Topo

Esse conteúdo é antigo

María Antonia Bolívar: a irmã do 'Libertador' que lutava contra independência da América do Sul

Retrato de María Antonia Bolívar, de 1830, pintado por Lewis Brian Adams - Domínio Público
Retrato de María Antonia Bolívar, de 1830, pintado por Lewis Brian Adams Imagem: Domínio Público

Margarita Rodríguez

Da BBC News Mundo

24/07/2021 17h01

Irmã de Simón Bolívar, herói da independência sul-americana, não queria ser confundida com o projeto do irmão mais novo ? enquanto Bolívar se tornou inimigo da monarquia, ela se manteve fiel à Coroa espanhola.

"Nenhuma outra mulher escrevia para Simón Bolívar no tom que ela escrevia", diz a historiadora venezuelana Inés Quintero à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.

Enquanto Quintero pesquisava o processo de independência da Venezuela e mergulhava no arquivo do ilustre militar e político conhecido como o Libertador de países sul-americanos do mando da Coroa espanhola, se deparou com "uma mulher que estava totalmente ausente".

"Não havia notícias de María Antonia nas biografias de Bolívar, não havia nenhum trabalho dedicado a ela, exceto por questões muito tangenciais ou gerais e, claro, quando entro neste mundo, encontro uma personagem fascinante, uma mulher muito dona da situação e de seus pontos de vista."

"Uma mulher que não se deixava levar pela corrente."

E, embora seus outros irmãos tivessem abraçado o projeto de independência, ela "desde o primeiro momento" não aderiu.

É o que mostram várias das cartas que María Antonia escreveu a Simón Bolívar e que Quintero analisou.

"Me surpreendeu muito sua beligerância, a carga emocional e as diferenças entre os dois."

"É um material epistolar muito rico pela forma de se comunicar com o irmão, é um tratamento direto, familiar, sem protocolos."

No ano em que se comemora o 200º aniversário da Batalha de Carabobo - quando Bolívar comandou um exército rebelde que derrotou os espanhóis nos arredores de Caracas -, fundamental no processo de independência da Venezuela, a BBC News Mundo analisa a fascinante relação entre o herói e sua irmã mais velha.

'Crioula' e primogênita

Quintero é autora da biografia de María Antonia Bolívar: La criolla principal, livro que é resultado de anos de pesquisa sobre o papel das mulheres na independência.

"A vida de María Antonia era absolutamente desconhecida porque tudo o que rodeia Bolívar está carregado de seu imenso peso como personagem".

"Supõe-se que os heróis não tenham família, vida privada, desencontros, mas houve essa figura feminina tão forte e decisiva que manteve distância do projeto do irmão."

María Antonia nasceu em 1 ° de novembro de 1777 e foi a primeira filha de Juan Vicente Bolívar y Ponte e Concepción Palacios y Blanco.

O casal também teve Juana (1779), Juan Vicente (1781) e Simón (1783).

Quando María Antonia tinha nove anos, seu pai faleceu e, aos 14, sua mãe morreu.

Poucos meses depois, aos 15 anos, se casou com Pablo Clemente y Palacios, muito mais velho que ela, com quem teve quatro filhos.

Os outros irmãos ficaram sob a responsabilidade do avô materno e, após sua morte, um tio assumiu a criação de Simón.

"Em julho de 1795, quando tinha 12 anos, ele sofreu uma crise bem típica de início da adolescência: fugiu do tio para se refugiar na casa da irmã María Antonia e do marido, por quem sentia mais afinidade afetiva", diz o historiador Manuel Pérez Vila em uma breve biografia do "Libertador".

A irmã o defendeu, o que gerou um conflito com o tio, e a solução que encontraram, apesar da resistência do menino, foi mandá-lo para a casa de seu professor Simón Rodríguez.

Não apenas a diferença de idade entre ela e Simón, mas também as circunstâncias de suas infâncias, explicam "o respeito mútuo entre os dois", diz Quintero.

'Uma vítima do processo'

A irmã mais velha do herói venezuelano nunca compartilhou a possibilidade de romper com a ordem existente.

"O que María Antonia coloca em seus documentos é que se eles haviam sido fiéis à monarquia durante toda a vida, se seus pais, tios, avós, tataravós, haviam tido uma boa relação com a monarquia e, além disso, haviam sido beneficiados por ela, de onde vinha esse distanciamento e enfrentamento".

"Para ela, parecia uma contradição que uma família que havia sido leal à Coroa por mais de 100 anos tivesse decidido romper esse vínculo."

