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A prostituta colombiana que venceu na Justiça um dos maiores bordéis da Espanha

Leire Ventas - BBC News Mundo

18/05/2021 20h56

Ela é de Barranquilla, está na Espanha há mais de 20 anos e uma sentença sem precedentes a tornou a primeira profissional do sexo a ser reconhecida em uma relação de trabalho com uma boate.

Quando a colombiana Evelin Rochel se mudou para o quarto 113 do Sala Flower's, em fevereiro de 2017, ela não suspeitava que estava prestes a embarcar em uma feroz batalha legal contra um dos maiores bordéis da Espanha.

Uma luta que ela venceu depois de quatro anos e muitas idas aos tribunais.

O triunfo final foi dado a ela por uma decisão recente e sem precedentes da Suprema Corte, que a tornou a primeira trabalhadora sexual na Espanha a ser reconhecida em uma relação de trabalho com o bordel onde trabalhava. Algo que o proprietário continua negando.

"É uma vitória agridoce", disse Rochel, de 45 anos, à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, "já que ela não inclui nenhuma punição para o empresário".

"Ele não será condenado a nada, mesmo que seja comprovado que tem escravos em suas instalações", afirma.

Foi o que ela alegou na ação cível original, que ajuizou quando foi demitida, "sem acordo, sem indenização, sem ter pago impostos e sem os direitos garantidos aos desempregados", pouco antes de deixar o quarto.

"No máximo, eles vão dizer a ele que ele é um menino muito mau."

"Claro, a sentença abre a porta para continuarmos reivindicando direitos trabalhistas para o setor", admite.

Enquanto isso, Antonio Herrero, dono do Sala Flower's, que ele chama de boate erótica com hotel anexo, diz que a decisão do mais alto tribunal do país é "incorreta", descrevendo-a como "ultrajante". E garante que Rochel nunca foi empregada dele.

"Ela era hóspede do hotel e cliente da boate", disse à BBC.

De Barranquilla para a Espanha

Nascida em Barranquilla, cidade localizada na margem ocidental do rio Magdalena, a pouco mais de 7 km de sua foz no Caribe, Rochel chegou ao País Basco aos 22 anos, há duas décadas.

"Cheguei como qualquer outro migrante econômico, para buscar o que não encontramos em nossos países: a possibilidade de progredir com um trabalho, seja na área da limpeza ou como taxista, e realizar um projeto familiar".

Depois de trabalhar alguns anos como faxineira e camareira, devido a uma série de circunstâncias, acabou se dedicando à prostituição. Uma atividade que não é regulamentada por nenhuma lei específica na Espanha, mas não é ilegal.

Porém, enquanto o exercício da profissão não é proibido no Código Penal, a exploração e o proxenetismo são. Ou seja, lucrar com "o exercício da prostituição alheia".

Rochel começou em Empuriabrava (Girona, Catalunha). "Lá trabalhei em um clube onde todas tinham que entregar para chefes 40% do que cobravam."

Em seguida, ela passou pela mítica Riviera de Castelldefels, que foi o maior bordel da Catalunha até ser fechado em 2009 devido a um caso de corrupção policial, e por outro local em Barcelona. Até que em 2002 ela foi parar no Sala Flower's, onde trabalharia nos 15 anos seguintes.

É um complexo localizado no município madrilenho de Las Rozas, composto pelo clube, onde ela conta que captava os clientes, e um aparthotel anexo, onde tinha relações sexuais com eles.

Foi aí que as coisas começaram a se complicar.

'Pequena rebelião'

Era novembro de 2016 e a Espanha mal tinha se recuperado de anos de crise econômica que atingiu a maioria dos setores, inclusive os informais.

Para fazer frente à situação, os empresários do Sala Flower's "decidiram endurecer as nossas condições de trabalho", lembra Rochel.

Ela conta que passaram a exigir a presença no local por 12 horas ininterruptas, das 5 da tarde às 5 da manhã.

"Além disso, nós mesmas tínhamos de limpar o quarto depois de estarmos com o cliente e eles nos davam a responsabilidade de cobrar mais 5 euros (R$ 32) a cada meia hora de uso do quarto. Se a gente esquecer de cobrar, temos que pagar do nosso bolso".

