sujeitos.

Sun Yi escreveu várias cartas, e pouco depois apareceu uma oportunidade de enviá-las para fora do campo, como conta Leon Lee:

"Um dia, Sun Yi estava na cafeteria do campo, o notou, pela janela, um grupo de prisioneiros passando do lado de fora levando ossos, caveiras, lápides... Ele ficou chocado, achou que eles estavam levando partes de cadáveres. E um prisioneiro mais antigo contou a ele que esses prisioneiros estavam voltando do 'turno fantasma'"

"Dias depois, o nome dele estava numa lista de prisioneiros que foram levados para o quarto andar de um edifício, onde havia um grande depósito com pessoas fazendo lápides. Foi aí que Sun Yi percebeu que eram lápides feitas de isopor. Ele não fazia ideia de quem poderia usar esse tipo de produto assustador. Na cultura chinesa não era comum brincar com lápides. Mas um guarda lhe contou que eram produtos para um festival popular em culturas ocidentais."

Sun Yi diz ter escrito e escondido 20 cartas em caixas com lápides de Halloween. Ele já tinha cumprido sua pena e estava em sua casa, quando soube que uma carta sua tinha sido encontrada por uma mulher nos Estados Unidos.

Julie Keith, por sua vez, foi avisada pelo New York Times em 2013 que o autor da carta estava vivo. E não só isso. Recebeu uma nota enviada por ele, em que dizia "apenas que estava feliz e agradecido por eu ter divulgado a carta, que era exatamente o que ele queria". "Fiquei superfeliz por ele estar vivo e por ter estar orgulhoso do que fiz."

'A primeira peça a cair'

Poucos anos mais tarde, Sun Yi estava colhendo material para o documentário de Leon Lee. Foram meses de trocas de mensagens encriptadas, envios de HDs externos para fora da China por terceiros e muita tensão.

O pior momento foi quando Leon recebeu a notícia de que Sun Yi tinha sido preso novamente. Pouco depois, ele foi libertado por razões de saúde, e queria retomar as filmagens. Mas para o diretor, não dava mais para correr riscos.

"Disse a ele para largar tudo e sair da China imediatamente. Eu sabia que havia uma boa chance de eles não terem colocado o nome dele na lista dos que não poderiam deixar o país. Ele teve de deixar a esposa pra trás, fazer uma pequena mala e sair da China, sabendo que provavelmente jamais poderia voltar."

Sun Yi fugiu para a Indonésia, onde pediu asilo. Nessa condição, ele não podia trabalhar. Também não falava a língua local, a cultura era diferente e ele estava completamente só.

Mesmo assim, ele diz nunca ter tido dúvida alguma de que seu sacrifício valera a pena. A enorme repercussão gerada no mundo e na China por sua carta foi uma das razões que levaram o Congresso Nacional do Povo, em dezembro de 2013, a abolir pelo menos oficialmente o sistema de reeducação em campos de trabalho, em vigor havia 56 anos. Mais de 300 campos foram fechados e mais de 160 mil prisioneiros foram libertados.

Para Leon Lee, a carta de Sun Yi esteve no começo de tudo isso: "Foi a primeira peça de dominó a cair. Teve toda a repercussão internacional. E uma revista chinesa publicou uma longa reportagem sobre esses campos que chocou o público chinês. A revista foi censurada, mas sem antes causar uma grande onda de indignação no país, com várias pessoas exigindo o fechamento dos campos. Já havia dentro do regime pessoas a favor do desmantelamento desse sistema. Todos esses fatores se juntaram, e o sistema finalmente deixou de existir."

Julie Keith, a mulher que foi peça chave na trajetória da carta, foi convidada a se encontrar com Sun Yi na Indonésia.

"Foi uma experiência incrível esse encontro. Devolvi a ele a carta e uma das lápides de Halloween. Eu estava nervosa, não sabia se isso despertaria lembranças ruins nele. Mas ele pareceu agradecido, por termos completado esse ciclo. Foi como um sonho que se tornou realidade. Jamais imaginaria que uma coisa dessas pudesse acontecer. E tivemos essa conexão instantânea."

"Ele me chamou de irmã. Foi como se nos conhecêssemos a vida toda".

Pouco depois desse encontro, Leon Lee estava editando o seu documentário quando recebeu a notícia de que Sun Yi tinha sido hospitalizado e estava em estado grave, com problemas nos rins.

"Tentei fazer contato, mas Sun Yi aparentemente não se lembrava mais de mim. Alguns dias depois, ele morreu. A causa oficial da morte foi falência aguda dos rins. Ele nunca tinha tido problema nos rins. E quando estivemos com ele na Indonésia ele parecia completamente saudável. Foi terrível."

"Fiquei arrasada", afirma Julie Keith. "Queria tanto um final feliz para a história dele. Ele queria vir para o Canadá ou Estados Unidos, e trazer sua esposa. Me senti muito mal por não ter sido capaz de ajudar mais".

O documentário de Leon Lee, Letter from Massanjia ('Carta de Massanjia') foi lançado em 2018. Os campos de trabalho na China foram fechados no final de 2013, mas organizações de direitos humanos acusam a China de ter feito mudanças cosméticas em alguns deles, e de manter campos em que perseguidos políticos ou religiosos, como os chineses uighures muçulmanos no Estado de Xinjiang, são "reeducados".

Como ouvir o podcast

A segunda temporada de Que História!, produzida e apresentada por Thomas Pappon, terá dez episódios, que serão disponibilizados semanalmente nas principais plataformas de podcast, como Apple e Spotify.

Além dessas há várias plataformas e apps que oferecem assinaturas do podcast ? o que permite que cada novo episódio seja baixado automaticamente em seu dispositivo ou computador assim que for disponibilizado (toda sexta-feira, às 06h00 em Brasília).

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