Como seria o mundo se outras espécies humanas tivessem sobrevivido?
PERGUNTA DO LEITOR: "Agora sabemos pela ciência evolutiva que a humanidade existe de uma forma ou de outra há cerca de 2 milhões de anos ou mais. O Homo sapiens é relativamente novo na vizinhança. Também havia muitas outras espécies humanas, algumas com as quais procriamos. A pergunta é então inevitável — quando podemos reivindicar que "viramos pessoas" na longa história da evolução? Os chimpanzés são pessoas? Os australopitecíneos tinham uma vida após a morte? Quais são as implicações para como pensamos sobre direitos e religião?", enviada por Anthony A. MacIsaac, 26 anos, Paris, França.
Em nossas mitologias, muitas vezes há um momento singular em que nos tornamos "humanos".
Eva colheu o fruto da árvore do conhecimento e ganhou consciência do bem e do mal. Prometeu criou o homem a partir do barro e deu a ele o fogo.
Mas na história da origem moderna, a evolução, não há um momento decisivo da criação.
Em vez disso, os humanos surgiram gradualmente, geração após geração, a partir de espécies anteriores.
Assim como acontece com qualquer outra adaptação complexa — uma asa de pássaro, uma cauda de baleia, nossos próprios dedos —, nossa humanidade evoluiu passo a passo, ao longo de milhões de anos.
Mutações surgiram em nosso DNA, se espalharam pela população, e nossos ancestrais lentamente se tornaram algo mais parecido conosco — até que, finalmente, nós aparecemos.
As pessoas são animais, mas somos diferentes dos outros animais. Temos linguagens complexas que nos permitem articular e comunicar ideias.
Somos criativos: fazemos arte, música, ferramentas. Nossa imaginação nos permite imaginar mundos que já existiram, sonhar mundos que ainda podem existir e reordenar o mundo externo de acordo com esses pensamentos.
Nossas vidas sociais são redes complexas de famílias, amigos e tribos, unidas por um senso de responsabilidade uns para com os outros.
Também temos consciência de nós mesmos e de nosso universo: senciência, sapiência, consciência, seja lá como se chama.
E, ainda assim, a distinção entre nós e os outros animais é, provavelmente, artificial. Os animais são mais parecidos com os humanos do que podemos pensar — ou gostamos de pensar.
Quase todos os comportamentos que antes considerávamos exclusivamente nossos são vistos em animais, mesmo que sejam menos desenvolvidos.
Isso é especialmente verdadeiro para os grandes símios. Os chimpanzés, por exemplo, possuem comunicação verbal e gestual simples.
Eles fazem ferramentas rudimentares, até mesmo armas, e grupos diferentes têm diferentes conjuntos de ferramentas — culturas distintas.
Os chimpanzés também têm vidas sociais complexas e cooperam entre si.
Como Darwin observou em A Descendência do Homem, quase tudo de estranho no Homo sapiens — emoção, cognição, linguagem, ferramentas, sociedade — existe, de alguma forma primitiva, em outros animais.
Somos diferentes, mas menos diferentes do que pensamos.
E no passado, algumas espécies eram muito mais parecidas conosco do que outros primatas — ardipithecus, australopitecos, homo erectus e neandertais.
O Homo sapiens é o único sobrevivente de um grupo outrora diverso de humanos e primatas semelhantes aos humanos, os hominídeos, que inclui cerca de 20 espécies conhecidas e provavelmente dezenas de espécies desconhecidas.
A extinção desses outros hominídeos acabou com todas as espécies intermediárias entre nós e os outros primatas, dando a impressão de que algum vasto e intransponível abismo nos separa do resto da vida na Terra.
Mas a divisão seria muito menos clara se essas espécies ainda existissem.
O que parece uma linha divisória nítida e clara é, na verdade, um artefato da extinção.
A descoberta dessas espécies extintas agora borra essa linha divisória novamente e mostra como a distância entre nós e outros animais foi cruzada — gradualmente, ao longo dos milênios.
A evolução da humanidade
Nossa linhagem provavelmente se separou dos chimpanzés há cerca de 6 milhões de anos. Esses primeiros hominídeos, membros da linhagem humana, dificilmente se pareceriam com os humanos, no entanto.
Nos primeiros milhões de anos, a evolução dos hominídeos foi lenta.
A primeira grande mudança foi andar ereto, o que permitiu que os hominídeos se afastassem das florestas em direção a campos e matas mais abertas.
