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O assassinato nunca solucionado da feminista que liderou luta pelo divórcio no Brasil

Daniel Salomão Roque - De São Paulo para a BBC News Brasil

19/06/2021 14h02

Anita Carrijo foi amarrada e asfixiada no próprio apartamento no Dia das Mães de 1957. Seis décadas depois, as netas refletem sobre sua trajetória e os impactos do crime.

Pela primeira vez, Irma Sargentelli chegaria mais tarde. A auxiliar de serviços gerais, recém-admitida no emprego, caminhava com pressa em direção a um edifício no distrito da República, região central da capital paulista.

Às 9h30, subiu até o primeiro andar e manejou a chave do apartamento número 1, que servia como residência e consultório de sua patroa. Um letreiro anunciava a quem viesse pelo corredor: "Anita Carrijo - Cirurgiã-dentista".

Irma abriu a porta, temendo uma advertência pelo atraso. O cenário não era o mesmo de todas as segundas-feiras.

No chão da sala, encontravam-se duas bolsas remexidas. Por cima da mesa, muitas folhas de papel. A patroa não dava as caras, e seu quarto permanecia trancado.

Irma espiou pelo buraco da fechadura e avistou um vulto caído. Com ajuda do zelador, arrombou a porta, descortinando um painel mórbido: gavetas abertas, mais papéis, roupas em desalinho por todo o cômodo ? e o corpo de Anita sobre o assoalho.

Descalça, a dentista trajava um tailleur azul-marinho e meias finas, rasgadas na altura das coxas. Estava de bruços, as mãos e os pés atados às costas por uma corda cheia de nós.

Tinha o rosto envolto em um pedaço de pano, o nariz e a boca tapados com esparadrapos e a face esquerda marcada por um ferimento de cinco centímetros, através do qual jorrara o sangue que tingia o chão e os lençóis.

A mão direita, já enrijecida, fechava-se sobre um tufo de cabelo, que arrancara em legítima defesa da cabeça de seu algoz. No apartamento, os assassinos haviam quebrado lâmpadas, destruído instalações elétricas e cortado o fio do telefone.

Às 15h, o corpo foi encaminhado ao Instituto Médico Legal. A causa da morte, segundo o laudo, havia sido "asfixia mecânica". O documento também apontava a presença de álcool no sangue da vítima e de presunto e queijo no trato digestivo ? resquícios de uma última refeição, provavelmente na véspera, 12 de maio de 1957, um domingo de Dia das Mães. Aos 56 anos, Anita deixava uma filha e duas netas.

Fotografias de seu cadáver amordaçado estampariam jornais em todo o país. Por cima das imagens, vinham manchetes como a da capa do tabloide fluminense A Luta Democrática: "Assassinada em seu apartamento a líder feminista e divorcista".

O crime, dos mais comentados na época, nunca foi resolvido.

A última geração

Illène Pevec é carioca e atua como educadora ambiental em Carbondale, cidadezinha montanhosa no Estado do Colorado, nos Estados Unidos. Sua irmã Ruth Lawyer, oito anos mais nova, nasceu em Denver e trabalha como assistente de parto em Nova Iorque.

As duas eram pequenas quando a avó foi assassinada, e são da última geração de familiares a ter mantido algum contato com ela.

"Minha relação com o Brasil é menos próxima do que eu gostaria", admite Ruth em entrevista à BBC News Brasil. "Estou esquecendo quase todo o português."

Illène afirma ter visitado o país há dois anos com sua irmã. E conta à reportagem o que sabe da própria árvore genealógica.

José Carrijo, o pai de Anita, era produtor de café em Santos, no litoral paulista, e primo de Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930), uma das primeiras mulheres do mundo a fazer fortuna na bolsa de valores.

Embora não saiba se a dentista e a investidora algum dia chegaram a se encontrar, Illène guarda fortes impressões do bisavô: "Ele foi uma pessoa muito eloquente, um livre pensador. Prezava a circulação de ideias e nunca gostou da Igreja Católica". A esposa, contudo, ia à missa todos os dias.