Os irmãos Bolívar eram descendentes de uma família de origem basca que se radicou na Venezuela no fim do século 16.

María Antonia reconhecia que os homens de sua família haviam sido figuras proeminentes dentro da ordem colonial, que haviam ocupado cargos no "sistema de poder que a monarquia oferecia aos crioulos brancos, que haviam se tornado o suporte local do regime".

"Por outro lado, como aconteceu com muitas pessoas na época da independência, incluindo os crioulos brancos, não compartilhava do princípio da igualdade, tampouco das ideias republicanas, pois tudo isso representava uma novidade e um descalabro diante do que era sua vida cotidiana."

"Ela se forma e se cria dentro do conceito de uma sociedade desigual, em que os brancos têm privilégios, em que os negros não podem ter lugar na dinâmica política e social".

"Para ela, a dissolução da velha ordem é a negação de seus costumes, crenças, princípios, e ela a rejeita."

"Mas ela não foi a única, o que acontece é que essa divisão entre os crioulos brancos foi de alguma forma omitida na narrativa da historiografia porque queriam mostrar que a independência era um projeto de salvação de todos os venezuelanos sem distinções, que era um ideal libertário coletivo."

"Mas não se considerou que foi um projeto muito difícil de implementar, que teve adversários dentro dos setores privilegiados da sociedade e que provocou um estremecimento na dinâmica política e social".

"María Antonia sente que é uma vítima desse processo".

'Traidora'

Ela não estava de acordo com o projeto de Francisco de Miranda e, quando começou o processo de independência dos países sul-americanos, "ela não só não se sente convocada, como externaliza e enfrenta o irmão".

Em 1813, Bolívar baixou, em Trujillo (oeste da Venezuela), o Decreto de Guerra até a Morte:

"Espanhóis e canários, contem com a morte, mesmo que sejam indiferentes, se não agirem ativamente em favor da liberdade da América. Americanos, contem com a vida, mesmo que sejam culpados."

O próprio Bolívar se assegurou de que seu decreto não ficasse só na ameaça.

"Ao chegar a Caracas, ele ordenou a execução de várias centenas de espanhóis que estavam presos em La Guaira", contou Quintero em um podcast sobre a história da Venezuela da Biblioteca Digital Banesco.

María Antonia ficou apavorada com o decreto, mas "não estava disposta a se deixar intimidar".

Na verdade, em uma de suas propriedades, "ela escondeu espanhóis e canários para salvá-los de uma morte certa".

"Ela foi acusada de traidora, os partidários da república gritavam: 'Goda, aristocrata'. Apesar das ameaças, María Antonia Bolívar continuou sendo inimiga da república e súdita leal do rei da Espanha, enquanto seu irmão se tornou o inimigo mais ferrenho da monarquia espanhola."

O exílio

Quintero contou à BBC News Mundo que, quando começou a fase mais violenta do processo de independência, Bolívar obrigou María Antonia a se exilar para proteger não só a vida dela, mas também de seus sobrinhos.

Fez o mesmo com milhares de pessoas em Caracas que corriam perigo com o avanço das tropas do espanhol José Tomás Boves.

Em 1814, María Antonia partiu para Curaçao e de lá escreveu às autoridades reais.

"Essas comunicações são extraordinárias porque marcam uma fronteira política clara com seu irmão."

"Ela escreve à Real Audiência de Caracas e diretamente ao Rei Fernando 7º para que não a confundam: 'Não tenho nada a ver com isso, tenho outra percepção, tenho sido leal, tenho defendido a Coroa'."

E ela não estava apenas motivada pela ideologia, também queria reaver os bens que, por ser irmã de Simón, haviam sido confiscados como parte das represálias da monarquia.

Em seu livro, Quintero reproduz uma de suas considerações:

"(...) é preciso deduzir que o único crime em que poderão se basear os decretos negativos à minha admissão será o de levar o sobrenome de Bolívar: (...) Mas quão monstruoso seria à face do mundo que ao castigar um pai ou irmão, por ter sido defensor do partido da revolução, se estendesse o castigo a um filho, ou a outro irmão, que tivesse apoiado firmemente a causa do rei."

Em seguida, ela foi para Havana, onde conseguiu que a Coroa desse a ela uma pensão por sua lealdade.

Mas com o triunfo da independência na Venezuela, ela ficou sem essa ajuda e decidiu, "a contragosto", fazer as malas.

O retorno

Em 1822, ela voltou ao seu país, "entre outras coisas porque Bolívar mandou para ela o dinheiro para que pudesse se mudar".