Mas se eles caminhavam como nós, nada mais sugere que os primeiros hominídeos eram mais humanos do que chimpanzés ou gorilas.
Os ardipithecus, o hominídeo mais antigo conhecido, tinham um cérebro ligeiramente menor que o de um chimpanzé, e não há evidências de que usassem ferramentas.
No próximo milhão de anos, o australopitecos apareceu. Os australopitecos tinham um cérebro ligeiramente maior — maior que o de um chimpanzé, mas ainda menor que o de um gorila.
Eles faziam ferramentas um pouco mais sofisticadas do que os chimpanzés, usando pedras afiadas para abater animais.
Em seguida, veio o Homo habilis. Pela primeira vez, o tamanho do cérebro dos hominídeos excedeu o de outros símios.
As ferramentas — lascas de pedra, pedras que servem de martelo e "cortadores" — se tornaram muito mais complexas.
Depois disso, cerca de 2 milhões de anos atrás, a evolução humana se acelerou, por razões que ainda não entendemos.
Cérebros grandes
Neste momento, apareceu o Homo erectus. Erectus era mais alto, mais parecido conosco em estatura e tinha um cérebro grande — várias vezes maior que o cérebro de um chimpanzé e até dois terços do tamanho do nosso.
Eles fabricavam ferramentas sofisticadas, como bifaces de pedra. Este foi um grande avanço tecnológico.
Os bifaces precisavam de habilidade e planejamento para serem criados, e você provavelmente precisava aprender como fazer um.
Pode ter sido uma meta-ferramenta — usada para moldar outras ferramentas, como lanças e bastões de escavação.
Como nós, o Homo erectus tinha dentes pequenos. Isso sugere uma mudança da alimentação baseada em vegetais para comer mais carne, provavelmente de caça.
É aqui que nossa evolução parece acelerar. O Erectus de cérebro grande logo deu origem a espécies de cérebros ainda maiores.
Estes hominídeos altamente inteligentes se espalharam pela África e pela Eurásia, evoluindo para neandertais, denisovanos, Homo rhodesiensis e o primitivo Homo sapiens.
A tecnologia se tornou muito mais avançada — surgiram lanças com pontas de pedra e a fabricação de fogo.
Objetos sem funcionalidade clara, como joias e arte, também apareceram no último meio milhão de anos.
Algumas dessas espécies eram surpreendentemente parecidas conosco em seus esqueletos e em seu DNA.
Os Homo neanderthalensis, os neandertais, tinham cérebros que se aproximavam em tamanho do nosso e desenvolveram cérebros ainda maiores com o tempo, até que os últimos neandertais tivessem capacidades cranianas comparáveis
Eles podem ter pensado sobre si mesmos, até mesmo falado de si mesmos, como humanos.
O registro arqueológico do neandertal mostra um comportamento exclusivamente humano, sugerindo uma mente semelhante à nossa.
Os neandertais eram caçadores hábeis e versáteis, explorando de tudo, desde coelhos a rinocerontes e mamutes peludos.
Eles fizeram ferramentas sofisticadas, como lanças de arremesso com pontas de pedra. Criaram joias a partir de conchas, dentes de animais e garras de águia, e fizeram arte em cavernas.
E os ouvidos de neandertal eram, como os nossos, adaptados para ouvir as sutilezas da fala. Sabemos que enterraram seus mortos e provavelmente choraram por eles.
Há muita coisa sobre os neandertais que não sabemos — e nunca vamos saber.
Mas se eles eram tão parecidos conosco em seus esqueletos e comportamento, é razoável supor que eles podem ter sido como nós de outras maneiras que não deixaram registro — que cantavam e dançavam, que temiam espíritos e adoravam deuses, que se maravilhavam com as estrelas, contavam histórias, riam com amigos e amavam seus filhos.
Na medida em que os neandertais eram como nós, eles deviam ser capazes de atos de grande bondade e empatia, mas também de crueldade, violência e falsidade.
Muito menos se sabe sobre outras espécies, como os denisovanos, os Homo rhodesiensis e os sapiens extintos, mas é razoável supor, por seus grandes cérebros e crânios de aparência humana, que eles também eram muito parecidos conosco.
Amor e guerra
Admito que isso soa especulação, mas por um detalhe. O DNA de neandertais, denisovanos e outros hominídeos é encontrado em nós. Nós os conhecemos e tivemos filhos juntos.
