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Brasileiros contam como sobreviveram em ilha e no alto-mar após naufrágio na Guiana Francesa

Rota ilegal por meio de embarcações é usada para entrada clandestina na Guiana Francesa - NILTON CECCON/DNIT
Rota ilegal por meio de embarcações é usada para entrada clandestina na Guiana Francesa Imagem: NILTON CECCON/DNIT

João Fellet e Vinícius Lemos

Da BBC News Brasil em São Paulo

17/09/2021 08h07Atualizada em 20/09/2021 14h44

Atenção: O texto contém detalhes que podem ser considerados perturbadores

Ao menos 17 pessoas seguem desaparecidas 20 dias após um barco naufragar quando transportava ilegalmente passageiros do Amapá à Guiana Francesa.

Quatro brasileiros que sobreviveram ao acidente passaram dias em alto-mar até serem encontrados. Três homens nadaram até uma ilha deserta, onde fizeram uma jangada para atravessar até o continente, e uma mulher ficou dias flutuando antes de ser achada nas proximidades de um porto (leia mais abaixo).

Autoridades guianesas também localizaram corpos de três possíveis vítimas do acidente, mas eles ainda não foram identificados.

O barco deixou o município de Oiapoque (AP) em 28 de agosto rumo a Caiena, a maior cidade da Guiana Francesa. A previsão era de que o trajeto durasse cerca de seis horas, mas a embarcação afundou em águas guianesas em alto-mar.

Segundo autoridades locais, havia na embarcação 24 pessoas, dos quais 17 homens e sete mulheres. Muitos passageiros eram brasileiros que buscavam trabalhar no território ultramarino francês — alguns deles em garimpos de ouro. Também havia dois haitianos no grupo.

Na última sexta-feira (10), a Polícia Federal prendeu no Amapá dois homens brasileiros acusados de agenciar a viagem. A delegada da PF Janine Henrique Bastos diz à BBC News Brasil que os passageiros buscavam trabalhar na Guiana Francesa por um tempo para juntar dinheiro.

Busca por oportunidade

A busca por oportunidades no território francês por brasileiros se intensificou a partir dos anos 1980 e atrai principalmente moradores do Amapá, Pará e Maranhão.

Os acidentes com brasileiros que tentam entrar no território vizinho de forma clandestina ocorrem há cerca de 20 anos, diz o professor de Ciências Sociais Manoel de Jesus de Souza, da Universidade Federal do Amapá (Unifap). Ele avalia que isso acontece, principalmente, em razão das dificuldades para viajar legalmente à Guiana Francesa.

Ele diz que é mais fácil para um brasileiro viajar à capital francesa, Paris, do que à vizinha Guiana Francesa. "Brasil e França têm uma boa relação, mas essa boa relação acaba quando o assunto é a Guiana Francesa", afirma o professor.

Carlos Almeida e a esposa Karine Oliveira (ao centro) ao lado da mãe dela, Jeane: os três estão desaparecidos em naufrágio - ARQUIVO PESSOAL - ARQUIVO PESSOAL
Carlos Almeida e a esposa Karine Oliveira (ao centro) ao lado da mãe dela, Jeane: os três estão desaparecidos em naufrágio
Imagem: ARQUIVO PESSOAL

Souza, que estuda a migração de brasileiros para a Guiana Francesa desde 2004, explica que para voar até Paris, brasileiros só precisam apresentar o passaporte, não sendo necessário tirar visto. Já a entrada na Guiana Francesa exige a obtenção de visto, emitido pela embaixada francesa em Brasília.

"É um protocolo muito grande, quase impossível. É preciso investir muito para chegar à Guiana Francesa de forma legal", afirma.

No atual contexto, a entrada de forma legal no território vizinho se torna ainda mais difícil porque a fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa está fechada por causa da pandemia. Desde então, só pessoas com passaporte francês e familiares podem acessar o território.

Para muitos, a única opção é se arriscar em viagens de barcos clandestinos. As embarcações partem do rio Oiapoque até sua foz e, ao chegar ao Atlântico, seguem pela costa até Caiena.

A reportagem apurou que o valor da viagem costuma variar conforme a quantidade de carga que a pessoa levava. A cobrança começa por volta de R$ 1 mil.

Trabalho em garimpos

A embarcação que naufragou em 28 de agosto estava sendo usada pela primeira vez, diz a delegada Bastos. Segundo ela, o barco, conhecido na região como catraia, não era apropriado para a navegação no mar, "muito menos para a quantidade de pessoas e mercadorias presentes".