"Era a única maneira que tinha de retomar o controle de sua patrimônio e, ao mesmo tempo, recuperar o controle sobre os bens da família."

A partir daquele momento, teve que se ajustar a uma situação política que a incomodava, com a qual não concordava.

"Aí vem todo o material epistolar dela com o irmão, no qual ela expressa abertamente suas opiniões, o aborrecimento que a república representa, o desmantelamento de hierarquias, os desaforos daquela mudança política tão radical".

"Muitas outras cartas de mulheres desapareceram em meio à guerra, mas a vantagem de ter sido irmã de Simón Bolívar permitiu que essas cartas fossem guardadas porque faziam parte do Arquivo do Libertador".

"Foi isso que nos permitiu reconstruir toda a saga da relação entre María Antonia e Bolívar", que uma vez escreveu:

"Antonia, te aconselho a não se envolver em assuntos políticos, não aderir ou se opor a nenhum partido. Deixa pra lá a opinião e as coisas que você acredita que vão contra o seu pensamento. Uma mulher deve ser neutra nos assuntos públicos. Sua família e seus deveres domésticos são suas primeiras obrigações."

Uma família entre tantas

Sua história também é uma forma de ver o papel que as mulheres tiveram nesse período histórico.

"É uma forma de ver a independência não só pelo olhar feminino, mas também de uma família, a de Bolívar, e isso mostra a complexidade representada por esse processo político de desmantelamento e ruptura da sociedade".

Muitas mulheres não tiveram escolha a não ser defender suas propriedades e se tornar o eixo econômico de suas famílias, já que as figuras masculinas haviam desaparecido no contexto da guerra.

Este não foi o caso de María Antonia, que ficou viúva porque seu marido tinha "uma saúde muito frágil".

Assim, não só ficou responsável por seu patrimônio pessoal, como também viu a necessidade de tomar conta dos bens da família Bolívar, que, após a morte de seu irmão mais velho, haviam ficado nas mãos do herói.

"Ela interpreta que se Simón Bolívar está andando a cavalo, tornando os países independentes, ela tinha que pedir a ele uma procuração que permitisse a ela cuidar das propriedades, das casas, das minas de Aroa".

"Ela vai insistir muito em ter esse poder porque ele não podia ficar à frente dessas propriedades e se tratava de um patrimônio muito importante."

Seu irmão concedeu os poderes a ela.

Cuzco, 10 de julho de 1825.

Minha querida Antonia:

Ontem recebi uma carta sua na qual anunciava a chegada do meu tio Esteban (...)

Te envio novamente meus poderes para que trate de todos os meus negócios, casas, propriedades e minas. Quero saber em que estado se encontra Suata: Suata não é alugada com San Mateo. Mande seu filho ver como está tudo isso; o mesmo com as casas de La Guaira.

Te envio uma carta da minha mãe Hipólita, para que dê a ela tudo o que ela quiser; para que você faça por ela como se fosse sua mãe, o leite dela tem alimentado minha vida e eu não conheci outro pai além dela (...)

Sempre me dê notícias políticas e de tudo; porque o que você me diz é sempre o mais verdadeiro.

No mês que vem, um exército de 12 mil homens começa a partir daqui para a Venezuela, e no início do ano que vem eu irei. Então vou resolver tudo e você não terá mais preocupação. Diga isso a seus amigos, e receba o coração do seu irmão.

BOLÍVAR

Fonte: Arquivo do Libertador, governo da Venezuela

Quando María Antonia voltou à Venezuela, Bolívar estava longe, concentrado nas Campanhas do Sul, lutando contra o domínio espanhol no Equador e no Peru, na criação da Bolívia.

"No Peru houve muita resistência à independência, e a presença de Bolívar foi muito criticada e gerou muitos conflitos", lembra Quintero.

"Por isso, ela diz a ele em uma carta: 'Deixe os peruanos que não querem se tornar independentes quietos, venha para Caracas'. Ela diz nesses termos, de uma maneira bem coloquial, bem doméstica de enfrentar esse mundo antagônico: entre as ideias e a vocação de poder de uma figura como Simón Bolívar e a defesa e a concepção política desta mulher que acredita que a independência é uma loucura."

Puno, 8 de agosto de 1825.

Minha querida irmã: Dom Simón Rodríguez me deu aqui mil pesos fortes para que eu possa liberá-los em favor do Sr. Dr. Miguel Peña em Valência. Como não tenho dinheiro lá, você fará com que esta quantia seja entregue a ele naquela cidade; ou então ele pode pegar a mesma quantia com você em Caracas. Se por algum evento não houver dinheiro meu em seu poder, peça emprestado e coloque-o à disposição do Sr. Dr. Peña, visto que este crédito é preferido, já tendo recebido o dinheiro aqui.