Isso diz muito sobre quão humanos eles eram. Não é impossível que o Homo sapiens tenha feito mulheres de neandertal cativas, ou vice-versa. Mas para os genes neandertais entrarem em nossas populações, tivemos que não apenas acasalar, mas criar filhos com sucesso, que cresceram para criar seus próprios filhos.
Isso é mais provável de acontecer se esses pares resultam de cruzamentos voluntários.
A mistura de genes também exigia que seus descendentes híbridos fossem aceitos em seus grupos — para serem tratados totalmente como humanos.
Esses argumentos valem não apenas para os neandertais, eu diria, mas para outras espécies com as quais procriamos, incluindo denisovanos e hominídeos desconhecidos na África.
O que não quer dizer que os encontros entre nossas espécies ocorreram sem preconceitos ou foram inteiramente pacíficos.
Provavelmente fomos os responsáveis deve ter havido momentos em que superamos nossas diferenças para encontrar uma humanidade compartilhada.
Por fim, é revelador que embora tenhamos substituído esses outros hominídeos, isso levou tempo.
A extinção de neandertais, denisovanos e outras espécies levou centenas de milhares de anos.
Se os neandertais e denisovanos fossem apenas brutos estúpidos que emitiam grunhidos, sem linguagem ou pensamento complexo, seria impossível que eles pudessem manter os humanos modernos à distância por tanto tempo.
A vantagem humana
Por que, se eles eram tão parecidos conosco, nós os substituímos? Não está claro, o que sugere que a diferença era algo que não deixa marcas claras em fósseis ou ferramentas de pedra.
Talvez um lampejo de criatividade — um jeito com as palavras, um talento especial para ferramentas, habilidades sociais — tenha nos dado uma vantagem.
Qualquer que fosse a diferença, era sutil, ou não teríamos demorado tanto para sair vitoriosos.
Embora não saibamos exatamente quais eram essas diferenças, nosso formato distinto de crânio pode oferecer uma pista.
Os neandertais tinham crânios alongados, com enormes protuberâncias nas sobrancelhas. Os humanos têm um crânio bulboso, em forma de bola de futebol, e não apresentam protuberâncias nas sobrancelhas.
Curiosamente, a peculiar cabeça redonda e lisa do Homo sapiens adulto é vista em jovens neandertais — e até em bebês símios.
Da mesma forma, crânios jovens de animais selvagens são encontrados em animais domesticados, como cães: o crânio de um cachorro adulto se assemelha ao de um filhote de lobo.
Essas semelhanças não são apenas superficiais. Os cães se comportam como lobos jovens — [menos agressivos] e mais brincalhões.
Minha suspeita, sobretudo um palpite, é que a vantagem do Homo sapiens pode não ser necessariamente a inteligência bruta, mas diferenças de atitude.
Assim como os cães, podemos manter comportamentos juvenis, coisas como brincadeiras, abertura para conhecer novas pessoas, menor agressividade, mais criatividade e curiosidade.
Isso, por sua vez, pode ter nos ajudado a tornar nossas sociedades maiores, mais complexas, colaborativas, abertas e inovadoras — que então superaram as deles.
Mas o que é isso?
Até agora, evitei uma questão importante, provavelmente a mais importante.
É muito bom discutir como nossa humanidade evoluiu — mas o que é a humanidade? Como podemos estudá-la e reconhecê-la, sem defini-la?
As pessoas tendem a presumir que existe algo que nos torna fundamentalmente diferentes dos outros animais.
A maioria das pessoas, por exemplo, tenderia a pensar que não há problema em vender, cozinhar ou comer uma vaca, mas não em fazer o mesmo com o açougueiro. Isso seria desumano.
Como sociedade, toleramos exibir chimpanzés e gorilas em jaulas, mas ficaríamos desconfortáveis
Da mesma forma, podemos ir a uma loja e comprar um filhote de gato ou cachorro, mas não um bebê.
As regras são diferentes para nós e para eles. Mesmo ativistas obstinados pelos direitos dos animais defendem os direitos dos animais para os animais, e não os direitos humanos.
Ninguém está propondo dar aos símios o direito de votar ou se candidatar.
Nós inerentemente nos vemos como ocupando um plano moral e espiritual diferente.
Podemos enterrar nosso animal de estimação morto, mas não esperamos que o fantasma do cachorro nos assombre ou encontrar nosso gato à espera no céu.
E, ainda assim, é difícil encontrar evidências para esse tipo de diferença fundamental.
A palavra humanidade implica em cuidar e ter compaixão uns pelos outros, mas isso é provavelmente uma qualidade mamífera, não humana.