A isso se somava ao que Rochel e as colegas dela pagavam pelo uso do quarto em que ofereciam seus serviços sexuais ("pelo direito ao trabalho"): 90 euros (cerca de R$ 570) por dia.

Essas e outras despesas que elas já eram obrigadas ter: "Se você quisesse lençóis limpos, tinha que pagar. O mesmo com as toalhas. E, para ter luz no quarto, tinha que comprar uma espécie de ticket".

Mas "ainda, eles nos diziam que se quiséssemos descansar, se um dia ficássemos doentes ou nossa menstruação descesse e não pudéssemos trabalhar, tínhamos que pagar 120 euros (cerca de R$ 770), o que para mim era uma multa."

"Isso, sem contar que tínhamos que pedir permissão até para ir ao banheiro", afirma.

Insatisfeita, a nova situação a levou a começar "uma pequena rebelião". Ela reuniu as 50 companheiras e liderou um protesto.

Diante da ameaça de greve, o patrão concordou em se encontrar com elas e, após uma negociação, decidiu que as novas regras não seriam aplicáveis ??às antigas trabalhadoras.

"Mas eu já havia me tornado uma pessoa incômoda e estava no centro das atenções", diz a colombiana. "E uma discussão com um cliente foi a desculpa perfeita para que eu fosse demitida."

Aconteceu em meados de fevereiro de 2017.

"Foi bastante cruel e humilhante", lembra ela. Ela afirma que o dono a chamou no escritório, onde ele reuniu seis pessoas. Uma pessoa de cada departamento: uma profissional do sexo, uma funcionária de limpeza, um encarregado da segurança.

"E ali mesmo ele me disse que eu tinha duas horas, até as 6 da tarde, para sair do prédio. Disse na frente de todo aquele público, para que fosse algo exemplar. Para que contassem às outras o que poderia acontecer com elas se agissem como eu".

O dono do Sala Flower's, Antonio Herrero, contesta a versão. Disse à BBC Mundo que o protesto liderado por Rochel ocorreu por causa do aumento do preço do quarto do hotel, de onde podiam entrar e sair quando quisessem. "As meninas são totalmente livres", disse. E afirma que a colombiana foi despejada "por mau comportamento".

Hóspede do 113

Mas como desocupar o quarto em que morou nos últimos 15 anos em duas horas?

"Como era sexta-feira, pedi que me dessem o fim de semana, que aproveitei para registrar uma denúncia", explica Rochel. "Não sabia aonde isso me levaria, porque não tenho conhecimento de direito,. Mas sabia que me ajudaria a ganhar um pouco de tempo."

Com a proteção e assessoria do Coletivo Hetaira, associação que luta para que a prostituição seja considerada uma atividade econômica, ela ajuizou uma ação civil contra o Grupo Empresarial La Florida S.L. ? ao que pertence o Sala Flower's ? "por danos morais".

E, de volta ao quarto, ela anunciou que não pretendia sair.

Naquele espaço de pouco mais de 15 metros quadrados, com banheiro compartilhado com outra colega e uma pequena varanda com vista para uma rodovia, passou uma semana, até que ela teve que sair escoltada pela Guarda Civil.

A demissão, portanto, também teve o caráter de despejo, algo comum a muitas prostitutas na Espanha, segundo o Coletivo Hetaira. Já que, sem contrato de trabalho, não podem alugar nada e acabam morando em seu quarto de trabalho.

Exercício ilegal

É a falta de regulamentação do setor que torna possíveis situações como essa, explica o advogado trabalhista Juan Jiménez-Piernas, que representa o caso de Rochel, à BBC.

Os clubes não podem contratar prostitutas.

Eles asseguram que as trabalhadoras de suas instalações são "secretárias". Ou seja, elas fazem companhia aos homens para que eles consumam bebidas durante sua estada.

Mas após anos pagando multas depois que as inspeções do trabalho constataram que as mulheres trabalhavam em instalações de secretárias sem terem sido registradas na seguridade social (sistema de saúde público), em 2007 muitos dos empresários mudaram de estratégia, explica Jiménez-Piernas.

