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'Meu filho poderia ter sobrevivido se tivesse sido testado': a tragédia das crianças mortas por covid no Brasil

Nathalia Passarinho e Luis Barrucho - Da BBC Brasil em Londres

16/04/2021 17h24

Dados compartilhados com a BBC News Brasil mostram que pelo menos 2 mil crianças de até nove anos morreram em decorrência das complicações do novo coronavírus no país; baixa testagem, falta de diagnóstico adequado e más condições socioeconômicas são apontadas como grandes culpadas.

A pandemia de covid-19 vitimou também os pequenos no Brasil: mais de 2 mil crianças com menos de nove anos já morreram devido ao novo coronavírus, das quais 1,3 mil bebês. Isso significa cinco crianças morrendo todos os dias de covid no país.

A mortalidade infantil pelo vírus é maior no Brasil que em qualquer lugar do mundo onde os dados estão disponíveis. Essas mortes são resultado de uma combinação de baixa testagem, falta de diagnóstico adequado e más condições socioeconômicas, dizem especialistas e médicos ouvidos pela BBC.

O filho da professora cearense Jessika Ricarte, Lucas, de um ano, foi uma das vítimas do coronavírus.

Um médico se recusou a testá-lo para covid-19, dizendo que seus sintomas não se encaixavam no perfil dos doentes. Dois meses depois, ele morreu de complicações da doença.

Lucas foi uma criança muito esperada. Chegou após dois anos de tentativas e tratamentos de fertilidade malsucedidos. Jessika e seu marido, Israel, quase desistiram de ter uma família. Até que ela engravidou.

"O nome Lucas quer dizer 'iluminado'. E ele foi uma luz em nossa vida. Lucas mostrou que a felicidade era muito maior do que imaginávamos", diz a mãe à BBC News Brasil.

Jessika primeiro suspeitou que algo estava errado quando Lucas, que nunca teve problemas para se alimentar, perdeu o apetite.

A princípio, pensou que seu filho estivesse tendo problemas de dentição. A madrinha de Lucas, uma enfermeira, sugeriu que o menino poderia estar com a garganta inflamada.

Mas depois que Lucas desenvolveu febre, fadiga e dificuldade para respirar, Jessika o levou ao hospital da cidade onde mora, Tamboril, no Ceará, e pediu que seu filho fosse submetido a um teste de covid-19.

"O médico colocou um oxímetro nele. Os níveis de oxigenação de Lucas estavam em 86%. Agora sei que isso não é normal", diz Jessika.

Mas Lucas não estava com febre, e o médico disse: "Mãezinha, não se preocupe. Não há necessidade de fazer o teste de covid. Provavelmente é apenas uma pequena dor de garganta."

Ele explicou a Jessika que a covid-19 era rara em crianças, deu antibióticos ao menino e mandou mãe e filho de volta para casa. Jessika suspeitou do diagnóstico, mas não havia outra opção para testar Lucas na época.

Jessika diz que alguns dos sintomas desapareceram após 10 de tratamento com antibióticos, mas o cansaço permaneceu - assim como suas preocupações com o coronavírus.

"Mandei vários vídeos para a madrinha dele, meus pais, minha sogra, e todos falaram que eu estava exagerando, que deveria parar de assistir ao noticiário, que estava me deixando paranóica. Mas eu sabia que meu filho estava diferente, que ele não estava respirando normalmente", lembra.

Era maio de 2020 e a epidemia de coronavírus se alastrava pelo Brasil. Duas pessoas já haviam morrido em sua cidade, Tamboril, no Ceará. "Todo mundo se conhece aqui. A cidade estava em choque", contou.

O marido de Jessika, Israel, temia que outra visita ao hospital aumentasse o risco de ela e Lucas serem infectados com o vírus.

Mas as semanas se passaram e Lucas foi ficando cada vez mais sonolento. Em 3 de junho, Lucas vomitou várias vezes depois de almoçar, e Jessika sabia que precisava agir.

Eles voltaram para o hospital local, onde o médico testou Lucas para covid, para descartar a possibilidade da doença.

A madrinha de Lucas, que trabalhava lá, deu ao casal a notícia de que o resultado do exame foi positivo.

"Na época, o hospital não tinha nem ressuscitador", conta Jessika.

