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O descompasso que trava a adoção no Brasil

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Imagem: Getty Images

Hyury Potter

25/05/2018 05h47

Número de pais cadastrados para adotar é cinco vezes maior que o de crianças em abrigos no país. Mas exigências quanto à idade prolongam espera por um filho. Novo sistema tenta quebrar estereótipos.A advogada catarinense Perla Duarte Moraes, de 40 anos, sempre quis adotar uma criança, apesar de poder ter filhos biológicos. Em 2016, o plano se concretizou, e a adoção fugiu do padrão brasileiro: a escolha foi por um menino de nove anos de idade.

O Cadastro Nacional de Adoção (CNA) aponta que apenas 5% dos cerca de 43 mil candidatos a pai e mãe adotivos aceitam crianças de nove anos de idade ou mais. No entanto, é nesse grupo que estão mais de 60% das crianças aptas a serem adotadas em abrigos no Brasil.

"As crianças pequenas de até três ou quatro anos de idade são adotadas de imediato, pois esse é o perfil preferidos dos adotantes. As crianças maiores encontram certa resistência", afirma Halia Pauliv de Souza, que há mais de 20 anos ministra cursos e escreve livros sobre preparação para pais e mães que pretendem adotar.

Esse descompasso é um dos fatores que mais contribuem para que o número de crianças em abrigos só cresça no país. Hoje, são cerca de 8 mil crianças cadastradas, ou seja, o número de pais na fila para adotar é cinco vezes maior.

Especialistas apontam que as exigências dos pais mostram que ainda há uma idealização da adoção, o que atrapalha o processo adotivo e impede que os candidatos tenham experiências como a de Moraes.

"Meu filho é tudo pra mim", diz a advogada após os dois primeiros anos de maternidade. Mas nem tudo é um conto de fadas, reconhece. Ela conta que a decisão de adotar foi sendo construída aos poucos, lendo livros sobre o tema e fazendo os cursos necessários para poder se cadastrar no CNA.

O processo de adoção do filho Antônio, hoje com 12 anos, durou cerca de um ano, período que Moraes considerou bom para amadurecer e se preparar para a tarefa de ser mãe.

"Quem quer adotar precisa saber de todas as situações que tem que enfrentar. É como ter um filho biológico, com as partes boas e ruins. Quando decidi adotar, fui à Vara da Infância de Florianópolis e iniciei todo o processo, inclusive com o curso preparatório", conta Moraes.

"É importante essa etapa, porque não deixa espaço para falsas ilusões sobre o que é a adoção. Hoje sou muito feliz com meu filho e acho que é porque passei por todo esse processo de preparação", diz a advogada.

Souza destaca que, após a decisão de adotar, além do curso obrigatório, é preciso continuar a preparação pessoal por meio de leituras e frequentar grupos de apoio à adoção. E quando o filho chegar, deve-se buscar apoio nos grupos de pós-adoção. "Todo esse apoio é oferecido gratuitamente no país", ressalta.

Com 80 anos de idade, a especialista ainda trabalha como voluntária em cursos preparatórios para futuros pais e mães adotivos no Paraná. Ela defende que o processo de adoção seja ainda mais rigoroso, para dar mais segurança aos adultos e, principalmente, para a criança.

No caso de Moraes e Antônio, que cumpriram todos os requisitos do processo adotivo, a experiência tem sido tão boa que a advogada já pensa no segundo filho.

Novo sistema para aproximar pais e filhos

Dez anos se passaram desde que o CNA e o Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA) foram implantados no Brasil. Nos primeiros três anos, mais de 3 mil adoções foram realizadas no país, mas esse número caiu com o passar do tempo.

O maior desafio atualmente é aproximar as crianças dos candidatos a pais, quebrando estereótipos. Para isso, um novo sistema começou a ser testado em maio deste ano em duas cidades do interior do Espírito Santo, Colatina e Cariacica. Até o final do ano o modelo deve ser implementado em cidades maiores, como São Paulo.

Um dos magistrados que participa do grupo de trabalho multidisciplinar do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que elaborou as mudanças no CNA, Iberê Castro Dias, de São Paulo, explica que uma das novidades do sistema é a possibilidade de os pais verem fotos da criança que foi selecionada através do cadastro. Para ele, isso pode ajudar na flexibilização das exigências dos pais.

"A imagem é uma forma de aproximar o adulto da criança, de humanizar o processo adotivo. Só depois haverá o encontro pessoal. Assim podemos mostrar crianças fora da faixa etária escolhida pelos pais. Se eles querem até oito anos de idade, às vezes podem ver a foto de um menino ou menina de dez anos e mudar de ideia", diz o juiz.

Algo semelhante ocorreu no caso da adoção de Antônio por Moraes. Ela pretendia adotar uma criança até sete anos, mas aceitou aumentar a idade durante o processo de preparação.

Castro Dias reforça que todas as etapas continuarão a ser exigidas no processo adotivo e que isso é importante para minimizar problemas após o acolhimento, como de devolução de crianças – questão em que, segundo o juiz, a legislação brasileira já avançou.

"Hoje o pai que adotou e devolveu pode ser obrigado a pagar tratamento psicológico para a criança por causa do trauma que está causando e também uma pensão. É uma situação que ninguém quer, então temos que ser rigorosos no processo de seleção justamente para diminuir esse tipo de ocorrência", afirma.

A criança idealizada e a real

A psicanalista Maria Luiza Ghirardi estudou a fundo o comportamento de pais e mães que pretendem adotar para a sua tese de mestrado na USP. A pesquisa resultou no livro Devolução de crianças adotadas: um estudo psicanalítico, lançado em 2015. Para Ghirardi, a expectativa dos pais adotivos em relação às crianças foi um dos principais fatores para casos em que houve devolução.

"Os casos de devolução mostraram que muitas vezes há uma forte expectativa dos pais para que a criança solucione os problemas dos adultos ou para que ela se encaixe na estrutura familiar oferecida. Essa expectativa normalmente gera metas inalcançáveis para ambos os lados, e com isso abre-se uma porta para o sentimento de fracasso", diz Ghirardi.

Já para a psicóloga da Vara da Infância de Natal, Ana Barbosa Maux, o processo de preparação dos pais e das crianças é até mais importante do que a seleção. "Muito mais do que avaliar se alguém está apto para adotar, se faz necessário que as equipes técnicas atuem na preparação dessas pessoas, através de momentos de reflexões, troca de experiências com outras famílias e apoio psicossocial. Mas esses pretendentes também precisam realizar uma preparação pessoal, que envolve o engajamento subjetivo na construção da parentalidade por adoção", orienta Maux.

Ghirardi reforça que apenas um controle maior nesse processo de seleção, com a orientação adequada, pode ajudar a impedir ou a reduzir casos de adoção malsucedida. "O que vejo é que há uma importância cada vez maior de, ainda na preparação para a adoção, o adulto entre em contato com todas as dificuldades que deve encontrar quando tiver uma criança adotada em casa. Isso é ainda mais relevante quando a adoção é de jovens de mais idade, já adolescentes", diz.