Deixaram de pagar as comissões pelas bebidas que os clientes consumiam no bar e passaram a cobrar o aluguel do quarto em que realizavam os serviços sexuais (alugar um quarto não é considerado ser cafetão na Espanha).

Assim, sem comissões, não havia remuneração e não havia vínculo empregatício ou mesmo as correspondentes obrigações por parte do empregador.

E, de acordo com o Estatuto do Trabalhador, para que haja uma relação de trabalho, três pressupostos devem ser atendidos: que haja uma atividade, que ela seja exercida sob certas diretrizes (horários, normas etc.) e que haja remuneração.

"Eliminaram um dos elementos característicos da relação de trabalho, mas garantindo que as meninas continuassem descendo para onde atraem clientes", esclarece o advogado Jiménez-Piernas.

Nesse contexto, o caso de Rochel é um marco.

Após várias derrotas nos tribunais aos quais ela recorreu, em fevereiro de 2019 o Superior Tribunal de Justiça de Madrid (TSJM) concluiu que havia uma relação de trabalho entre Rochel e o Sala Flower's.

O tribunal evitou vinculá-la ao estabelecimento pelos "serviços sexuais" que ela prestava no apart-hotel anexo ao clube. A prostituição não é regulamentada, mas o tribunal decidiu que seu papel paralelo de recepcionista na boate era "essencial" para os negócios.

"É uma sentença revolucionária porque diz que, embora a remuneração não seja dada como uma característica da relação de trabalho, não se pode deixar de considerar que se trata de um trabalho porque atende a todas as outras características. E que o contrário seria proteger escravidão no trabalho ", explica Jiménez-Piernas.

"Considerar que se tratava de um trabalho sem direito a indenização seria o mesmo que admitir a escravidão", diz a resolução do TSJM, à qual a BBC Mundo teve acesso.

O Grupo Empresarial la Florida S.L. recorreu da decisão, mas no dia 9 de março, a Suprema Corte, a mais alta do país, rejeitou os recursos interpostos contra a decisão do TSJM e concordou com Rochel.

"As circunstâncias conduzem à conclusão de que ela estava integrada na organização da empresa", resume o Supremo Tribunal Federal em acórdão consultado pela BBC Mundo.

O dono da Sala da Flower's segue negando o vínculo e enfatiza que em seu lugar "não há alternativa". "Vendemos bebidas. Elas são clientes da discoteca."

Enquanto isso, o advogado de Rochel considera que a sentença, embora inédita, não é "redonda", já que não contempla a indenização que solicitaram por danos morais decorrentes da violação da dignidade - "porque a escravidão viola a dignidade".

Por isso, ele garante que a luta na Justiça continua.

"Comprovada a relação de trabalho, vamos pedir ao Flower's que pague a previdência por todos esses anos." Apresentaram uma queixa na Inspecção do Trabalho, pedindo que "a contribuição seja calculada de acordo com o que teria sido cobrado pelo acordo coletivo do setor de Hotelaria da Comunidade de Madrid", adianta.

"E vamos tentar enquadrar todas as secretárias da Espanha no acordo coletivo, com todos os seus direitos associados em termos de jornada de trabalho, salário, prevenção de riscos ocupacionais, medidas contra o assédio...", continua.

Rochel, cuja situação continua precária - "depois de denunciar toda essa história, agora é muito mais complicado para me deem um espaço para trabalhar, com medo de que eu faça o mesmo" - está disposta a continuar "na batalha".

E fazer isso de dentro.

"Sou bastante teimosa e a minha ideia é continuar no trabalho sexual, porque tem de haver alguém que tenha voz e que não tenha medo desse estigma para mostrar a cara, e que possa exigir direitos trabalhistas para a categoria".

É uma luta contra o sistema, não contra os seus centros de trabalho, esclarece, "porque o que os empresários têm feito é o que o sistema lhes permite por meio de leis e decisões judiciais".

"Milhões de euros foram gerados pelo meu trabalho de 15 anos e o das minhas colegas, dinheiro que fica em parte para o Estado e parte da empresa, sem que tenha havido para nós qualquer retribuição pelo trabalho, risco ou proteção social de qualquer parte".

E as consequências disso ficaram evidentes mais do que nunca nesta crise de sanitária: "Todo o setor estava sangrando. Foi realmente cruel."


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