Anita Carrijo era a caçula do casal. Tinha cinco irmãos e nascera no dia 31 de outubro de 1900. Na juventude, casou-se com o francês Gaston Cord'homme ? poliglota, filho de diplomata e estudioso da cultura indígena guarani. Em 24 de março de 1922, teve com ele uma filha, Arlette Carrijo.

A menina estava com 3 anos quando os pais se separaram. Para sustentá-la, Anita cursou Odontologia e abriu um consultório em São Paulo. No início da vida adulta, Arlette também se tornaria dentista. Hoje, as filhas a reverenciam pela inteligência e curiosidade.

"Minha mãe foi a mulher mais educada que eu já conheci", orgulha-se Illène. "Ela cresceu falando português, espanhol e francês. Depois aprendeu a língua inglesa e seguiu estudando grego até o fim."

"Ela adorava tudo o que se relacionasse à Grécia", acrescenta Ruth. "O idioma, a comida, a história, o desenvolvimento da democracia."

Arlette morreu em agosto de 2014, quatro anos antes do marido. Nas últimas décadas de vida, com as filhas criadas e uma boa reserva financeira, realizou o sonho de conhecer as ruínas do mundo helênico. Com igual entusiasmo, visitava regularmente o Brasil, país que deixara em 1943.

Em março daquele ano, as garotas que lotavam um baile de Carnaval em Santos disputavam a atenção do único homem sem cabelos ali presente ? John Lawyer, oficial da Marinha norte-americana que investigava uma rede de espionagem nazista no litoral.

Entre todas as moças, John escolheria Arlette, com quem dançou ao som do emblemático refrão: "É dos carecas que elas gostam mais".

Os jovens namorados se casaram em 25 de novembro, data em que os norte-americanos celebravam o Dia de Ação de Graças e Arlette se formava em Odontologia pela Universidade de São Paulo (USP).

Quando a Marinha solicitou a John que regressasse à sua terra natal, a esposa brasileira o acompanhou. Com o fim da Segunda Guerra, ele estudaria Direito em Chicago, tornando-se advogado.

Em 1949, após uma breve estadia no Rio de Janeiro, o casal se reestabeleceu nos Estados Unidos ? agora, em caráter definitivo.

Mundo público

No Brasil, a mãe de Arlette envolvia-se, cada vez mais, com os círculos intelectuais e a militância política.

Em julho de 1948, com uma tese sobre a "modificação das coroas acrílicas paramolares, pré-molares e caninos", tornou-se a primeira mulher do país a apresentar um trabalho científico em um congresso de Odontologia ? a Semana Odontológica de Ribeirão Preto.

Nas reuniões do Centro de Cultura Social, espaço gerido por anarquistas paulistanos, conviveu com o historiador Caio Prado Júnior, o jornalista Edgard Leuenroth, o filósofo Mário Ferreira dos Santos e o sociólogo Maurício Tragtenberg. Duas de suas irmãs, Baby e Odila Carrijo, foram retratadas em telas de Anita Malfatti.

Monteiro Lobato, que desqualificava a obra da pintora modernista como um fruto temerário da "paranoia" e da "mistificação" contemporâneas, escreveu em 1947: "Anita Carrijo pertence ao pequeno e maravilhoso grupo humano dos apóstolos, isto é, dos que acreditam na possibilidade de salvar os homens. Não desejo a Anita o fim usual dos apóstolos ? cruz ou decepção absoluta".

A sentença consta nas páginas do livro A Mulher no Século XX, que a dentista publicou em 1949. Um dos exemplares disponíveis para consulta na Biblioteca Florestan Fernandes, ligada à USP, traz em tinta verde uma dedicatória da autora ao "nobre e humano cientista" Raul Briquet (1887-1953), catedrático da universidade e um dos introdutores da Psicologia Social no Brasil.

As atividades políticas de Anita ganharam fôlego a partir do dia 4 de abril de 1945. Naquela quarta-feira, ela esteve entre as 42 mulheres reunidas na sede da Associação Paulista de Imprensa em defesa da anistia ampla e irrestrita aos presos políticos do Estado Novo.