Lucas foi transferido para uma unidade de terapia intensiva pediátrica em Sobral, a mais de duas horas de distância, onde foi diagnosticadq uma doença chamada Síndrome Inflamatória Multissistêmica, também identificada pela sigla SIM.

A SIM é uma resposta imunológica extrema ao vírus, que pode causar inflamação de órgãos vitais, como cérebro, causando encefalite, coração e rins.

Especialistas dizem que a síndrome, que afeta crianças em até seis semanas após a infecção pelo coronavírus, é rara, mas Fátima Marinho, médica epidemiologista e especialista sênior da consultoria Vital Strategies, afirma que, durante a pandemia, os casos de SIM aumentaram, embora não sejam responsáveis por todas as mortes de crianças.

Os sintomas incluem febre persistente, pressão sanguínea baixa, dores abdominais, alterações gastrointestinais, conjuntivite e erupções na pele.

Quando Lucas foi intubado, Jessika não teve permissão para ficar no mesmo quarto. Ela ligou para a cunhada para tentar se distrair.

"Ainda podíamos ouvir o barulho da máquina, o apito, até que a máquina parou e emitiu aquele apito constante. E sabemos que isso acontece quando a pessoa morre. Depois de alguns minutos, a máquina voltou a funcionar e eu comecei a chorar. "

Os médicos disseram a ela que Lucas havia sofrido uma parada cardíaca, mas eles conseguiram reanimá-lo.

A médica pediatra Manuela Monte, que cuidou de Lucas por mais de um mês na UTI de Sobral, disse que ficou surpresa com a gravidade do estado do menino, pois ele não apresentava fatores de risco.

A maioria das crianças afetadas pela covid-19 tem comorbidades - doenças como diabetes ou doenças cardiovasculares - ou está acima do peso, de acordo com Lohanna Tavares, infectologista pediátrica do Hospital Infantil Albert Sabin em Fortaleza.

Mas esse não foi o caso de Lucas.

Durante os 33 dias em que Lucas ficou na UTI, Jessika só teve permissão para vê-lo três vezes. Lucas precisava de imunoglobulina - um medicamento muito caro - para desinflamar seu coração, mas felizmente um paciente adulto que havia comprado a sua própria doou uma ampola restante para o hospital. Lucas estava tão doente que recebeu uma segunda dose de imunoglobulina. Ele desenvolveu uma erupção cutânea e estava com febre persistente. O menino precisava de ajuda para respirar.

Lucas começou a melhorar e os médicos decidiram tirar seu tubo de oxigênio. Eles ligaram para Jessika e Israel para que ele não se sentisse sozinho ao recuperar a consciência.

"Quando ele ouviu nossas vozes, começou a chorar", diz Jessika.

Foi a última vez que o casal viu o filho. Durante a videochamada seguinte, "ele tinha uma aparência paralisada". O hospital solicitou uma tomografia computadorizada e descobriu que Lucas havia sofrido um derrame.

Mesmo assim, Jessika e Israel foram informados que Lucas se recuperaria e logo seria transferido da UTI para uma enfermaria geral.

'É importante que médicos façam teste'

Quando Jessika e Israel foram visitá-lo, o médico estava tão esperançoso quanto o casal, conta ela.

"Naquela noite, coloquei meu celular no modo silencioso. Sonhei que Lucas veio até mim e beijou meu nariz. E o sonho foi um grande sentimento de amor, gratidão e acordei muito feliz. Aí acordei e vi as 10 ligações que o médico fez."

O médico disse a Jessika que a frequência cardíaca e os níveis de oxigênio de Lucas caíram repentinamente, e ele havia morrido pela manhã.

Jessika tem certeza de que, se Lucas tivesse feito um teste para diagnosticar a covid-19 quando ela o solicitou, no início de maio, seu filho teria sobrevivido.

"É importante que os médicos, mesmo que acreditem que não seja covid, façam o exame para eliminar essa possibilidade", argumenta.

"Um bebê não diz o que está sentindo, então dependemos de testes."

Jessika acredita que a demora no tratamento adequado agravou seu quadro. "Lucas tinha várias inflamações, 70% do pulmão estava comprometido, o coração estava 40% maior. Era uma situação que poderia ter sido evitada".

A pediatra Manuela Monte, que tratou de Lucas na UTI, concorda. Ela diz que embora a SIM não possa ser evitada, o tratamento tem muito mais sucesso se a doença for diagnosticada e tratada precocemente.

