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"Prisão na Coreia do Norte me tornou mais forte", diz missionário americano

Kenneth Bae (de boné) quando estava preso na Coreia do Norte, em 2014 - Kyodo - 20.jan.2014/Reuters
Kenneth Bae (de boné) quando estava preso na Coreia do Norte, em 2014 Imagem: Kyodo - 20.jan.2014/Reuters

Esther Felden (md)

24/02/2018 11h45

Missionário evangélico americano Kenneth Bae foi submetido a meses de interrogatórios e depois passou dois anos num campo de trabalhos forçados no país. Experiência mudou sua vida."Ninguém pensa mais em você, todos se esqueceram de você, inclusive o seu governo. Você vai ficar 15 anos na Coreia do Norte. E quando tiver cumprido sua sentença e puder voltar para casa, estará com 60 anos."

Todas as semanas Kenneth Bae ouvia essas palavras, sempre aos sábados, quando o promotor responsável por seu caso o visitava. Essas palavras feriam. Era arrasador, conta o missionário evangélico americano: "Eu me desesperava cada vez mais, às vezes ficava deprimido mesmo. Mas minha fé sempre me sustentava."

Em 3 de novembro de 2014, quase exatamente dois anos depois de sua prisão, o promotor se apresentou perante ele pela última vez. "Você ainda tem 13 anos pela frente", disse. No entanto, cinco dias depois Bae foi surpreendentemente libertado, junto com Matthew Todd Miller, outro cidadão dos EUA preso na Coreia do Norte.

O ex-coordenador de inteligência dos EUA James Clapper foi pessoalmente apanhar os dois. Como ocorrido em diversas oportunidades anteriores, foi a visita de um enviado especial dos EUA a Pyongyang que acabou levando à libertação dos prisioneiros. O Departamento de Estado americano assegura que não houve troca de favores.

Meio ano de interrogatórios, 15 anos de sentença

Bae chegou à Coreia do Norte em novembro de 2012. Cidadão americano nascido e crescido na Coreia do Sul, ele ia frequentemente ao país. Há anos morava com sua família na China, onde trabalhava como operador de turismo, organizando viagens à Coreia do Norte. Durante anos, não teve problemas. Mas cometeu um grande erro. "Eu tinha um disco rígido comigo", o qual continha documentos ocidentais sobre o país comunista, relata, em entrevista à DW.

Ele afirma que não pretendia levar consigo o dispositivo de armazenamento eletrônico. "Foi sem querer. Ele estava na minha bagagem sem eu perceber." O disco rígido foi o motivo original para sua detenção na zona econômica especial de Rason, no nordeste do país. "Então, os norte-coreanos também descobriram que eu era missionário, e me acusaram de pretender pregar aos cidadãos e tentar derrubar o governo."

Bae é evangélico, e na Coreia do Norte os cristãos são uma pequena minoria. Segundo a organização cristã Missão Portas Abertas, em nenhum outro lugar do mundo eles são tão perseguidos como no isolado país asiático. No índice de países onde há perseguição aos cristãos, publicado anualmente pela entidade, em 2018 a Coreia do Norte ocupa o primeiro lugar, mais uma vez.

Após ser preso, Bae foi interrogado diariamente, durante um mês, no Departamento de Segurança Nacional, antes de ser transferido para Pyongyang. Lá encontrou o promotor responsável por seu caso pela primeira vez. Seguiram-se outros quatro meses de interrogatórios, até o início do processo. No fim de abril de 2013, ele foi condenado a 15 anos num campo de trabalhos forçados, por supostos planos subversivos, e transferido para uma penitenciária fora da capital.

Na prisão, a rotina cotidiana era severa: "Eu tinha que me levantar às seis da manhã, tomar café da manhã às sete, depois trabalhar das oito às seis, seis dias por semana." Tratava-se de trabalho braçal pesado, no campo, escavando carvão ou carregando pedras. Às 19h era servida a janta. "E depois eu tinha que continuar sentado, imóvel na minha cadeira, até as dez da noite. Só depois podia me deitar."

Apesar de tudo, ele diz ter tido sorte. Como estrangeiro, era relativamente bem tratado e nunca sofreu abuso físico. Além disso, tinha certos privilégios, por exemplo nas refeições. "Serviam principalmente sopa e arroz, além de vegetais. Nos primeiros meses, tinha de vez em quando até um lanchinho, pão ou maçã". Mesmo assim, não era suficiente. A maior parte do tempo ele sentia novamente fome depois de pouco tempo. Só nos primeiros três meses, perdeu 27 quilos.

