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'Crueldade não teve limites', diz Presidência da Bolívia após acusar ex-mandatária de genocídio

Jeanine Áñez está presa desde março por "terrorismo, sedição e conspiração" nos atos que levaram à renúncia de Evo Morales - REUTERS
Jeanine Áñez está presa desde março por 'terrorismo, sedição e conspiração' nos atos que levaram à renúncia de Evo Morales Imagem: REUTERS

Marcia Carmo - De Buenos Aires para a BBC News Brasil

25/08/2021 10h12Atualizada em 25/08/2021 10h17

Após oito meses de investigações e de reunir depoimentos de vítimas da violência no último trimestre de 2019, na Bolívia, os especialistas independentes convocados pela Organização de Estados Americanos (OEA) detalharam num longo relatório casos de tortura, violência sexual e assassinatos, naquele período, no país.

O documento aponta que foram constatadas, em diferentes circunstâncias, "pelo menos 37 mortes" em diversos lugares do território boliviano e centenas de vítimas com "ferimentos tanto físicos como psicológicos".

No relatório, o Grupo Interdisciplinar de Especialistas Independentes (GIEI-Bolívia), da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, detalhou o que ficou conhecido como "Massacre de Sacaba", perto da cidade de Cochabamba, quando uma operação envolvendo policiais e militares, com tanques, helicópteros e um avião, deixou nove mortos e cem feridos identificados, no dia 15 de novembro daquele ano.

Os especialistas afirmam ter confirmado ainda "pelo menos nove casos de tortura" e que "muitos" outros dos 223 detidos naquele episódio que reunia apoiadores do ex-presidente Evo Morales, teriam sofrido "maus tratos", após serem detidos e levados para as instalações da Força Especial de Luta contra o Narcotráfico (FELCC).

"Observa-se nos registros de autópsia das vítimas fatais que elas foram feridas (a bala) na parte superior do tórax ou da cabeça", diz o texto do documento divulgado na semana passada.

No documento, o GIEI enfatiza a importância de que esses casos sejam "exaustivamente investigados" para que as circunstâncias das mortes sejam esclarecidas.

"A Polícia e as Forças Armadas, separadamente ou em operações conjuntas, usaram força de modo excessivo e desproporcional", afirma o documento que não tem função penal, mas de recomendações para a melhor convivência entre opositores, divisão dos poderes, o fortalecimento das instituições na Bolívia e ressarcimento às vítimas daqueles episódios.

Em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, o porta-voz da Presidência da Bolívia, Jorge Richter Ramírez, disse que a "crueldade" não teve limites na gestão de Áñez.

Luis Arce, aliado de Evo Morales - Getty Images / BBC - Getty Images / BBC
Luis Arce, aliado de Evo Morales
Imagem: Getty Images / BBC

"As execuções sumárias no país angustiaram o presidente (Luis Arce, aliado de Evo Morales). Elas representam o maior grau de desprezo pela vida das pessoas e indicam que o objetivo era eliminar o adversário", disse Ramírez.

"A polícia fez uso desproporcional da força, utilizou arma letal, estabeleceu um plano com a intenção de matar nas manifestações e realizou execuções sumárias. Isto significa disparos pelas costas contra pessoas que estavam tentando escapar do conflito. E foram mais de mil prisões e, como diz o relatório, sem os processos, sem as devidas acusações", disse.

Ele afirmou que o governo acatará as recomendações feitas pelos especialistas e que, na sua visão, a Bolívia tem "a obrigação de refletir sobre a crueldade a que as lutas políticas chegaram no país e que expõem também a debilidade institucional" boliviana.

Ouvido pela BBC News Brasil, o advogado de Jeanine disse que o relatório foi "imparcial" e "incompleto".

'Massacres'

O "Massacre de Sacaba" mencionado no relatório ocorreu três dias após a instauração do governo interino da ex-presidente Jeanine Áñez e cinco dias depois da renúncia de Evo Morales em meio ao caos social e questionamentos sobre a eleição para seu quarto mandato, realizada em outubro.

Segundo o documento da OEA, os casos de violência, incluindo mortes, em Sacaba tinham começado antes mesmo do momento em que se chamou de "massacre".

O texto observa que os protestos em La Paz cresceram após a chegada de Áñez ao palácio presidencial Quemado e que a repressão policial foi intensificada.

Além de Sacaba, o documento também faz referências ao caso de Senkata, ocorrido no dia 19 de novembro, no governo de Áñez.

As Forças Armadas reprimiram manifestações sob argumento de que uma refirnaria da estatal YPFB corria risco de explosão, o GIEI "não identificou evidências concretas de que a refinaria estivesse exposta a risco de explosão".

"Nos casos mais graves, foi identificada uma atuação abusiva, ilegal e arbitrária, com o uso de armas de fogo que provocaram a morte de transeuntes e manifestantes, no 'massacre de Senkata', além da ação violenta para impedir o protesto pacifico, como claramente ocorre no 'massacre de Sacaba'", dizem os especialistas no documento.

No relatório, estão os nomes das dez vítimas que morreram no "enfrentamento" em Senkata.