Duas semanas depois, Getúlio Vargas (1882-1954) assinaria o decreto-lei que viabilizaria a libertação dos últimos seiscentos prisioneiros de seu governo. O presidente caiu em outubro, dando início a um período de relativa tolerância aos movimentos sociais no Brasil.

Associações femininas foram surgindo por todo o país. Uma das mais representativas, a Federação das Mulheres do Estado de São Paulo (FMESP), aglutinava diversas tendências de esquerda sob influência direta do Partido Comunista Brasileiro. A entidade, fundada em 1948, chegaria ao início da década seguinte com cerca de 7,5 mil membros ? incluindo Anita.

"Essas mulheres lutavam por uma inserção na sociedade, contra a ideia de que os papéis femininos se resumiam aos de mãe, esposa e dona de casa", explica Marcela Morente, mestre em História Social pela USP e autora de Invadindo o Mundo Público - Movimentos de Mulheres, 1945-1964 (Humanitas).

"Nem todas as participantes da Federação eram comunistas, mas o comunismo era amplamente reconhecido como uma forma de oposição um pouco mais organizada."

Homens desinteressantes

As pautas desses movimentos abarcavam desde reivindicações tipicamente femininas, como a equidade salarial e a abertura de creches para os filhos das trabalhadoras, até bandeiras políticas da Guerra Fria, como a proibição das armas atômicas, a nacionalização do petróleo e o não envolvimento do Brasil no conflito entre as duas Coreias.

As mulheres participantes, entretanto, ainda não se apresentavam publicamente como feministas. O termo, explica Morente, era utilizado com mais frequência pelos seus críticos, como forma de ridicularizá-las.

"Elas eram vistas como histéricas e desequilibradas", afirma a historiadora. "Mulheres indesejáveis, ociosas, casadas com homens fracos, incapazes de controlar suas esposas. Mulheres que não deveriam ser levadas a sério, que se rebelavam contra a ordem por um mero capricho, uma birrinha."

Anita não esteve livre desse julgamento. O repórter Louis Wiznitzer, em artigo publicado pelo jornal A Manhã no dia 9 de julho de 1952, refere-se a ela como uma "brasileirinha metida a escritora", descrevendo em tons caricatos sua intervenção em um debate que os poetas Allen Tate e Eugenio Montale travavam em Paris.

"Esta senhora parecia estar muito nervosa e frequentemente interrompia os conferencistas batendo palmas, com assobios, protestos ou aplausos que espantavam os vizinhos mais discretos", escreveu o jornalista.

"No fim da conferência, nossa amiga, ruborizada, pediu a palavra e, num francês de comédia, fez umas declarações das quais só posso me envergonhar. Anita, por que você deixou São Paulo?"

Seis anos antes, a dentista tornara-se nacionalmente conhecida. Encabeçava, na época, uma campanha pela liberação do divórcio ? em suas palavras, "uma necessidade social".

Palestrando em diversas instituições culturais, exigia que o caráter indissolúvel do matrimônio, previsto nas leis brasileiras desde 1934, fosse revogado na futura Constituição de 1946.

O desquite, única alternativa então disponível aos casais insatisfeitos, previa apenas a separação de corpos e bens, não permitindo que maridos e esposas contraíssem núpcias com novos parceiros.

Uniões posteriores não tinham qualquer respaldo legal ? mulheres desquitadas viviam sob o estigma do concubinato, e seus filhos eram tidos como ilegítimos. Anita recebia cartas de algumas delas.

"Respondo a todas que me têm escrito que não lhes basta lastimarem-se", discursou às correligionárias no dia 10 de maio daquele ano.

"É preciso darem o seu apoio ao movimento divorcista publicamente, sem receio de ofenderem seus princípios religiosos, já que os mesmos não nos dão, em caso de infelicidade no matrimônio, nenhuma solução moral compatível com a realidade da vida."

Ataliba Nogueira, deputado federal pelo Partido Social Democrático (PSD), acusava a dentista de promover uma campanha impatriótica: "Não precisamos de divórcio no Brasil, mas de famílias bem constituídas e obedientes à moral cristã".

