Mais do que balões: como espionagem chinesa testa novos campos na disputa global com EUA
A saga do balão chinês que entrou no espaço aéreo dos Estados Unidos entre o fim de janeiro e o começo de fevereiro evidenciou a escalada da tensão entre as duas potências e também jogou luz no projeto de Pequim de sofisticar cada vez mais seus aparatos militares e de espionagem.
Apesar de Washington ter descartado que outros três objetos voadores avistados entre 10 e 12 de fevereiro apresentassem sinais de "esforços de coleta de inteligência externa", as fricções entre representantes chineses e norte-americanos não cessaram.
No último sábado (18/2), o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, se encontrou na Alemanha com Wang Yi, chefe da diplomacia chinesa, mas declarações dadas por ambos não serviram para baixar a fervura.
Blinken disse que não será tolerada "nenhuma violação de nossa soberania" e que "este ato irresponsável nunca deve ocorrer de novo".
Wang, por sua vez, afirmou que o episódio é uma "farsa política fabricada pelos EUA" e que são "usados todos os meios para bloquear e suprimir a China".
Pequim, no entanto, tem se preparado de fato nas últimas décadas para diminuir a distância para Washington em termos de poderio militar e inteligência.
Ao fim da Guerra Fria, na década de 1990, os EUA se posicionaram bem à frente de potenciais rivais.
Mas mesmo nesses tempos em que a disputa pelo poder global arrefeceu com o domínio americano, a espionagem praticada pelos Estados Unidos permaneceu em ação ? e incluiu até nações consideradas "amigas".
Basta lembrar que o Brasil teve a ex-presidente Dilma Rousseff e outros membros do seu governo grampeados pela Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês).
Segundo vazamento do site WikiLeaks, o avião presidencial, residências de diplomatas e até o Banco Central brasileiro foram alvos de escutas por agentes americanos. A revelação causou uma crise diplomática entre Washington e Brasília.
O que ocorre agora é que o desenvolvimento econômico e tecnológico da China, além da consolidação do poder e do projeto do presidente Xi Jinping, despertaram ambições para entrar numa disputa de poder global com os EUA que passa por espionagem e operações militares.
"O objetivo é superar o poder americano, neutralizar o Ocidente e colocar novamente o foco do mundo na China. Ao longo da história, através de uma clássica percepção estratégica chinesa, o país deve estar unido, unificado e no centro do mundo", diz à BBC News Brasil Emmanuel Véron, especialista em China contemporânea pelo Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais (Inalco), da França.
"A diferença em relação à história imperial [chinesa] está nos modelos de governança. É o Partido Comunista que está no poder e seu desejo de expansão é real."
Para Amanda Hsiao, do think tank Crisis Group, "o incidente com o balão demonstra o quão frágil é o relacionamento entre EUA e China e com um pequeno incidente para rapidamente escalar para um evento político que tira dos trilhos qualquer tentativa de estabilizar a relação".
A guerra pela informação
A coleta de informações via objetos voadores como balões seria mais uma fronteira explorada pela inteligência chinesa. Um artigo de março de 2018 veiculado por um jornal patrocinado pelo Exército de Libertação Popular, o braço militar do Partido Comunista Chinês, já apontava a necessidade de investigar as mais diversas camadas atmosféricas por razões de segurança.
"Com o rápido desenvolvimento da alta tecnologia moderna, o espaço de confronto de informações não está mais limitado à terra, ao mar e à baixa altitude. O espaço próximo também se tornou um novo campo de batalha na guerra moderna e um elo importante no sistema de segurança nacional", dizia o artigo.
A publicação acrescentava: "como um elo eficaz que conecte o campo de batalha aeroespacial, os próximos veículos espaciais desempenharão um papel crucial nas futuras operações integradas do espaço aéreo e serão altamente valorizados por mais e mais países, e seu desenvolvimento e aplicação também terão um impacto importante no futuro para estilos de combate."
Mas Pequim disse que o balão abatido no começo de fevereiro pelos EUA tinha propósitos de uso civil, para monitoramento meteorológico, e que adentrou o território norte-americano "completamente por acidente".
Declarou também estar havendo uma reação exagerada por parte de Washington e que a China teria registrado a presença de balões espiões americanos no seu espaço aéreo mais de 10 vezes desde o começo de 2022.
