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Comerciantes estrangeiros se revoltam contra extorsões praticadas pela máfia na Itália

19.abril.2018 - Rosario Allegra deixa sede da polícia em Palermo; autoridades prenderam principais ajudantes do líder da Cosa Nostra - Alessandro Fucarini/AFP
19.abril.2018 - Rosario Allegra deixa sede da polícia em Palermo; autoridades prenderam principais ajudantes do líder da Cosa Nostra Imagem: Alessandro Fucarini/AFP

Ylenia Gostoli

14/06/2018 10h27

As atividades criminosas da Cosa Nostra são quase uma tradição da Sicília. Na capital Palermo, porém, 11 comerciantes estrangeiros se rebelaram contra o sistema de extorsão, o que levou à prisão de mafiosos locais.

Houve uma época em que a loja de Ruben em Palermo tinha que estar sempre fechada, mesmo nos horários de funcionamento. Nascido em Bangladesh, ele abriu em 2002 uma loja de transferência internacional de dinheiro na Via Maqueda, no bairro de Ballarò.

Uma das principais artérias do centro histórico da capital siciliana, ela também é uma das mais diversificadas. Entre as fachadas dilapidadas e os palácios históricos que os turistas param para admirar, os onipresentes suvenires locais são vendidos lado a lado com saris asiáticos e condimentos norte-africanos.

Foi aqui que dez proprietários de loja bangladeshianos e um tunisiano decidiram enfrentar o sistema de crime de rua e extorsão perpetrado por um grupo mafioso local contra eles e outros negociantes, ao quebrar o silêncio sobre o que estava ocorrendo.

Auxiliados pelo grupo local Addio Pizzo ("adeus extorsão"), os comerciantes denunciaram os responsáveis à polícia, o que resultou na prisão de nove pessoas em maio de 2016. Elas respondem agora por crimes como extorsão, assalto, incêndio e agressão, com as agravantes de métodos criminosos e racismo.

Desde as prisões, Ruben não tem mais que pedir a seus fregueses que toquem a campainha para entrar. "Costumava haver muitos assaltos armados ou tentativas nesta rua", recorda, referindo-se aos tempos em que Emanuele  Rubino, o "lobo de Ballarò", e sua gangue aterrorizavam o bairro.

"Eles tentavam conseguir dinheiro de todo jeito que pudessem, às vezes eu tinha que pagar para poder ficar com a loja aberta." A fim de assegurar seu poder e controle, os chantagistas costumavam exigir entre 40 e 50 euros por semana como "proteção", ou pizzo, no dialeto siciliano.

A situação deteriorou em 2015, recorda Ruben, em sua casa comercial cuja única fonte de luz diurna é a entrada, agora aberta de par a par.

"Passei a manter a porta fechada depois que eles tentaram um assalto armado. Tentaram entrar na minha loja muitas vezes. Se olhasse atravessado para eles, eu podia apanhar. Eles estavam sempre aqui, dia e noite, um grupo de oito a dez. Mas agora faz dois anos que estamos vivendo na Europa, não é Sicília", brinca.

A virada chegou em abril do ano seguinte, quando Rubino deu um tiro na cabeça do gambiano Yusupha  Susso em plena luz do dia, após uma altercação. A vítima sobreviveu miraculosamente, mas o tiroteio despertou indignação pública e provocou a intervenção da polícia.

Rubino foi condenado a 12 anos de prisão, cinco de seus sócios foram exonerados das acusações de extorsão, um está sob prisão domiciliar. O processo deverá se encerrar ainda em 2018.

Daniele Marannano, um dos coordenadores da Addio  Pizzo, registra ser esta "a primeira vez que um grupo tão grande de comerciantes de origem estrangeira resolve coletivamente apresentar queixa". O movimento de cidadania conta com o apoio de uma rede de voluntários e doações. "Sempre encorajamos esforços coletivos de denúncia, pois mais gente significa menos riscos."

Desembocando em pracinhas maltratadas e numa feira permeada pelo cheiro agridoce de peixe frito e carne crua que pende de ganchos, as ruas tortuosas de Ballaro tem sido historicamente um reduto da Cosa Nostra, a máfia siciliana. Mas essa dinâmica se alterou nos últimos anos.

"Hoje em dia, a dimensão 'de baixo para cima' da Cosa Nostra desmoronou", conta o prefeito de Palermo, Leoluca Orlando, referindo-se ao sistema tradicional em que os chefões delegavam o controle de um território específico aos que atuavam no nível dos bairros.

"Com os golpes que a máfia tem recebido nos últimos anos, as relações se tornaram mais horizontais. Isso não descarta a possibilidade de laços com o topo, mas eles enfraqueceram,"

Segundo um relatório publicado em 2013 pelo centro de pesquisa Transcrime, o que a Cosa Nostra com lucra suas atividades ilegais é hoje só a metade do arrecadado pela Camorra, a máfia napolitana. Nos últimos anos emergiram organizações novas e poderosas, como a Black Axe (machado negro) nigeriana. Em maio, 14 de seus membros foram sentenciados por associações mafiosas, entre outros, marcando a primeira vez que esse um tribunal italiano atribui esse tipo de crime a uma organização estrangeira.

Outro dos 11 negociantes que apresentaram queixas contra a gangue de Rubino, que prefere usar o pseudônimo Faysal, mantêm um supermercado, rua abaixo. "Eu costumava ter o mínimo dinheiro possível na caixa registradora. Agora eu posso levar o dinheiro no bolso, sem medo", comenta, sacando um maço de cédulas.

Enquanto muitas das lojas em volta da rua Maqueda pertencem a imigrantes estabelecidos na Itália anos atrás, algumas das vítimas são naturais de Palermo. Mas nenhuma delas tomou a iniciativa de denunciar os mafiosos.

"A iniciativa dos comerciantes estrangeiros foi também uma espécie de reprimenda aos muitos negociantes de Palermo que continuam a pagar, até hoje", comenta Marannano em seu escritório confiscado da máfia, no centro da cidade.

A Addio  Pizzo tem ajudado 300 vítimas de extorsão na capital e localidades vizinhas. Um dos desafios enfrentados ao iniciar suas atividades em 2004 foi conseguir que os locais falassem sobre os abusos, quebrando o tabu. "Hoje vivemos num contexto em que é mais fácil denunciar. Mas os que fazem isso ainda são muito poucos, considerando quão abrangente o fenômeno é."

Além de prestar assistência a negociantes vítimas de extorsão determinados a procurar a polícia, a organização formou uma rede de cerca de mil proprietários de estabelecimentos que desafiam o sistema exibindo o adesivo com o logo da Addio  Pizzo. Ela visa desenvolver uma rede de "consumidores críticos", capazes de fazer escolhas bem informadas.

"A questão é criar uma rede de proteção, a fim de garantir que aqueles que denunciam não fiquem sós", explica Daniele Marannano. "A ação policial é importante, mas, até fazermos uma reviravolta cultural, o fenômeno está fadado a se regenerar ciclicamente. Enquanto houver um comerciante disposto a pagar, haverá alguém pronto e arrecadar."