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Um oásis de coexistência pacífica no mundo árabe

Kristen McTighe, de Djerba (ca)

25/05/2016 09h21

Numa região devastada pelo extremismo religioso, a ilha tunisiana de Djerba se revela um exemplo bem-sucedido de integração, com judeus, cristãos e muçulmanos convivendo de forma pacífica

Mezuzás estão pendurados nas portas, enquanto jovens usando quipás se reúnem nas esquinas das ruas de bairros empoeirados. Mulheres com saias longas e véus cobrindo os cabelos passam em frente a açougues kosher.

Aqui neste enclave isolado no meio do mundo muçulmano está Hara Kabira, a maior de duas vizinhanças judaicas no sul da ilha tunisiana de Djerba, onde judeus, cristãos e muçulmanos vivem e trabalham lado a lado pacificamente.

A comunidade tem resistido ao tumulto que abalou a região após a fundação de Israel, em 1948, e às mudanças após os levantes de 2011. Agora, com as atenções centradas na crescente onda de extremismo que tomou conta da região, a comunidade diz que sua intenção é ficar.

"Pela graça de Deus, os judeus podem viver aqui e podemos nos multiplicar", afirma Youssef Oezen, presidente da comunidade judaica de Djerba. A ilha viu sua população judaica - cujas raízes remontam ao exílio da Babilônia em 586 a.C. - cair de 5 mil em 1948 para menos de 700 em meados da década de 1990.

Mas, ao longo das últimas duas décadas, essa população começou novamente a crescer, aos poucos. Hoje, cerca de 1.100 judeus moram na ilha, segundo Oezen. Com a metade deles com menos de 20 anos, vivendo numa comunidade conservadora onde a regra é ter grandes famílias, ele afirma estar firme em sua crença de que esse número vai continuar a crescer.

Uma imagem de tolerância

Sob ao regime do ditador Zine el-Abidine Ben Ali, um autocrata secular que procurou estreitar laços com o Ocidente, o governo fez questão de proteger a comunidade e preservar uma imagem de tolerância. Com suas águas azul-turquesa e praias de areia branca, essa imagem tem sido uma atração turística.

"Nós nos misturamos, respeitamos uns aos outros, essa é a situação normal", diz o muçulmano Madji Barouni, numa joalheira no antigo mercado de Houmt Souk, a maior cidade da ilha, enquanto o proprietário judeu da loja examina o relógio trazido para ser consertado.

Durante o dia, judeus trabalham ao lado de muçulmanos e cristãos como comerciantes em Houmt Souk, vendendo joias de ouro e prata, têxteis e suvenires. "Não há problemas", diz Barouni, no momento em que, ao fundo, se escuta a chamada para orações de uma mesquita nas proximidades.

Desfrutando relações amigáveis e cordiais com outros residentes da ilha, quando terminam seu trabalho a maioria dos judeus volta para casa, mantendo uma vida isolada em sua comunidade. Para os líderes judaicos, essa é uma forma de proteger tradições e resistir à assimilação. Apesar de sua resistência, a comunidade não escapou de todo o tumulto que atingiu a região nas últimas seis décadas.

Em 2002, um caminhão cheio de gás propano atravessou as barreiras na sinagoga El Ghriba e explodiu em frente do lugar sagrado, onde consta que suas fundações foram executadas usando uma pedra carregada por cohens (sacerdotes) do Templo de Salomão. Cerca de duas dezenas de pessoas, principalmente turistas alemães, foram mortas no ataque reivindicado pela Al Qaeda.

Medo de perseguição

Quando os tunisianos se rebelaram, em 2011, para derrubar Ben Ali, e islamistas subiram ao poder nas primeiras eleições livres, mais uma vez surgiu o medo de que os judeus tunisianos sofressem perseguições. Na sequência do levante, diversos cemitérios judaicos teriam sido violados, e foram reportados diversos incidentes contra a comunidade.

Mas, numa de suas primeiras medidas após subir ao poder, Rashid Ghannoushi, o chefe do Nahda, o principal partido islâmico da Tunísia, enviou uma delegação até os judeus em Djerba num esforço para assegurar à comunidade que ela seria protegida.

Hoje, os esforços do governo para proteger os judeus da ilha são visíveis. A polícia está estacionada nas entradas de Hara Kabira para monitorar quem entra e quem sai, e postos de segurança estão espalhados por toda a vizinhança. Esses esforços se revelaram mais importantes do que nunca. Considerado o único êxito da Primavera Árabe, a Tunísia tem sido abalada por um crescente aumento do extremismo nos últimos anos.

Em 2015, extremistas muçulmanos praticaram dois ataques contra turistas ocidentais, um em março no Museu Bardo, em Túnis, e outro em junho no balneário de Sousse, onde foram mortas 38 pessoas, em sua maioria turistas britânicos.

E, em março, combatentes provenientes da Líbia atacaram a cidade fronteiriça de Ben Gardane e iniciaram uma ofensiva sangrenta contra a polícia e o Exército. O ataque, que deixou mais de 50 mortos, aumentou os temores de que um alastramento das atividades do "Estado Islâmico" havia se iniciado a partir da Líbia, onde o grupo conseguira estabelecer posições. Quando os ataques começaram, o acesso à ilha foi imediatamente cortado.

Dor econômica

"Ficamos um pouco amedrontados, isso é normal, mas todo mundo estava com medo, não somente os judeus", relata Nissan Bittan, ourives de origem judaica. "Mas eu acho que as coisas vão melhorar agora."

Como muitos moradores da ilha, a maior preocupação para Bittan é a economia, que tem sofrido com os ataques do ano passado. E com a peregrinação anual à sinagoga de El Ghriba se iniciando - uma época do ano que registra um aumento no turismo com peregrinos judeus vindo de Israel, França e outros países - essas preocupações de segurança poderiam trazer outro grande golpe aos negócios.

Por temores de ataques, a peregrinação foi cancelada em 2011, na sequência do levante que derrubou Bemn Ali. No ano seguinte, as celebrações foram retomadas, e o governo reforçou o controle, mas o número de visitantes permaneceu baixo. Diante da peregrinação deste ano, Israel emitiu um alerta de viagem para a Tunísia, mas, para a maioria dos residentes da ilha, isso não mudou a sensação de segurança.

De volta à joalheira, Avi Bittan é questionado se o extremismo que atacou a região o fez sentir inseguro. "Não, não, nunca. Olhe para as ruas, conhecemos todos aqui", diz o joalheiro. Barouni, por sua vez, garante que ele e outros muçulmanos ali não hesitariam em proteger os vizinhos judeus: "Somos todos tunisianos."