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"Sucesso para quem?", questiona professor sobre missão da ONU no Haiti

Soldados brasilieros patrulham região no sudeste do Haiti em 2016 - Hector RetamalAFP
Soldados brasilieros patrulham região no sudeste do Haiti em 2016 Imagem: Hector RetamalAFP

Emilly Dulce*

Do Brasil de Fato

07/07/2021 16h10

"Um povo que ousou fazer mais do que resistir", é como o professor de Relações Internacionais Miguel Borba Sá descreve os haitianos. A partir de uma revolução liderada por escravizados, o país conquistou sua independência em 1804. Desde então, o Haiti tem sofrido inúmeros golpes militares e intervenções políticas. Uma delas durou 13 anos (2004-2017) e teve o braço militar comandado pelo exército brasileiro, que enviou 37,5 mil militares ao país caribenho durante o período.

"Em vez de defender os direitos humanos, os soldados da Minustah [a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti] se converteram em violadores: estupros, repressão de manifestações, abuso de autoridade, interferência no processo eleitoral, dentre outros atos inaceitáveis amplamente documentados", argumentava uma das cartas de rechaço à intervenção militar criada em 30 de abril de 2004.

Segundo Borba Sá, as feridas deixadas pela operação continuam abertas. "O que está em curso hoje é um processo de recolonização do Haiti. Mas é difícil de ele ser realizado até o fim, porque é um povo que tem um histórico de luta e também um orgulho muito grande dessas lutas", destaca o professor do Departamento de Defesa e Gestão Estratégica Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Os saldos mais alarmantes da Minustah foram mais de 30 mil mortes em decorrência da cólera — doença jamais registrada no país até então —, mais de 2 mil vítimas de abusos sexuais, entre outras violações de direitos humanos praticadas pela "indústria humanitária", afirma Borba Sá.

Muitos dos primeiros contaminados pela bactéria da cólera morreram em cerca de duas horas. A epidemia assolou o Haiti após um terremoto de magnitude sete, que deixou mais de 200 mil mortos, em janeiro de 2010.

A ONU nunca aceitou a total responsabilidade por isso [a epidemia de cólera]. De forma cínica, ela pediu desculpas por não ter feito o suficiente para ajudar, mas sabia que se aceitasse a responsabilidade poderia, inclusive, ser cobrada judicialmente."
Miguel Borba Sá, professor da UFRJ e da PUC-Rio

O professor também integra a Rede Jubileu Sul, constituída por movimentos sociais, organizações populares e religiosas da América Latina e Caribe, África, Ásia e do Pacífico, responsável pela campanha "Dívida e Reparações para o Haiti e Porto Rico" que questionou a "ilegitimidade da dívida pública de ambos os países e a retirada dos direitos humanos que se aprofundam a partir das ocupações militares".

Em entrevista ao Brasil de Fato, Borba Sá, autor da tese de doutorado "O Haiti no discurso político brasileiro: do Haitianismo à Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah)", explica por que a saída das tropas militares, em 2017, significou o aprofundamento da crise social, política e econômica, que ameaça a soberania haitiana.

Pouco se fala sobre a história dessa nação situada na América Central. Uma breve pesquisa já é o bastante para perceber como, geralmente, o Haiti é retratado nas reportagens: "um dos países mais pobres do mundo", "país mais pobre das Américas".

De fato, o Haiti encabeça rankings dolorosos, mas Borba Sá ressalta que as razões para isso estão diretamente relacionadas com o interesse geopolítico e geoestratégico dos Estados Unidos pela região do Caribe. Apesar do contingente de generais brasileiros no país, quem comandava o batalhão, na capital Porto Príncipe, eram os estadunidenses, como conta o professor.

Na avaliação dos militares brasileiros, no entanto, a Minustah teve êxito absoluto, especialmente na formação dos soldados. Em entrevista ao Jornal Nacional, durante a campanha eleitoral de 2018, o então candidato e hoje presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), definiu a experiência brasileira no Haiti como modelo de Segurança Pública.

Militares que estiveram na linha de frente da Minustah foram convocados por Bolsonaro para integrar cargos importantes na Esplanada dos Ministérios: ao menos quatro deles se tornaram ministros.

Nós, no Haiti, militares do Exército brasileiro, sem o preparo que tem o Policial Militar aqui, resolveu, pacificou o Haiti. Por quê? Nós tínhamos uma forma de engajamento: qualquer elemento com uma arma de guerra, os militares atiravam -- 10, 15, 20, 50 tiros, -- e depois iam ver o que aconteceu. Resolveu o problema rapidamente."
Miguel Borba Sá, professor da UFRJ e da PUC-Rio

"Hoje em dia, a gente vê que — desde a intervenção militar no Rio de Janeiro, há dois anos, quanto na formação do gabinete Bolsonaro — todos esses generais e outros oficiais quando são mencionados, até pela imprensa, antes da patente militar deles, vem sempre algum qualificativo: 'que passou pelo Haiti', 'o general que comandou as tropas no Haiti'. Então, o Brasil ajudou a recredenciar — com a operação desastrada no Haiti — essas forças que hoje estão colocando novamente em risco a própria democracia brasileira", alerta o pesquisador.

*Publicado originalmente em 15 de outubro de 2019 pelo Brasil de Fato