Sobre os opositores, Anita dizia: "São homens desinteressantes, sem argumentos para discutir aquilo que pretendem defender".

A escrivaninha

Nos Estados Unidos, Arlette experimentava uma rotina bem mais pacata que a de sua mãe. Entraves na revalidação do diploma brasileiro fizeram com que ela abandonasse a Odontologia para abraçar novos ofícios ? foi professora de espanhol, voluntária em programas sociais e dona de escolinha infantil. Adorava crianças e raramente falava português.

"Durante o pós-guerra, existia uma gigantesca pressão para que as pessoas parecessem norte-americanas", observa Illène.

A casa da família em Denver, apesar disso, tornou-se um reduto de intercambistas brasileiros. "Quem chegasse na cidade para fazer doutorado sempre acabava por lá. Os estudantes jantavam e faziam amizade com a gente", lembra Ruth.

Anita quase nunca podia estar presente. As vagas memórias que Illène tem dela apoiam-se em fotografias de suas visitas, dificultadas pela agenda e pelo valor proibitivo das passagens de avião.

Em uma dessas imagens, a dentista e a neta parecem alheias à câmera, brincando compenetradas em frente a uma árvore de Natal. Outro clique, de 1952, mostra Illène sorrindo enquanto segura um boneco de Bambi ao lado da mãe e da avó.

"Anita vinha todo fim de ano, e daquela vez acabou esticando até a Páscoa", recorda a educadora. "Tive ciúmes. Minha mãe e minha avó só falavam em português, e eu sentia raiva por não entender nada. Eu ainda era filha única e queria toda a atenção só para mim. Mamãe ficou muito feliz por ela estar lá."

Em circunstâncias comuns, o diálogo se dava pelos correios. "Eu passei a minha vida toda vendo mamãe debruçada na escrivaninha, mandando cartas para a mãe dela, os primos, tios e amigos", diz Illène. "Ela escreveu todos os dias para o Brasil."

Embora fosse uma missivista compulsiva, Arlette não tinha o hábito de guardar correspondências. "Mamãe lia e respondia, depois jogava tudo no lixo", explica a filha mais velha. Assim, apenas uma carta de Anita sobreviveu ao tempo ? aquela que escrevera em território sueco.

Suas impressões acerca dos países escandinavos foram registradas em uma entrevista concedida no dia 4 de maio de 1956: "Já não existe na Dinamarca o problema das relações entre as diversas camadas sociais", declarou ao jornal Correio Paulistano.

"Um empregado de balcão e um pescador com muita frequência se sentam na mesa de um restaurante ao lado de um alto funcionário ou de um membro da ONU."

Palavras semelhantes talvez estejam grafadas no manuscrito que a dentista enviou da Suécia. As netas, porém, nunca conseguiram decifra-lo plenamente.

"O papel é fino, quase transparente, e minha avó escreveu nos dois lados", explica Illène. "Além disso, ela tinha uma letra muito difícil de se ler. Mas nós entendemos que ela queria saber se o socialismo funcionava bem como modo de governo de um país, e que ela adorou a viagem."

Passos vigiados

Leitores ocultos se interpunham entre Anita e sua filha. As cartas que a dentista enviava aos Estados Unidos eram sistematicamente examinadas pelos censores do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).

O órgão, criado pelo governo brasileiro em 1924 e hoje lembrado pelo seu papel repressivo durante a ditadura militar, teve forte atuação no Estado Novo e também monitorou cidadãos nos períodos de suposta normalidade democrática.

Em 27 de outubro de 1951, um memorando destinado a Arnaldo de Camargo Pires, delegado-chefe do Serviço Secreto do DOPS, acusava: "Anita Carrijo é militante comunista; as suas atividades em prol da ideologia comunista vêm se manifestando desde princípios de 1949".

O documento, encontrado pela BBC News Brasil no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo, integra um pequeno dossiê sobre as atividades políticas da cirurgiã-dentista.

Uma correspondência de cinco páginas, enviada a Arlette no dia 13 de abril de 1944, chamou a atenção dos delegados por conter "referências depreciativas" ao país.

