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Os filhos do Estado Islâmico em campo de detenção na Síria: 'Um desastre com o qual não conseguimos lidar'

O acampamento abriga cerca de 60 mil pessoas, incluindo 2,5 mil famílias de combatentes estrangeiros do Estado Islâmico - Jewan Abdi
O acampamento abriga cerca de 60 mil pessoas, incluindo 2,5 mil famílias de combatentes estrangeiros do Estado Islâmico Imagem: Jewan Abdi

Poonam Taneja - BBC News

17/10/2021 08h32

O acampamento de al-Hol é caótico, desesperador e perigoso.

É o lar de mulheres e filhos de combatentes estrangeiros do grupo extremista autodenonimado Estado Islâmico — uma cidade de tendas, famílias amontoadas, cercadas por guardas armados, torres de vigilância e cercas de arame farpado.

O extenso acampamento no deserto fica a quatro horas de carro de al-Malikyah, passando pela cidade de Qamishli, próximo à fronteira com a Turquia, no nordeste da Síria.

Lá dentro, as mulheres se vestem de preto e usam niqab — véu que cobre o rosto com uma abertura para os olhos, usado por algumas muçulmanas. Algumas são indiferentes, enquanto outras são abertamente hostis.

Em um canto, perto da pequena mercearia de legumes e verduras, se protegendo do sol escaldante, está um grupo de mulheres dispostas a conversar. Elas são originalmente do leste europeu.

A reportagem da BBC pergunta a elas como chegaram aqui, mas elas revelam pouco, culpando os maridos pela decisão de viajar milhares de quilômetros para se juntar ao Estado Islâmico e viver sob um regime que torturou, assassinou e escravizou milhares de pessoas. Seu único crime, elas insistem, foi se apaixonar pelo homem errado.

É um enredo conhecido entre as esposas de militantes do grupo extremista, que buscam se dissociar de um regime que era claro sobre sua brutalidade e objetivos. Seus maridos estão mortos, presos ou desaparecidos — e elas agora estão presas na cidade com seus filhos.

Cerca de 60 mil pessoas são mantidas no local, incluindo 2,5 mil famílias de combatentes estrangeiros do Estado Islâmico. Muitas vivem no acampamento desde a derrota do grupo jihadista em Baghuz, em 2019.

As mulheres falam com cautela, temendo atrair algum tipo de atenção que possa ter graves consequências — até mesmo fatais. Elas não estão preocupadas com os guardas, mas com as outras mulheres — as extremistas que ainda impõem as regras do Estado Islâmico dentro do acampamento. Nas primeiras horas da manhã em que a reportagem da BBC estava no local, uma mulher foi encontrada assassinada.

Assassinatos diários

A violência e a radicalização no campo são um grande problema para as Forças Democráticas Sírias, lideradas pelos curdos e responsáveis por administrar o acampamento.

Abdulkarim Omar, ministro das Relações Exteriores da administração liderada pelos curdos no nordeste da Síria, admite que, em al-Hol, o Estado Islâmico ainda domina. Segundo ele, as mulheres extremistas são responsáveis por grande parte da violência.

"Há assassinatos diários, estão queimando tendas quando as pessoas não seguem a ideologia do Estado Islâmico", diz ele.

"E estão transmitindo essas visões radicais para os filhos."

E há crianças por todos os lugares — elas foram levadas da Ásia, África e Europa para a Síria pelos pais para viver sob o regime do Estado Islâmico.

Há pouco com que se ocupar durante o dia no acampamento. Algumas crianças mais novas atiram pedras para a reportagem, enquanto dirigimos pelo setor estrangeiro do acampamento. O vidro de uma das janelas do passageiro quebra, e os guardas que estão no carro praticamente não se abalam. Isto é normal.

Outras crianças são completamente passivas, olhando para o vazio enquanto se sentam do lado de fora de suas tendas. A maioria viveu horrores inimagináveis, constantemente em fuga enquanto o Estado Islâmico tentava desesperadamente defender seus territórios no Iraque e na Síria.

Muitas não conheceram nada além da guerra e nunca foram à escola.

Algumas apresentam ferimentos visíveis, como um menino com uma perna amputada atravessando o terreno irregular e empoeirado. Todos foram expostos a traumas e perdas, e a maioria das crianças não tem pelo menos um dos pais.