O "Relatório sobre os casos de violência e vulnerabilidade dos direitos humanos ocorridos entre 1 de setembro e 31 de dezembro de 2019", com quase 500 páginas, aponta que no dia onze de novembro, quando o país vivia uma espécie de limbo político, 28 pessoas, incluindo uma mulher e três adolescentes, "foram detidas e brutalmente torturadas" em uma dependência policial de La Paz.

 Para porta-voz do governo atual, antecessora teve respaldo das Forças Armadas e da Polícia Nacional para realizar 'massacres' - AFP / BBC - AFP / BBC
Para porta-voz do governo atual, antecessora teve respaldo das Forças Armadas e da Polícia Nacional para realizar 'massacres'
Imagem: AFP / BBC

"Elas foram apresentadas à imprensa como terroristas responsáveis por ataques e saques ocorridos na região de El Alto (em La Paz), sem que antes tenha sido confirmada a participação delas nos incidentes".

Segundo o relatório, os detidos sofreram novas sessões de torturas em uma segunda dependência policial e além disso, adolescentes, também torturados, teriam sido mantidos com os adultos, e entre eles "havia um jovem com deficiência intelectual".

Na ampla relação de casos contra os direitos humanos, o relatório menciona a prisão de uma ex-assessora direta de Evo Morales, de quando ele era presidente.

Ela teria sido detida na rua, por pessoal à paisana, e que, grávida e sem assistência médica, ela teria perdido o bebê na cadeia.

E cita ainda o caso ocorrido com uma suposta namorada de um dos ex-ministros de Evo Morales que teria sido amarrada à uma cama, além das prisões dos que integravam o Tribunal Eleitoral do país à época da eleição presidencial, em outubro de 2019.

Violência sexual

Os especialistas do GIEI disseram ter registrado dois casos de violência sexual por parte de agentes policiais contra mulheres detidas.

"Estas ocorrências não foram investigadas. E apesar desses dois casos poderem ser comprovados pelo GIEI, não significa que outros similares não tenham ocorrido mesmo que ainda não tenham sido denunciados", relata o documento.

"Em certos casos documentados os atos de violência sexual podem ser considerados como torturas, devido ao enorme sofrimento imputado às vítimas", complementa o relatório.

Para a equipe convocada pela OEA para investigar aquele fim de ano turbulento na Bolívia, o Ministério Público tem "a obrigação" de levar adiante a apuração de "tortura e violência de gênero diante da gravidade dos casos".

Após concluídas as investigações, a equipe da OEA ressaltou que "a maioria das violações contra os direitos humanos documentadas no relatório continua impune", apesar do tempo decorrido desde o final de 2019.

O relatório ressalta também a polarização extrema vivida entre opositores na Bolívia. O documento indica que isso se manifesta na forma de "violência racista contra povos indígenas, incluindo mulheres indígenas, que foram especialmente atacadas naquela época", e o texto pede ainda "punição aos responsáveis".

No documento, os especialistas enfatizam fatos que contribuíram para a divisão dos bolivianos e cita a substituição de símbolos indígenas - como a bandeira indígena wiphala - por símbolos do cristianismo evangélico.

O relatório acrescenta que "a promoção do cristianismo evangélico foi uma norma de orientação do Estado e os discursos racistas serviram para rejeitar a identidade, a cultura e a história indígenas".

'Genocídio'

Na sexta-feira passada, o Ministério Público acusou Jeanine Áñez de "genocídio" pela morte de cerca de vinte manifestantes durante repressão policial nas localidades de Sacaba e em uma refinaria de gás em Senkata, na cidade de El Alto.

Ela está presa desde março sob acusação de "terrorismo, sedição e conspiração" pelos acontecimentos de novembro de 2019.

Na entrevista à BBC News Brasil, o advogado da ex-presidente, Jorge Valda Daza, disse que ela é uma "presa política", sugeriu que o Poder Judiciário está "comprometido" e que no governo Arce "farão tudo para que ela não seja solta".

Jeanine Áñez está presa numa prisão de mulheres desde março passado e, no fim de semana, seus aliados informaram que ela teria tentado o suicídio na cadeia.

OEA

O governo do presidente Arce informou, por sua vez, que "ela tem pequenos arranhões em um dos braços".

Valda Daza criticou o relatório da OEA. "Tínhamos a maior expectativa em relação ao relatório. Mas ele é incompleto e questionamos sua imparcialidade", disse.

Ele citou, por exemplo, a morte de duas pessoas contrárias ao Movimento ao Socialismo (MAS), de Evo e Arce, que foram baleadas e mortas, em outubro, na localidade de Montero, região de Santa Cruz de la Sierra, fronteira com o Brasil. O caso também é abordado no relatório.

Nesta semana, em uma carta pública, ex-presidentes da região, entre eles Álvaro Uribe, da Colômbia, e Mauricio Macri, da Argentina, pediram "tratamento humanitário" para Áñez e disseram que o governo Arce é "responsável pela vida e integridade da ex-presidente" que exerceu governo de transição, aceito pela OEA, afirma o documento.