O relator afirma: "Em carta de caráter familiar, a missivista, referindo-se ao Brasil, fá-lo de maneira desairosa, dizendo (...) tratar-se de um país de semianalfabetos, onde desconhecem a lei da verdade, para se basearem na lei do código civil e na lei da aparência."

A existência da documentação surpreende as netas, que descrevem o fato como "horroroso" e "inimaginável". Mas a censura postal, segundo Marcela Morente, era apenas um entre tantos esquemas de vigilância aos quais Anita pode ter sido submetida.

"A polícia armava todo um cerco às mulheres militantes", diz a historiadora. "Havia uma grande rede de informações para desmobilizar esses movimentos. Pelos testemunhos, percebe-se um clima de tortura psicológica. A polícia estava a par de cada passo que elas davam."

Morente enumera alguns dos principais métodos coercitivos empregados pelas autoridades da época: "Guardas à paisana se colocavam próximos aos locais de reunião e infiltravam policiais femininas nas atividades. Mulheres foram presas e submetidas a interrogatórios. Eram pressionadas a citar nomes, delatar colegas, dar informações sobre eventos, a dizer se havia alguma comunista entre elas".

Em 22 de janeiro de 1957, o decreto nº 40.789, assinado pelo presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976), suspendeu o funcionamento da Federação das Mulheres do Brasil e de todas as associações filiadas, incluindo a FMESP.

A documentação das entidades, recolhida pela polícia na ocasião, seria utilizada como prova de que essas mulheres estavam envolvidas em atividades subversivas.

Medo de dormir

Quatro meses depois, no dia 11 de maio, um sábado, Anita vestiu seu tailleur azul-marinho e dirigiu-se com Irma Sargentelli ao casamento de uma cliente na Paróquia São José do Belém, zona leste da capital paulista.

Às 20h, a dentista e sua funcionária deixaram a igreja, partindo rumo a uma casa no bairro do Ipiranga, zona sul, onde ocorria uma festa de recepção aos convidados. Irma foi embora às 21h, mas Anita permaneceria na área de comes e bebes por mais algumas horas.

Pouco depois da meia-noite, despediu-se e foi levada até o portão. Sozinha e aparentemente tranquila, atravessou a rua em direção ao ponto de ônibus. Nunca mais foi vista com vida.

Seu irmão, José Carrijo Júnior, soube do assassinato no início da tarde de segunda-feira. Do município de Marília, no interior do estado de São Paulo, enviou um telegrama para Denver. Arlette cuidava de Ruth, ainda bebê, e Illène, com 9 anos, havia acabado de chegar da escola. A educadora jamais se esqueceu daquele dia.

"Encontrei minha mãe em total desespero. Foi a única vez em toda minha vida que eu a vi chorar. Meu pai mandou rosas do escritório", lembra-se.

"Para mim, aquilo representou um choque enorme. Mamãe era uma pessoa muito alegre, positiva, e de repente estava mergulhada em tristeza. Demorei para entender o acontecimento, mas pude ver a tragédia nos olhos dela. E percebi que, se a mãe dela havia morrido de repente, então a minha também poderia morrer. Passei um ano inteiro com medo de ir para a cama sozinha."

A polícia acreditava que duas ou mais pessoas estivessem envolvidas no crime. Apesar da posição em que o corpo havia sido encontrado, a hipótese de violência sexual não foi considerada.

Embora o cofre do apartamento estivesse intacto e os assassinos tivessem ignorado diversos objetos de valor, como joias e uma câmera fotográfica, a morte foi inicialmente investigada como latrocínio ? Irma dera por falta de uma máquina de escrever e de um pequeno aparelho de diatermia.

Em depoimento às autoridades no dia 13, a funcionária levantaria o nome de um suspeito ? o jovem Federico Cappellin, ex-auxiliar de Anita. Vizinhos atestavam que ele, inconformado com sua recente demissão, passara toda a noite de sábado circundando o prédio da patroa.

Federico tinha 27 anos e nascera em Auronzo di Cadore, pequeno vilarejo de três mil habitantes no nordeste da Itália. Crescera na França e vivia no Brasil desde 1954.