Humanidade entre os guardas

Bae era o único detento no campo. Além dele havia apenas os guardas e os funcionários. "Durante todo esse tempo, não conheci nenhum outro preso." Gradualmente, ele fez amizade com alguns dos guardas. Pelo menos do ponto de vista linguístico, não havia problemas de comunicação, já que ele fala coreano. "Mas durante os primeiros meses havia um certo mal-estar. Eles não sabiam como lidar comigo. Afinal, oficialmente eu era considerado um inimigo, que tentara derrubar o governo deles".

A partir das conversas descompromissadas, com o tempo desenvolveram-se relacionamentos de verdade. "Com alguns, eu chegava a conversar sobre política e diferenças políticas. Às vezes eles ouviam, outras vezes não queriam saber de nada. Mas, no cara a cara, dava para contar como é o mundo fora da Coreia do Norte."

Era justamente isso o que mais interessava aos guardas, que eram muito curiosos. "Por exemplo, queriam saber quanto custa a vida nos EUA, como as pessoas moram lá, ou se todos têm seu próprio carro."

Ele confirma que experimentou momentos de humanidade no campo de prisioneiros. "Alguns tinham pena de mim. Nem todos, mas alguns. No fim das contas, eles são gente como eu e você. Só que cresceram num sistema diferente, que deixa a sua marca neles."

Fé inabalável

Passaram-se 735 dias até Bae ser libertado, no fim de 2014. Desde a guerra da Coreia, nenhum outro americano estivera preso tanto tempo no país comunista. Sua saúde se deteriorou tanto que ele teve que ser transferido do campo de trabalho para um hospital, onde passou vários meses.

Apesar de tudo, nunca teve dúvidas de que um dia poderia voltar para casa: "Eu sou um missionário e tenho fé. No terceiro dia da minha detenção, tive uma espécie de experiência sobrenatural: eu estava numa sala fria, e de repente minha mão ficou bem quente, e o calor se espalhou por todo o meu braço." Para ele, aquilo era um sinal. "Eu sabia que era o calor de Deus: Ele está comigo e vai me salvar."

As estatísticas também lhe davam coragem: todo americano preso na Coreia do Norte antes dele acabara sendo libertado, depois de uma mediação diplomática de alto nível por parte de Washington. Bae estava convencido de que o mesmo ocorreria com ele. "A coisa mais difícil para mim era a espera, e não saber quando a hora finalmente chegaria." As várias centenas de cartas chegadas até ele na prisão, com ajuda da embaixada da Suécia, também lhe deram força, pois gente de todo o mundo se solidarizava com ele.

"Uma espécie de presente"

Já faz mais de três anos que Bae foi libertado, e agora ele mora principalmente na Coreia do Sul, onde fundou a ONG Nehemiah Global Initiative. "Nós temos por objetivo ajudar os refugiados norte-coreanos, apoiamos, por exemplo, quem conseguiu chegar à fronteira com a China e quer seguir para a Coreia do Sul."

O efeito do tempo em cativeiro sobre ele prossegue: Bae diz sentir uma forte conexão com o povo norte-coreano. O sofrimento da vida cotidiana sob aquele sistema político o toca pessoalmente. "Sei que os cidadãos comuns têm que viver perenemente com medo e restrições. Eu me preocupo com o jeito como o Estado os trata, quero que os direitos deles melhorem, e que um dia liberdade de expressão e religião vigorem na Coreia do Norte."

Bae viaja muito, fala em todo o mundo sobre suas experiências na Coreia do Norte, e escreveu um livro sobre o que viveu lá, intitulado Not forgotten (Não esquecido).

No entanto ele não pode imaginar um retorno ao país, pelo menos não nas condições atuais: "Mesmo que eu quisesse, não acho que me deixariam entrar. Mas isso realmente não está em pauta para mim", assegura.

Ele também não sente rancor e diz que o cativeiro o tornou até mais forte. Lá ele aprendeu a perseverar e a confiar ainda mais em Deus. "Claro que não quero reviver o que tive que passar", ressalva. "Mas ainda assim amadureci como ser humano. E é por isso que, de certa forma, vejo agora aqueles dois anos de detenção na Coreia do Norte como uma espécie de presente."