Para aqueles que se aglomeravam na embarcação para o garimpo, a viagem representava a busca por recursos para uma vida melhor. Uma dessas pessoas era Maria da Conceição Silva, de 57 anos, que, segundo os parentes, havia se preparado para aquele momento por dois meses.

De acordo com a família, ela já havia trabalhado em outros garimpos, inclusive na Guiana Francesa — mas nas outras vezes seguiu por caminhos terrestres.

Maria da Conceição queria juntar dinheiro no garimpo para construir quitinetes - ARQUIVO PESSOAL - ARQUIVO PESSOAL
Maria da Conceição queria juntar dinheiro no garimpo para construir quitinetes
Imagem: ARQUIVO PESSOAL

"Era a primeira vez que ela faria a travessia pelo mar", diz a contabilista Ana Clara Silva, uma das filhas da mulher.

Os familiares relatam que Maria queria trabalhar como cozinheira no garimpo e também planejava vender mercadorias, como roupas e cosméticos, na região.

O objetivo dela, que morava em Boa Vista (RR), era conseguir dinheiro para construir quitinetes. "Essa seria a aposentadoria da minha mãe", afirma Ana Clara.

Na mesma embarcação estavam Carlos Almeida, de 22 anos, e Karine Oliveira, de 18. O casal sonhava em comprar o primeiro imóvel. Eles moravam em uma casa de um parente, em Turilândia, no Maranhão, e queriam conquistar uma residência própria.

Os familiares contam que Carlos pediu R$ 2 mil a um tio e disse que iria para a Guiana Francesa. Ele não tinha experiência com garimpo, mas, segundo os parentes, a companheira dele tinha familiares que já haviam trabalhado nessa área.

O casal seguiu para a Guiana Francesa junto com a irmã dela, Jéssica, de 22 anos, e a mãe, Jeane, de 43.

"Eles acreditavam que lá (na Guiana Francesa) ganhariam muito bem. Foram iludidos e largaram tudo aqui. A gente ficou sabendo só no dia em que eles embarcaram que estavam indo pra lá. Nos dias seguintes, começou um boato sobre o acidente e a família começou a se desesperar, mas a gente só soube mesmo que tinha acontecido depois de oito dias", diz a esteticista Ivanilde Almeida, tia de Carlos.

Os sobreviventes

Segundo a delegada, o barco aportou em uma ilha no meio do caminho, porque o mar estava revolto durante a viagem.

"Eles seguiram viagem e, chegando perto de Caiena, o mar estava mais agitado ainda. E aí, pela questão de estar pesada a canoa, uma onda forte fez com que ela afundasse", conta a delegada.

Ela conta que não havia coletes para todos os passageiros. "Algumas pessoas se agarraram a mercadorias que flutuavam e foram levadas pelo mar", afirma.

A delegada diz que três passageiros conseguiram nadar até uma ilha deserta. Lá, "sobreviveram como náufragos", afirma ela, e construíram uma jangada para tentar chegar ao continente.

Dois partiram na embarcação improvisada e conseguiram alcançar Caiena, onde pediram ajuda para resgatar o passageiro que havia ficado na ilha.

Os três, que não tiveram os nomes revelados, prestaram depoimento à polícia da Guiana Francesa e foram soltos.

Outra passageira agarrou uma boia e passou horas à deriva até ser localizada por um barco de recreio num canal de acesso ao porto de Kourou, a cerca de 60 km de Caiena.

Ela foi deportada para o Brasil e depôs à Polícia Federal. Em um áudio compartilhado nas redes sociais, que uma fonte confirmou à reportagem que foi gravado pela sobrevivente, a mulher relatou momentos de pânico.

Segundo ela, começou a entrar muita água no barco durante a noite, até que ocorreu o naufrágio.

A sobrevivente disse ter passado dias em alto-mar. Ela contou que só conseguia enxergar uma multidão de água e não via nenhum sinal de terra nas proximidades.

Ela relatou que sobreviveu por causa do colete que usava no momento. Segundo a mulher, a maioria estava sem o item de segurança na embarcação porque havia poucas unidades.

A sobrevivente comentou que, a princípio, ficou um período com duas outras mulheres, uma delas era Maria da Conceição, que também estava na embarcação. As três estavam com objetos flutuantes, segundo a sobrevivente, e se apoiavam nisso para não se afogar.

Em determinado momento enquanto as três estavam juntas, conforme relato da sobrevivente a conhecidos, as ondas se intensificaram, as outras duas mulheres foram levadas para uma parte e a sobrevivente foi para outra.