Seu amo. irmão.

SIMÓN BOLÍVAR

Fonte: Arquivo do Libertador, governo da Venezuela

A irmã em outro contexto

María Antonia e Simón passaram 13 anos sem se ver.

Ele retornou à Venezuela em 1827 para restabelecer a paz, após meses antes, em 1826, estourar "La Cosiata", movimento que se opunha ao governo de Bogotá, onde se concentrava o poder político da Grande Colômbia.

O "Libertador" aproveitou sua estada em Caracas e "fez todos os arranjos para distribuir as propriedades da família, deu algumas a María Antonia, outras a Juana e outras a seus sobrinhos", diz a historiadora.

Naquele mesmo ano, o herói venezuelano teve que ir para a Colômbia, onde fortes divergências políticas também estavam se formando.

Apesar de seus esforços, as ideias separatistas em seu próprio país, longe de enfraquecer, ganhariam ainda mais força.

"María Antonia ficou em Caracas e teve que enfrentar uma época em que Bolívar foi alvo de escárnio na Venezuela, quando não era uma referência política do agrado dos liberais nem de José Antonio Páez (outro herói da independência)."

"Ela era a irmã de Bolívar em um contexto diferente".

Em meio a fortes tensões, em 1828, Bolívar assumiu poderes ditatoriais em Bogotá.

"Em seu desejo de ordem, María Antonia prefere um irmão ditador a uma república com uma abertura liberal."

"Isso é uma contradição em sua vida: depois de ter sido contra o projeto de independência, ela finalmente não tem escolha a não ser apoiar o projeto político final de seu irmão quando ele se voltou para um controle de poder mais centralizado e que aspira a um esquema mais rígido e conservador do que se poderia haver previsto originalmente. "

Ela o defendeu em muitas manifestações que o acusavam de tirano.

O final

Nesse mesmo ano, Bolívar escapou de uma tentativa de assassinato na Colômbia.

"Pouco depois teve que partir em campanha para enfrentar as forças peruanas que haviam penetrado no Equador, onde permaneceu quase todo o ano de 1829", lembrou Pérez Vila.

Em 1830, o "Libertador" voltou à Colômbia, onde a turbulência política e a oposição ao seu projeto de governo se intensificavam.

Naquele ano, a Venezuela se declararia um Estado independente. O sonho da Grande Colômbia estava desaparecendo.

"O 'Libertador', cada vez mais doente, renuncia à presidência e embarca em viagem para a costa. A notícia do assassinato de (Antonio José de) Sucre, que recebe em Cartagena, o afeta profundamente", contou o historiador.

"Ele pensa em ir para a Europa, mas a morte o surpreende em San Pedro Alejandrino, uma fazenda localizada perto de Santa Marta, em 17 de dezembro de 1830."

Um pedido encarecido

Após a morte de seu irmão, María Antonia levou uma vida caseira em uma fazenda nos arredores de Caracas e se dedicou a administrar os bens da família.

Quintero conta que falar sobre a repatriação dos restos mortais de Simón Bolívar para Caracas havia se tornado um tabu na Venezuela, mesmo depois de vários anos após sua morte.

Mas, em 1838, María Antonia decidiu "quebrar o gelo".

"Ela escreveu uma carta ao presidente Carlos Soublette e afirmou que Bolívar havia deixado especificado em seu testamento que seus restos mortais fossem depositados em Caracas", disse a historiadora em outro podcast da Biblioteca Digital Banesco.

Ela acreditava que "já havia passado tempo suficiente para que tivessem acabado as paixões políticas" contra o "Libertador" e pediu "encarecidamente que permitissem a ela transferir as cinzas de seu irmão para Caracas".

Mas o pedido foi rejeitado e só em 1842 Páez determinou o repatriamento.

"María Antonia não estava presente. No dia 7 de outubro, dois meses antes da generosa homenagem ao Libertador, sua irmã faleceu."

Apesar de suas profundas diferenças políticas, anos antes, em 1825, ela havia escrito para ele:

"(...) diga sempre o que disseste em Cumaná no ano 14 que seria 'Libertador', ou morto. Esse é o teu verdadeiro título, aquele que te elevou acima dos grandes homens, e aquele que te conservará as glórias que adquiriu com o custo de seus sacrifícios (...)"

"Não posso deixar de declarar a você os sentimentos do meu coração pelo interesse que tenho em sua felicidade."