Antes de se mudar para a capital paulista, havia trabalhado na vidraçaria do pai em Paris e supostamente cursado Filosofia na Universidade de Sorbonne. Boêmio e bem apessoado, aspirava à carreira de ator, dizendo ter no currículo algumas pontas em filmes europeus.

Nas semanas que antecederam a morte de Anita, o suspeito havia atuado em uma montagem da peça A Prostituta Respeitosa, de Jean-Paul Sartre, apresentada no Teatro Cultura Artística pelo grupo amador da Aliança Francesa.

Ironicamente, interpretara um dos policiais corruptos que perseguem a protagonista Lizzie, garota de programa que testemunha a execução de um homem negro pelo sobrinho de um senador branco. Agora, às voltas com um assassinato verídico, Federico alegava ter conhecido a vítima em um encontro fortuito no Museu de Arte Moderna de São Paulo.

"Muito afável, Anita logo me convidou a passar em casa, a fim de ver os dentes. Já naquela época eu lutava contra dificuldades financeiras", disse ao delegado João Leite Sobrinho na Delegacia de Segurança Pessoal da Polícia Civil.

"Acertei então com ela um acordo. Em troca de comida, eu lhe cuidaria do apartamento, embora continuasse a dormir fora. Mas um dia, por motivos fúteis, brigamos. E ela saiu por aí alinhavando todas as suas teorias feministas, que me aborreciam de verdade. Não suportei aquela investida. Ainda mais que tínhamos divergido várias vezes por causa dessas teorias."

No dia 18, às 17h30, após 33 horas quase ininterruptas de interrogatório, o rapaz foi liberado. Na companhia de seus advogados, Hélio Ribeiro Nogueira e Tuany Valdetaro Silva, distribuiu autógrafos pelo centro da cidade.

"Veja como é o destino", vangloriou-se um de seus defensores à imprensa, enquanto passeavam pela Rua Barão de Itapetininga.

"Esse moço chegou ao Brasil como mestre videiro. Surgiu aos olhos do público como assassino. Hoje, é herói. Ele ainda não sabe que já tem propostas para trabalhar na televisão."

Um grande silêncio

Anita, por sua vez, enfrentaria uma campanha de difamação póstuma. A dentista, garantiam seus detratores, era "um demônio".

Dizia-se que, "apesar da idade", levava uma "vida irregular". Sua "estranha existência" consistiria em um "mar de lama" eivado por "tramas de devassidão e mistério". Ela teria sido exterminada pelo "próprio meio" ? um "círculo social totalmente contaminado pelo vício de entorpecentes". Os termos são de reportagens da época.

A imprensa não economizaria em adjetivos para a vítima ? "inconsequente", "infeliz", "inquieta", "embriagada", "destrambelhada", "confusa", "solitária", "toxicômana".

Nas redações, sua figura desdobrava-se em uma sucessão de arquétipos negativos ? a mulher "pouco cuidadosa", "dada a jogatinas", "frequentadora de cabarés", "impregnada de pensamentos comunistas" e "mal sucedida no amor".

Sem provas, jornais a acusavam de ter ganhado dinheiro com agiotagem e tráfico de cocaína. A revista Manchete, uma das mais lidas pela classe média brasileira na década de 1950, insinuou: "a dentista, insatisfeita, recebia rapazes em seu apartamento pretextando ministrar-lhes aulas de Odontologia". O texto, escrito por Walter Bouzan, trazia a foto de um travesseiro com manchas escuras, e, logo abaixo, a legenda: "O leito em que Anita recebia seus 'clientes' amanheceu um dia coberto de sangue."

As investigações pouco avançaram. Mário Santalúcia, médico responsável pela autópsia, não obteve nenhum esclarecimento que servisse de norte para seu trabalho, efetuado sem qualquer supervisão da Delegacia de Segurança Pessoal ? o laudo resultante, admitiria o legista posteriormente, era falho.

Uma semana após o crime, as impressões digitais recolhidas no apartamento ainda não haviam sido analisadas pelo serviço datiloscópico.

Na esteira do testemunho de Federico, mais de cem pessoas foram ouvidas pela polícia. Os suspeitos eram detidos, exibidos à opinião pública como culpados e soltos logo em seguida.