"Quanto mais cedo ele tivesse recebido cuidados especializados, melhor", diz a médica. "Ele chegou ao hospital já gravemente doente. Acredito que o resultado poderia ter sido diferente se pudéssemos tê-lo tratado mais cedo."

Jessika agora quer compartilhar a história de Lucas para ajudar outras pessoas que podem não perceber os sintomas críticos da doença em crianças.

"Todas as crianças que eu conheço foram salvas por algum aviso e a mãe diz: 'Eu vi seus posts, levei meu filho para o hospital e ele está em casa agora.' É como se fosse um pouquinho do Lucas", diz Jessika.

"Tenho feito por essas pessoas o que gostaria que tivessem feito por mim. Se eu tivesse informações, teria sido ainda mais cautelosa."

Mais mortes de crianças no Brasil do que em outros países

Para Marinho, da Vital Strategies, há um equívoco de que as crianças são "imunes" à covid. Ela coordenou um estudo que mostrou um número assustadoramente alto de crianças e bebês afetados pelo vírus.

Entre fevereiro de 2020 e 15 de março de 2021, a covid-19 matou pelo menos 852 crianças brasileiras de até nove anos, incluindo 518 bebês menores de um ano, segundo dados do Ministério da Saúde. Mas Marinho diz que esse número é, na verdade, muito maior - foram pelo menos 2 mil. A culpa das subnotificações recai na falta de testes da covid, assinala a médica.

Ela calculou o excesso de mortes por síndrome respiratória aguda não especificada durante a pandemia e descobriu que havia 10 vezes mais mortes por síndrome respiratória não-especificada do que nos anos anteriores. Ao somar esses números, ela estima que o vírus de fato tenha matado 2.060 crianças menores de nove anos, incluindo 1.302 bebês.

Mais crianças estão morrendo com diagnóstico de covid no Brasil do que em outros países onde esses dados estão disponíveis. O número de bebês com menos de 1 ano que morreram desde o início da pandemia, por exemplo, é 17 vezes maior que nos Estados Unidos, que é um país com mais crianças e mais mortes por covid em geral.

No Reino Unido, apenas dois bebês dessa idade morreram.

Por que isso está acontecendo?

Especialistas dizem que o grande número de casos de covid no Brasil - o terceiro maior número do mundo - aumentou a probabilidade de bebês e crianças pequenas no Brasil serem afetadas.

"Claro que quanto mais casos tivermos e, por consequência, mais hospitalizações, maior é o número de mortos em todas as faixas etárias, incluindo crianças. Mas se a pandemia estivesse controlada, esse cenário poderia evidentemente ser minimizado", diz à BBC News Brasil Renato Kfouri, presidente do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria.

Essa alta taxa de infecção sobrecarregou todo o sistema de saúde brasileiro. Por todo o país, o suprimento de oxigênio está diminuindo, há uma escassez de medicamentos básicos e em muitas UTIs por todo o país simplesmente não há mais leitos.

O presidente Jair Bolsonaro continua a se opor ao lockdown e a taxa de infecção está sendo impulsionada pela variante P.1 que surgiu em Manaus, no Amazonas, no ano passado, e é considerada muito mais contagiosa. Duas vezes mais pessoas morreram no mês passado do que em qualquer outro mês da pandemia, e a tendência de aumento continua.

Outro problema que impulsiona as altas taxas em crianças é a falta de testes.

Marinho diz que para as crianças muitas vezes o diagnóstico de covid chega tarde, quando já estão gravemente doentes. "Temos um problema sério na detecção de casos. Não temos exames suficientes para a população em geral, menos ainda para as crianças. Como há um atraso no diagnóstico, há um atraso no atendimento à criança", afirma.

Isso não ocorre apenas porque há pouca capacidade de testagem, mas também porque é mais fácil não perceber, ou diagnosticar erroneamente, os sintomas de crianças que sofrem de covid-19, já que a doença tende a se apresentar de forma diferente em pessoas mais jovens.

"Uma criança com covid tem muito mais diarreia, muito mais dor abdominal e dor no peito do que o quadro clássico nos adultos. Como há um atraso no diagnóstico, quando a criança chega ao hospital, já está em estado grave e pode acabar tendo complicações - e morrendo", diz ela.

Mas as mortes de crianças também estão ligadas à pobreza e ao acesso à saúde.