Uma gata cuida de seus filhotes, e um cachorro ama seu dono, talvez mais do que qualquer ser humano.
As baleias assassinas e os elefantes formam laços familiares para toda a vida. Enquanto as orcas choram por seus filhotes mortos, elefantes foram vistos visitando os restos mortais de seus companheiros.
A vida emocional e os relacionamentos não são exclusividade nossa.
Talvez seja a consciência que nos diferencia. Mas cães e gatos certamente parecem estar cientes de nós — eles nos reconhecem como indivíduos, assim como nós os reconhecemos.
Eles nos entendem bem o suficiente para saber como fazer com que dêmos comida a eles ou os deixemos sair pela porta — ou até mesmo saber quando tivemos um dia ruim e precisamos de companhia.
Se isso não é consciência, o que é?
Podemos sugerir que nossos cérebros grandes nos diferenciam, mas isso nos torna humanos?
Os golfinhos-nariz-de-garrafa têm cérebros um pouco maiores do que o nosso. Os cérebros dos elefantes são três vezes maiores que os nossos; das orcas, quatro vezes; e das cachalotes, cinco vezes.
O tamanho do cérebro também varia em humanos. Albert Einstein tinha um cérebro relativamente pequeno — menor do que em média o neandertal, denisovano ou Homo rhodesiensis — ele era menos humano?
Algo diferente do tamanho do cérebro deve nos tornar humanos — ou talvez haja mais coisas acontecendo na mente de outros animais, incluindo hominídeos extintos, do que pensamos.
Poderíamos definir a humanidade em termos de habilidades cognitivas superiores — arte, matemática, música, linguagem.
Isso cria um problema curioso porque os humanos variam em quão bem fazem todas essas coisas.
Tenho menos inclinação à matemática que Stephen Hawking, sou menos literário que Jane Austen, menos criativo que Steve Jobs, menos musical que Taylor Swift, menos articulado que Martin Luther King. Nesses aspectos, sou menos humano do que eles?
Se não podemos nem sequer defini-la, como podemos realmente dizer onde começa e onde termina — ou que somos únicos?
Por que insistimos em tratar outras espécies como inerentemente inferiores, se não temos certeza do que faz de nós, nós?
Tampouco nós somos necessariamente o ponto final lógico da evolução humana. Éramos uma das muitas espécies de hominídeos e, sim, vencemos.
Mas é possível imaginar outro curso evolutivo, uma sequência diferente de mutações e eventos históricos levando arqueólogos neandertais a estudar nossos estranhos crânios em forma de bolha, se perguntando o quão humanos éramos.
A natureza da evolução significa que os seres vivos não se enquadram em categorias bem definidas.
As espécies mudam gradualmente de uma para a outra, e cada indivíduo em uma espécie é ligeiramente diferente — isso torna a mudança evolutiva possível.
Mas isso torna difícil definir a humanidade. Somos tanto diferentes dos outros animais devido à seleção natural, quanto somos semelhantes a eles por causa da ancestralidade compartilhada; a mesma, mas diferente.
E nós, humanos, somos parecidos e diferentes uns dos outros — unidos por uma ancestralidade comum com outros Homo sapiens, diferentes devido à evolução e à combinação única de genes que herdamos de nossas famílias ou até mesmo de outras espécies, como neandertais e denisovanos.
É difícil classificar os seres vivos em categorias estritas, porque a evolução muda constantemente as coisas, criando diversas espécies e diversidade dentro das espécies.
E o que é diversidade. É verdade que, de certa forma, nossa espécie não é tão diversa.
O Homo sapiens apresenta menos diversidade genética do que uma cepa bacteriana média; nossos corpos apresentam menos variação de forma do que esponjas, rosas ou carvalhos.
Mas em nosso comportamento, a humanidade é extremamente diversa.
Somos caçadores, fazendeiros, matemáticos, soldados, exploradores, carpinteiros, criminosos, artistas.
Há tantas maneiras diferentes de ser humano, tantos aspectos diferentes da condição humana, e cada um de nós tem que definir e descobrir o que significa ser humano.
Ironicamente, é essa incapacidade de definir a humanidade que é uma de nossas características mais humanas.
* Nicholas R. Longrich é professor de Paleontologia e Biologia Evolutiva na Universidade de Bath, no Reino Unido.
Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado aqui sob uma licença Creative Commons. Leia aqui a versão original (em inglês).
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