João Ribeiro da Silva, com três passagens pela Delegacia de Roubos, confessou o crime sob tortura.

O argentino Roberto Ray, cantor de tangos em boates paulistanas, foi retratado como cafetão e suposto concorrente de Anita no tráfico de drogas.

Luís Lopes, portador de esquizofrenia e fugitivo do Hospital Psiquiátrico do Juquery, declarou-se culpado, mas peritos concluíram que seu relato era mero "produto de uma imaginação doentia".

O caso foi arquivado em 1970. Sete anos depois, a lei nº 6.515 finalmente instituiu o divórcio no Brasil. Àquela altura, ninguém mais falava sobre o assassinato da cirurgiã-dentista ? nem mesmo seus descendentes.

"Arlette tentou ao máximo proteger a imagem da mãe", diz a corretora imobiliária Carmen Bittencourt, casada há 38 anos com um sobrinho-neto de Anita ? ele não quis dar entrevista.

Foi pela convivência com a família do marido que ela tomou conhecimento do crime, já na década de 1980. O tema costumava ser um tabu.

"Quando Arlette vinha ao Brasil, todos evitavam essa história", diz. "Os tios escondiam os jornais, rasgavam qualquer coisa que aparecesse em casa. Ninguém queria que ela soubesse dos detalhes. O pessoal fez de tudo para que ela não visse as fotos do corpo."

Arlette mantinha um retrato de Anita na escrivaninha e recusava-se a conversar sobre os acontecimentos de 1957.

"Minha mãe não parecia ter vivenciado uma tragédia", lembra Ruth. "Ela nunca quis estacionar no passado, fazer disso o centro de sua vida. Ela queria preservar as memórias bonitas, falar de coisas agradáveis."

A assistente de parto reconhece, por outro lado, que um grande e doloroso silêncio se abate sobre a família: "Ninguém tocava nesse assunto quando éramos jovens. Eu não me sentia confortável para fazer perguntas, mas sempre tive curiosidade. Recentemente, digitei o nome da minha avó no Google".

Ruth deparou-se com a imagem do cadáver, reproduzida em blogs e páginas de antiguidades no Facebook. Ela, que até então desconhecia os pormenores do crime, intuiu que o assassinato havia sido político ? uma sensação compartilhada pela irmã mais velha.

"Só descobri a causa da morte aos dezenove anos", relata Illène. "Eu estudava na Universidade de Stanford e participava ativamente dos protestos contra a Guerra do Vietnã. Mamãe tinha muito medo de que algo acontecesse comigo e acabou me contando como foi que Anita morreu."

Stalin e prostitutas

Arlette nunca tolerou críticas à mãe. "Ela se sentia extremamente irritada quando parentes mais conservadores falavam mal de Anita, e sempre foi muito clara com relação a isso", diz Illène.

E observa: "Nós crescemos em uma casa de muito debate político. Mamãe era liberal, admirava Franklin D. Roosevelt e fazia questão de ir às urnas toda eleição".

O direito ao voto foi adquirido às vésperas do golpe de 1964, quando Arlette, a contragosto, naturalizou-se norte-americana. "Ela ficou triste, pois adorava o Brasil e queria preservar sua nacionalidade", conta Ruth.

O marido, no entanto, acabou por convencê-la, alegando insistentemente que João Goulart transformaria o país em uma ditadura comunista.

"Minha mãe sempre falava o quanto Stalin era terrível", afirma Illène. "Por muitos anos, ela pensou que Anita tivesse sido assassinada pelo Partido Comunista. Essa ideia é simplesmente absurda. Eu acho que minha avó foi morta por saber de algo errado envolvendo homens de poder."

A reportagem mostra às netas de Anita uma nota publicada pelo Jornal do Brasil em 9 de maio de 1959. "Minha irmã estava escrevendo um livro sobre o uso de tóxicos em São Paulo", dizia José Carrijo Júnior naquele momento.

