Topo

"Não estou triste por morrer, mas por não poder me vingar"

"O trabalho liberta": o portão de entrada do campo Auschwitz 1, na Polônia  - picture alliance/AP
"O trabalho liberta": o portão de entrada do campo Auschwitz 1, na Polônia Imagem: picture alliance/AP

Dagmar Breitenbach

10/10/2017 10h19

Em 1944, prisioneiro judeu escreveu uma série de textos e os enterrou em Auschwitz. Décadas depois, papéis foram achados e, hoje restaurados quase na íntegra, compõem um dos relatos mais impressionantes do Holocausto.Todos os dias, Marcel Nadjari e outros presos de uma unidade de trabalho conhecida como Sonderkommando (comando especial), no campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, enfrentavam o pior dos horrores.

"Todos aqui sofremos coisas que a mente humana não pode imaginar", afirma Nadjari.

O relato está num texto que ele escreveu secretamente no final de 1944, colocou dentro de uma garrafa térmica envolta numa bolsa de couro e enterrou perto do Crematório 3 do campo, que seria libertado no início de 1945.

O texto, tido como um dos mais impressionantes documentos do Holocausto, foi descoberto por um estudante nos anos 1980 e, após anos de restauração, agora pode ser lido quase na íntegra.

"Debaixo de um jardim, há um porão com dois recintos infinitamente grandes: um deles é usado para tirar as roupas. O outro é uma câmara da morte", relata Nadjari. "As pessoas entram nuas e, quando o espaço está cheio com cerca de três mil pessoas, ele é fechado, e todos são asfixiados com gás."

O prisioneiro grego descreve, entre outras coisas, como os detentos do campo eram enfiados "como sardinhas" na câmara, enquanto os alemães usavam chicotes para apertá-los ainda mais dentro do recinto antes de trancar as portas e abrir os dutos de gás.

"Após meia hora, abríamos as portas e começávamos o nosso trabalho", conta Nadjari. Sua ocupação: levar os cadáveres aos fornos de incineração, onde "um ser humano acaba sendo reduzido a cerca de 640 gramas de cinzas".

O Sonderkommando era um grupo de trabalho em Auschwitz composto por prisioneiros judeus do campo de extermínio. Os detentos eram obrigados a preparar os assassinatos em massa de outros prisioneiros, saquear seus pertences após a gaseificação e transportar os corpos para os fornos. A história é bem contada, por exemplo, no filme húngaro O filho de Saul (2015), vencedor do Oscar de melhor longa estrangeiro.

Os escritos de Nadjari, de raridade e importância histórica, estão agora quase inteiramente legíveis, após terem sido descobertos em condições precárias de conservação. Neste mês, eles foram publicados pela primeira vez em alemão, pelo Instituto de História Contemporânea (IfZ), com sede em Munique.

De acordo com o historiador russo Pavel Polian, a mensagem de Nadjari, é um de nove documentos distintos encontrados enterrados em Auschwitz. O conjunto de textos, escritos por cinco membros do chamado Sonderkommando, "são os documentos mais centrais do Holocausto", afirma o pesquisador.

Três décadas enterrados

Polian pesquisou o texto por dez anos e publicou suas descobertas no livro Scrolls from the ashes (Pergaminhos das cinzas, em tradução livre). Mensagens enterradas como a de Nadjari foram encontradas exclusivamente em Auschwitz, diz o historiador, ma a maioria em fevereiro ou março de 1945, logo depois que o campo foi libertado.

A mensagem de Nadjari foi a última a ser encontrada, e Polian acredita ser altamente improvável que haja outras mensagens de membros dos Sonderkommando ainda enterradas.

Cerca de cem dos quase 2 mil prisioneiros de Auschwitz encarregados de se livrar dos milhares de cadáveres sobreviveram aos horrores do campo de extermínio. Dos cinco que escreveram e enterraram suas mensagens, Nadjari foi o único sobrevivente.

Em 1980, um estudante que fazia escavações na floresta próxima às ruínas do Crematório 3 de Auschwitz-Birkenau desenterrou as notas enroladas dentro da garrafa térmica. Ao contrário das mensagens dos outros prisioneiros, apenas entre 10% e 15% do texto de Nadjari estavam legíveis.

Os papéis, escritos em iídiche, ficaram enterrados em solo úmido por 35 anos no momento da descoberta. Depois, foram encaminhados ao Museu Estatal de Auschwitz-Birkenau, instalado na Polônia.

Em 2013, um jovem russo especialista em TI passou um ano trabalhando no manuscrito borrado, voltando a tornar os contornos das letras visíveis com a ajuda de análise de imagens multiespectrais (usando imagens com diferentes comprimentos de ondas eletromagnéticas).

"Atualmente, conseguimos ler de 80 a 90%", diz Polian, que iniciou o projeto de avaliação do manuscrito. Segundo o historiador, o texto está sendo traduzido para o inglês e para o grego – e as traduções deverão ser publicadas em novembro.

Retorno à Grécia

Nascido em 1917, Marcel Nadjari era um comerciante grego de Tessalônica. Foi deportado para Auschwitz em abril de 1944 e colocado para trabalhar no Sonderkommando.

"Se você ler sobre as coisas que fizemos, vai dizer: 'Como alguém pôde fazer isso, queimar seus companheiros judeus?'", escreveu Nadjari. "Foi o que eu também disse no início, e no que pensei várias vezes".

Após a guerra, Nadjari retornou à Grécia. Em 1951, ele, sua esposa e seu filho emigraram para os Estados Unidos, onde ele trabalhou como alfaiate. Nadjari morreu em Nova York em 1971, aos 54 anos de idade.

Apesar de Nadjari, no período em que morou na Grécia, ter escrito suas memórias, parece que ele nunca contou a ninguém sobre o manuscrito que enterrara em Auschwitz. Nos escritos, mais de uma vez, Nadjari escreveu que ficava tão devastado que pensava em se juntar aos prisioneiros nas câmaras de gás – mas a perspectiva de vingança sempre o impedia de fazê-lo.

Ele é o único dos cinco autores do Sonderkommando que escreveu abertamente sobre vingança. Segundo o historiador russo Polian, é isso que distingue as anotações de Nadjari dos outros.

"Não estou triste por morrer", escreve Nadjari, "mas fico triste por não poder me vingar como eu gostaria."