Um estudo observacional de 5.857 pacientes com covid-19 com menos de 20 anos, realizado por pediatras brasileiros liderados por Braian Sousa, ligado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), e com supervisão de Alexandre Ferraro, identificou comorbidades e vulnerabilidades socioeconômicas como fatores de risco para as mortes de crianças pela doença.

Marinho concorda que esse seja um fator importante. "Os mais vulneráveis são as crianças negras e as de famílias muito pobres, porque têm mais dificuldade em obter ajuda. Essas são as crianças com maior risco de morte".

Em sua visão, isso ocorre porque as condições de moradia superlotadas impossibilitam o distanciamento social quando infectados e porque as comunidades mais pobres não têm acesso a uma UTI local.

Essas crianças também correm o risco de desnutrição, o que é "péssimo para a resposta imunológica", diz a médica. Quando o auxílio emergencial terminou, milhões voltaram para a pobreza. "Passamos de 7 milhões para 21 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza em um ano. Portanto, as pessoas também estão passando fome. Tudo isso está afetando a mortalidade".

Sousa diz que seu estudo identifica certos grupos de risco entre as crianças que devem ser priorizados para vacinação. Atualmente, não há vacinas disponíveis para crianças menores de 16 anos.

As visitas de familiares às crianças em UTI foram restritas desde o início da pandemia, por medo de infecção.

Cinara Carneiro, pediatra da UTI do Hospital Infantil Albert Sabin, diz que isso tem sido um grande desafio, não apenas porque os pais são um conforto para seus filhos, mas porque também podem ajudar no sentido clínico - eles podem dizer quando seu filho está internado com dor ou sob sofrimento psicológico e quando precisam de calmantes em vez de medicamentos.

Ela acrescenta que essa ausência acaba se tornando uma experiência traumática para os próprios pais quando recebem a notícia que a condição do filho piorou e eles não estiveram lá para testemunhar.

"Dói ver uma criança morrer sem ver os pais", diz a pediatra.

Na tentativa de melhorar a comunicação entre pais e filhos, a equipe do hospital Albert Sabin se reuniu para comprar telefones e tablets para facilitar as chamadas de vídeo.

Carneiro diz que isso ajudou imensamente. "Fizemos mais de 100 videochamadas entre familiares e pacientes. Esse contato reduziu muito o estresse."

Cientistas enfatizam que o risco de morte nessa faixa etária ainda é "muito baixo" - os números atuais indicam que 0,58% das mais de 360 mil mortes de covid no Brasil até agora foram de 0-9 anos - mas isso significa mais de 2 mil crianças.

"Os números são realmente assustadores", diz Carneiro.

Quando procurar ajuda

A covid-19 em crianças costuma se manifestar de maneira diferente que em adultos. Segundo a epidemiologista Fatima Marinho, é mais frequente, por exemplo, ver diarreia e dor no tórax em crianças com o vírus.

A Fiocruz diz que os pais devem ficar atentos aos seguintes sintomas: febre, respiração rápida, dor de cabeça, diarreia, náusea, vômito, dor abdominal e toráxica, perda do olfato ou paladar.

Algumas crianças podem desenvolver a Síndrome Inflamatória Multissistêmica cerca de um mês após contato com o coronavírus. Neste caso, os sintomas incluem: manchas e erupções na pele, cansaço excessivo, batimentos cardíacos acelerados, conjuntivite ou olhos avermelhados, lábios, lingua mãos ou pés inchados, pressão baixa, dor de cabeça e tontura, além de febre persistente, vômito, diarreira e dor no estômago.

O Royal College of Paediatrics and Child Health, a associação de médicos pediatras do Reino Unido, aconselha os pais a procurarem ajuda urgente, inclusive chamando ambulância, se a criança:

- Apresentar aparência pálida, manchas e estiver fria ao toque

- Tiver pausas na respiração (apnéias), um padrão respiratório irregular ou começar a grunhir

- Tiver dificuldade para respirar, ficando agitada ou sem responder aos estímulos

- Apresentar coloração azulada na boca

- Tiver espamos ou convulsões

- Ficar extremamente angustiada (chora sem parar apesar de tentativas de distração), confusa, muito letárgica (com dificuldade de acordar) ou sem resposta

- Desenvolver uma erupção cutânea que não desaparece com a pressão (o 'teste do copo')

- Tiver dor nos testículos, especialmente em meninos adolescentes


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