"Nesse livro estavam os nomes de várias personalidades da alta sociedade paulista, pessoas viciadas em tóxicos. Pois bem, os originais do livro desapareceram logo após o crime, não sendo encontrados em nenhuma oficina gráfica."

O recorte desperta lembranças em Illène. Já na idade adulta, familiares teriam lhe dito que Anita acidentalmente desvendara um cartel de drogas comandado por dentistas e médicos da capital paulista.

Arlette, ao mesmo tempo, relatava que a mãe oferecia tratamento odontológico gratuito às prostitutas da cidade, a fim de conversar com elas sobre feminismo.

"Eu imagino que muitas prostitutas sejam utilizadas para satisfazer homens poderosos, e que minha avó tenha descoberto algo por meio dessas mulheres. Mas isso é uma grande especulação. Não existem evidências, nunca saberemos o que realmente houve", admite a educadora.

"Em todo caso, quando lembro da forma como ela morreu, amordaçada e sufocada, só consigo pensar em silenciamento. Alguém queria calar a boca da minha avó, para que ela não divulgasse o que sabia."

A imagem do corpo, que a BBC News Brasil não publica em respeito às netas, causou impressão parecida em Marcela Morente: "Achei a foto muito chocante", diz a historiadora. "Anita foi pioneiríssima, um atentado ambulante contra tudo aquilo que a sociedade brasileira entendia por moral e bons costumes. A violência que sofreu e a maneira como foi assassinada me parecem uma resposta direta ao papel controverso que ela desempenhava na época."

Flores para os vivos

Mais de sessenta anos após o crime, o edifício da República permanece em pé. Sua fachada discreta, em frente aos canteiros da Praça Dom José Gaspar, encontra-se coberta de pichações.

Os apartamentos, distribuídos em onze andares, hoje servem como escritórios para engenheiros, arquitetos, advogados, despachantes e desenvolvedores de softwares. Os inquilinos aparentemente desconhecem o histórico do prédio.

A Biblioteca Municipal Mário de Andrade, a 80 metros dali, foi palco de pelo menos duas conferências de Anita. No dia 9 de junho de 1947, a dentista esteve no local para falar sobre a "situação dos filhos de desquitados e divorciados". Em 16 de setembro de 1954, retornaria com uma palestra sobre a "evolução mental da mulher no Ocidente".

A Mário de Andrade, reconhecida como a segunda maior biblioteca pública do país, não possui o livro da dentista em seu acervo de 370 mil títulos.

Os vestígios públicos de Anita também desapareceram do Cemitério do Araçá, na zona oeste da cidade, onde foi enterrada.

"Ano retrasado, quando estive no Brasil pela última vez, quis visitar o túmulo da minha avó", relata Illène. "Ao chegar lá, descobri que havia sido vendido para outra família. Saí do cemitério e entreguei para uma amiga as flores que tinha comprado. Percebi que uma pessoa viva poderia apreciá-las melhor."

As mulheres entrevistadas pela reportagem lamentam que a figura da dentista tenha se apagado no tempo.

"Anita Carrijo poderia ter entrado para a história como um nome marcante do feminismo, mas caiu na obscuridade como personagem de folhetins sensacionalistas", opina Carmen Bittencourt. "O crime infelizmente foi vendido como um assalto qualquer. Acho que não era conveniente levar esse caso adiante."

Para Morente, trata-se de um esquecimento calculado. "Não interessa ao Estado que mulheres como Anita sejam lembradas, ou que ela tivesse se tornado mártir do divórcio na década de 1950", afirma a pesquisadora.

"O objetivo é fazer com que as mulheres sejam sempre silenciadas, que não ganhem espaço nem voz, que não inspirem umas às outras."

Na contramão da memória coletiva brasileira, Illène pendura fotografias da avó nas paredes de sua casa em Carbondale e guarda no armário o vestido vermelho com o qual a dentista presenteou Arlette ao retornar de uma viagem à Europa.

"É maravilhoso, feito de linho irlandês e bordado à mão em branco", descreve a educadora. "Mamãe me deu quando fiz quinze anos, e ainda tenho. Ela costumava dizer que sou muito parecida com minha avó. Acho que Anita ainda vive dentro de mim."

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