"O caso do balão mostra o quão real é a rivalidade sino-americana e como ela pode ser observada em diversos níveis. Aqui, o interessante é entender que a rivalidade se dá em uma camada superior da atmosfera, ou seja, a estratosfera", diz Véron.
Espionagem industrial
A maior batalha atual, no entanto, está em limitar o acesso à informação em qualquer campo sensível.
Da parte dos Estados Unidos, o governo Joe Biden vem proibindo recentemente a venda de tecnologia americana para companhias chinesas. Há pouco mais de dez dias foi anunciada a inclusão de mais cinco empresas e um instituto de pesquisa da China em uma lista de vetos.
A preocupação é que negócios privados chineses vêm sendo incentivados a trabalhar com mais proximidade e sinergia com os militares desde a ascensão de Xi ao poder. Por sinal, um modelo baseado nas parcerias estabelecidas entre o Pentágono e companhias privadas americanas.
Mesmo com esses canais oficiais e legais agora travados pela Casa Branca, a coleta de informação sensível pode ocorrer por meio de espionagem industrial.
O engenheiro Zheng Xiaoqing, um cidadão americano que trabalhava na General Electric Power, foi preso após codificar e esconder dados sensíveis relacionados ao design e a produção de turbinas de gás e vapor e avaliados em milhões de dólares.
Os dados, que poderiam ser úteis para o desenvolvimento da indústria da aviação, eram enviados para uma pessoa na China. Zheng foi condenado a dois anos de prisão no começo deste ano.
Atualmente, a espionagem industrial chega a outras áreas importantes como o setor farmacêutico, a nanotecnologia e a bioengenharia.
"No geral, todo o espectro da espionagem chinesa está mobilizado: do ciberespaço ao espaço, incluindo equipamento militar em terra ou no mar. Tudo é parte de uma perspectiva de intimidação e pressão", afirma Véron, especialista do Inelco.
O exército de hackers chineses
Outra frente importante desenvolvida nos últimos anos está exatamente no espaço cibernético. Hackers chineses têm empregado táticas ousadas para explorar vulnerabilidades online.
Em depoimento ao Congresso americano no ano passado, Winnona DeSombre, pesquisadora de Harvard, disse que as capacidades da China na área rivalizam ou já superam as dos EUA.
De acordo com DeSombre, o presidente Xi ordenou a partir de 2015 uma mudança de prioridades militares com foco em informação.
Outro participante da audiência congressual sobre segurança nas relações entre EUA e China, o pesquisador Dean Cheng, afirmou que o Exército para a Libertação Popular chinês analisa que "vitória ou derrota em guerras futuras ocorrerão em função da habilidade de explorar informação".
Segundo Cheng, inteligência artificial e machine learning serão aplicados a um grande escopo de operações militares.
"O desenvolvimento sustentado e colocado em prática da tecnologia da informação, incluindo inteligência artificial, big data e computação em nuvem, tudo isso foi combinado para criar 'novas circunstâncias' em operações militares."
Uma pesquisa da empresa de segurança online Mandiant disse que a ação de hackers chineses comprometeu as redes de computadores de ao menos seis Estados americanos entre 2021 e 2022.
A preocupação com as habilidades da China no ciberespaço foi manifestada também em uma inédita declaração conjunta no ano passado dos chefes do FBI, a polícia federal americana, e o MI5, do serviço secreto britânico.
Segundo Christopher Wray, diretor do FBI, o programa chinês de hackers é maior do que todos os similares de grandes potências combinados.
Wray também disse que o desafio lançado pela China é "imenso" e o classificou como "a maior ameaça de longo prazo a economia e segurança nacional" dos Estados Unidos.
O Ministério das Relações Exteriores da China declarou que essas afirmações querem "promover a teoria da ameaça chinesa" e aconselhou "deixar de lado os demônios imaginários".
"A China se tornou em poucos anos o principal tema de reflexão nos círculos políticos, financeiros e estratégicos dos Estados Unidos. Isso não significa que uma guerra vá acontecer amanhã de manhã", diz Véron.
"Entretanto, os Estados Unidos estão atentos à situação na Ásia e a possibilidade de Xi Jinping ordenar um ataque contra Taiwan. Militares americanos e, mais recentemente, o diretor da CIA lembraram que o cenário de guerra é real e pode ocorrer dentro de alguns anos. Isso não é uma simples postura alarmista, mas uma forma de alerta para políticos e para a opinião pública", acrescentou.
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