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Na praça May Ayim

Ricardo Domeneck

20/03/2018 11h35

Ato em Berlim em memória de Marielle Franco e outras vítimas da violência contra cidadãos negros ocorreu em praça que traz nome importante da cultura negra alemã, a poeta May Ayim (1960-1996).Como noticiado na DW Brasil, no último sábado (17/03) foi realizado aqui em Berlim um ato em memória de Marielle Franco, vereadora do Psol no Rio de Janeiro que foi assassinada junto com o motorista Anderson Gomes no centro da cidade no dia 14 de março.

Outras vítimas da violência policial no Rio de Janeiro foram lembradas, como Claudia Silva Ferreira e Amarildo de Souza. Era um dia bastante frio na capital alemã quando cheguei à rua May Ayim (May-Ayim-Ufer) naquela tarde, ao logo da margem do rio Spree.

Grupos de brasileiros e estrangeiros começaram a reunir-se pouco a pouco, quando houve falas em microfone aberto, a exibição de um discurso de Marielle e algumas canções, como Gameleira Branca, de Paulo César Pinheiro.

Esse momento, quando muitos começaram a cantar juntos, foi um dos que me emocionaram durante o ato, com aqueles versos: "Pra quem tem licença a porteira do mundo nunca tranca / Pra quem tem a bença do dono da gameleira branca", numa referência à planta associada no Brasil aos orixás Iroco e Xangô no Candomblé.

Foi triste pensar em Iroco ali invocado num ato a Marielle, morta tão jovem, pois o raro orixá está ligado à longevidade e à durabilidade das coisas, sendo o iroco uma árvore da flora africana que pode viver por séculos. Mas era também, portanto, um símbolo apropriado de resistência.

Brasileiros, alemães e outros estrangeiros, brancos e negros, homens e mulheres, homossexuais e heterossexuais estavam ali unidos pelo fim da violência contra mulheres, negros e homossexuais. Dava esperança na possibilidade de alianças políticas pelo bem da comunidade toda, que pessoas de históricos tão distintos possam se unir.

Além disso, desde o assassinato de Marielle, alguns artistas na Alemanha se manifestaram também, demonstrando que a situação no Brasil parece gerar mais atenção no âmbito internacional. Pessoalmente, vi Sasha Perera – que se apresenta como Perera Elsewhere – lamentar a morte de Marielle Franco nas redes sociais, a poeta e jornalista Annika Henderson, que se apresenta comoAnika, dedicar um poema à ativista brasileira em sua página oficial, e o produtorRed Ulyssescompor e lhe dedicar uma pequena faixa.

Duas coisas no ato chamaram ainda minha atenção, e uniram em minha cabeça a poesia, a cidade de Berlim e a cultura negra. No discurso de Marielle Franco exibido no ato, ao fim do texto a vereadora cita Audre Lorde, poeta negra, mulher e homossexual (como a vereadora) que viveu seus últimos anos de vida em Berlim.

Em seu poema "Uma litania para a sobrevivência”, Audre Lorde escreveu: "Para aqueles entre nós / que foram impressos com o medo / como uma linha tênue no centro de nossas testas / aprendendo a temer com o leite de nossas mães / pois por esta arma / esta ilusão de alguma segurança a ser achada / os de passos pesados esperavam silenciar-nos.” (tradução minha).

Por fim, o terreno onde estavam todos trazia o nome da poeta May Ayim. Nascida em 1960 na cidade de Hamburgo, a escritora cometeu suicídio em Berlim em 1996. Seu trabalho é um dos mais importantes no país sobre o racismo que alemães negros sofreram e sofrem, as dificuldades do cidadão de pele negra num país que associa sua identidade nacional à pele branca, aqueles que muitas vezes também mestiços aqui, como tantos brasileiros, sentem-se "daheim unterwegs” (em casa de viagem), como no poema "blues im schwarz weiss” de May Ayim. Vale dizer que na Alemanha a palavra "Mischling” (mestiço) tem forte conotação negativa, ao contrário do Brasil.

Na coluna Bibliothek, publicada às terças-feiras, o escritor Ricardo Domeneck discute a produção literária em língua alemã, fala sobre livros recentes e antigos, faz recomendações de leitura e, de vez em quando, algumas incursões à relação literária entre o alemão e o português. A coluna Bibliothek sucede o Blog Contra a Capa.

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