Para lidar com a violência crescente no acampamento, há varreduras de segurança regulares. E isso não é tudo.

Os meninos mais velhos também são vistos como uma ameaça potencial. Quando chegam à adolescência, são transferidos para centros de detenção de segurança maior, longe de suas famílias.

"Quando atingem uma certa idade, são um perigo para si mesmos e para os outros, por isso não temos escolha a não ser construir centros de reabilitação para essas crianças", diz Omar.

Ele afirma que eles mantêm contato com as mães por meio do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV).

'Cada dia ele fica mais velho'

Ao norte de al-Hol, fica Roj, um acampamento menor que também abriga esposas e filhos do Estado Islâmico. A violência ali é menos frequente. É onde moram muitas das mulheres britânicas de combatentes do Estado Islâmico.

O acampamento é dividido por cercas de arame. A reportagem conversou com um grupo de mulheres da ilha caribenha de Trinidad e Tobago, que teve uma das maiores taxas de recrutamento para o Estado Islâmico no hemisfério ocidental.

Uma delas tem um filho de 10 anos. Ela levou os filhos para viver sob o regime do Estado Islâmico e, depois que seu marido foi morto, eles permaneceram sob o regime até o fim. Ela ouviu falar de meninos mais velhos sendo separados da família — e agora está com medo de que isso possa acontecer com seu filho.

Quanto mais ele cresce, mais ela se preocupa. "Cada dia ele fica mais velho, cada dia que passa. Acho que talvez um dia, venham aqui e o levem", afirma.

Perto dali, o filho dela joga bola com o irmão e a irmã mais novos. O pai deles foi morto em um ataque aéreo. Ele conta à BBC que sentiria falta da mãe se fosse afastado dela.

O saneamento é simples, há banheiros e cabines com chuveiro ao ar livre — e a água potável é compartilhada de tanques, algo de que todas as crianças reclamam.

Há um pequeno souk — ou mercado — no acampamento, que vende brinquedos, comida e roupas.

Todos os meses, as famílias recebem pacotes de alimentos, e roupas são fornecidas para as crianças. Algumas vivem em unidades familiares mistas. Sob o Estado Islâmico, algumas mulheres dividiam o marido, e esses laços perduraram enquanto elas compartilhavam o cuidado dos filhos e as tarefas domésticas.

Destruição, bombardeio, guerra

Muitas crianças frequentam uma escola improvisada administrada pela ONG Save the Children.

"Ouvimos muitas histórias, e nenhuma dessas histórias é positiva, infelizmente, mas nossa esperança é que eles possam ir para casa e viver uma infância normal, serem saudáveis e estarem seguros", diz Sara Rashdan, do grupo de resposta na Síria.

"Vimos muitas mudanças de comportamento. Eles estavam desenhando imagens de destruição, bombardeio e guerra... Mas agora vemos que estão desenhando imagens mais positivas de felicidade, flores, casas."

No entanto, não está claro como essas crianças vão sair dali ou o que o futuro lhes reserva.

Alguns países ocidentais veem as esposas de combatentes estrangeiros do Estado Islâmico como uma ameaça, algo que muitas delas negam.

Ainda assim, há uma relutância entre elas em discutir as vítimas do Estado Islâmico — as milhares de mulheres yazidi que foram escravizadas pelo grupo, ou os supostos adversários do Estado Islâmico, aqueles que eles consideravam hereges, que foram assassinados ou mortos lutando contra o grupo.

É comum as mulheres dizerem que não viram nenhuma propaganda violenta do Estado Islâmico. Apesar de viverem no "califado", muitas afirmam não terem tido conhecimento de decapitações, massacres e genocídios cometidos pelo grupo.

Esse é um discurso comum entre aquelas que se juntaram ao Estado Islâmico e, na maioria das vezes, não é um argumento que se sustente após uma verificação.

Elas estão desconectadas do mundo exterior e poucas entendem como são vistas em seus países de origem.

Alguns países europeus como Suécia, Alemanha e Bélgica estão repatriando algumas das crianças e suas mães.

Mas, com a situação nos campos se deteriorando, as autoridades curdas estão fazendo um apelo para que mais países levem seus cidadãos de volta.

"É um problema internacional, mas a comunidade internacional não está assumindo seus deveres e responsabilidades em relação a isso", diz Omar.

"Se continuar assim, enfrentaremos um desastre com o qual não somos capazes de lidar."