Sozinha, a sobrevivente diz ter passado mais um período em alto-mar, agarrada a uma boia. Ela relatou que gritava por socorro para que alguém a localizasse. Segundo ela, uma lancha com franceses a localizou e a resgatou.

Em nota, autoridades guianesas citam o caso dessa sobrevivente ao relatar que avistaram "uma mulher agarrada a uma boia" dias após o naufrágio.

As outras duas mulheres que estavam junto com ela continuam desaparecidas.

"A sobrevivente me disse que quando subiu na embarcação (após ser resgatada) falou que sabia que tinha mais sobreviventes naquela região, mas não sei o motivo de não terem procurado mais gente", diz Ana Clara, filha de Maria da Conceição.

"Acho que houve um grande descaso tanto da Guiana Francesa quanto do lado do Brasil", acrescenta Ana. Ela e os parentes acreditam que Maria poderia ser encontrada nas proximidades se fizessem buscas por ela logo que localizaram a sobrevivente.

À espera de respostas

Os familiares dos ocupantes do barco vivem dias de angústia e desespero por informações sobre eles. Eles se reuniram em um grupo de WhatsApp em que relatam as dificuldades para ter respostas de autoridades francesas e cobram apoio de entidades brasileiras nas buscas.

Parentes de desaparecidos foram ao Oiapoque em busca de apoio para que possam fazer buscas marítimas na região. Porém, não conseguiram autorização.

"Nós, familiares, estamos pedindo ajuda para o governo francês e também para o governo brasileiro. Não podemos continuar assim sem respostas. Mesmo que eles tenham tentado entrar de forma irregular, a gente quer saber o que realmente aconteceu", afirma Ivanilde, que não teve nenhuma informação a respeito do sobrinho, da esposa dele ou das parentes dela que estavam no barco.

"A cada dia que passa a gente chora mais e mais e não tem quem nos acuda. Não deixam a gente fazer buscas nas ilhas da região, não nos autorizam a fazer nada. Eu fico nesse impasse, ligo para todos os cantos e ninguém faz nada", assevera Ana Clara, filha de Maria da Conceição.

"Apesar de essas pessoas estarem ali de maneira clandestina, não deixam de ser brasileiras. O governo brasileiro não faz nada. Já são vários dias sem respostas e ninguém faz nada. E segundo as informações, (os guianeses) só fizeram dois dias de buscas no mar e ficou por isso mesmo", acrescenta Ana Clara.

Segundo as autoridades guianesas, foram feitas buscas por náufragos em 31 de agosto e 1º de setembro. Mas não há detalhes se foram feitos novos procedimentos para tentar localizar os ocupantes da embarcação posteriormente.

Em nota, as autoridades locais afirmam que o Ministério Público de Caiena abriu um inquérito para apurar o caso.

Até o momento, há a confirmação de que, além dos sobreviventes, foram encontrados três corpos que estavam em decomposição e ainda não foram identificados. Foram colhidos materiais genéticos de familiares dos ocupantes da embarcação para descobrir as identidades das vítimas.

O governo brasileiro justifica que não faz buscas porque o naufrágio foi em território francês.

Em nota à BBC, o Ministério das Relações Exteriores diz que, por meio de seu consulado em Caiena, acompanha o episódio "com atenção e tem mantido coordenação com as autoridades locais sobre o incidente".

"A rede consular do Itamaraty está à disposição para prestar toda a assistência cabível, respeitando-se os tratados internacionais vigentes e a legislação local."

Segundo estimativa do ministério, 72,3 mil brasileiros vivem na Guiana Francesa, que tem cerca de 294 mil habitantes.

Metade dos brasileiros que vivem no território vizinho trabalham em garimpos, enquanto a outra metade se dedica a serviços em cidades, como carpintaria, mecânica e construção, diz o professor Manoel de Jesus de Souza, que estuda o tema.

"Todos que emigram para a Guiana Francesa têm o sonho de conseguir juntar um bom dinheiro, fazer um investimento no Brasil e mudar de vida", ele diz. Como a moeda do território é o euro, a migração tende a crescer em momentos de desvalorização do real, como o atual.

Para Souza, o combate a acidentes nos deslocamentos exige que "o estado brasileiro esteja mais presente na região, fiscalizando mais, para que a ponte (que liga o que liga o Oiapoque à Guiana Francesa, inaugurada em 2017) sirva como um modelo de integração e não só um elefante branco no meio da floresta amazônica".

"Enquanto dificultarem a entrada de brasileiros, as saídas arriscadas serão constantes", afirma.