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"É talvez o teste mais difícil para o Judiciário de um país", diz pesquisador

DIDA SAMPAIO/ESTADÃO CONTEÚDO
Imagem: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO CONTEÚDO

Malu Delgado (de São Paulo)

24/07/2018 05h18

Justiça brasileira vem enfrentando prova de fogo: condenar políticos e empresários poderosos, em meio a acusações de politização. E, para o pesquisador, está se mantendo de pé, algo quase inimaginável há uma década.

A recente guerra de decisões sobre a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, travada entre desembargador e juízes da Lava Jato, instigou o debate sobre uma politização do Judiciário brasileiro.

Para Ivar  Hartmann, coordenador do projeto Supremo em Números e pesquisador do CJUS (Centro de Justiça e Sociedade) da FGV (Fundação Getúlio Vargas), decisões do Judiciário sempre terão consequências e reflexos políticos, mas isso não pode ser a premissa para se afirmar que há no Brasil um ambiente de politização e ativismo desse Poder.

A fiscalização do Judiciário é uma deficiência histórica no país, que começou a ser driblada com a criação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em 2004, aponta Hartmann, que é professor e doutor em direito público. Ele reconhece que o conselho ainda pode ser muito mais proativo, mas afirma que o Brasil e o Judiciário estão bem melhores com ele do que sem ele.

Quanto às decisões judiciais envolvendo o destino de Lula, o pesquisador da FGV assegura que os três magistrados envolvidos no episódio cometeram erros e que cabe avaliação no CNJ sobre suas respectivas condutas.

DW Brasil: Decisões recentes do Judiciário reacendem essa sensação de onipotência de juízes, de interesses e atuação política de magistrados. O senhor concorda?

Ivar Hartmann: Em tempo de tanta polarização, eu me preocupo muito com premissas. As decisões do Judiciário terão sempre consequências políticas. Não sei se esse é um bom critério para avaliar se há politização do Judiciário ou não. Não acho que apenas num contexto de politização do Judiciário precisaria haver fiscalização. Precisa haver fiscalização sempre. Isso historicamente é uma deficiência no Brasil.

Ainda não vi no Brasil nenhuma pesquisa que conseguisse chegar a uma conclusão de que magistrados estão rotineiramente adotando fundamentações políticas em suas decisões. Há muito "achismo" e muitos interessados em criticar e prejudicar a atuação do Judiciário.

Claro que um membro do MDB vai dizer diante da prisão de Eduardo Cunha que o Judiciário está politizado. Claro que um membro do PT, diante da prisão do Lula, afirma que é tudo uma perseguição política. Mas nunca vi até hoje uma pesquisa que fosse além disso.

Publiquei recentemente um artigo sobre o Supremo tentando identificar se a convicção política era suficiente para entender o significado de decisões no STF, e chegamos à conclusão de que não, que é muito mais complicado que isso. Vi mais evidências científicas contra essa ideia, até bastante sedutora, de politização do Judiciário, do que a favor. Não conseguimos comprovar que há politização. Não há evidências. E se não há evidências, eu não posso presumir uma coisa desse tipo.

Especificamente em relação a decisões recentes sobre a soltura do ex-presidente Lula, envolvendo essa briga entre o desembargador Rogério Favreto, o presidente do TRF-4, João Pedro Gebran Neto, e o juiz Sérgio Moro, houve ativismo ou exacerbação de funções?

Acho que houve sim erros do Moro, do Favreto e do Gebran Neto, por razões diferentes.

O erro do Moro – e não foi porque ele estava de férias, porque há precedentes no Supremo que autorizam decisão de magistrados mesmo em férias – foi tomar uma decisão que tinha claramente o objetivo de frustrar o cumprimento da decisão de um tribunal que está acima dele. Claro que o Moro é esperto o suficiente para não dizer isso explicitamente no despacho, mas esse era o objetivo da decisão dele. E isso é errado. Ele não pode suspender a decisão do tribunal que está acima dele.

Por parte do Favreto, é problemático porque ele sabia que o pedido de habeas corpus para Lula teria que ser enviado ao STJ (Superior Tribunal de Justiça), e não para o TRF. Ele estava ciente disso e sabia que o pedido foi feito de forma malandra. Me parece, portanto, que ele errou.

E o Gebran Neto errou porque, por mais que a gente discorde e não goste da decisão do Favreto, no plantão ele era o responsável e soberano. Então, não cabia ao Gebran usurpar a competência do Favreto.

Se os três erraram, como os cidadãos podem ser protegidos de equívocos de magistrados? Como fiscalizar a atitude equivocada de um magistrado?

A gente tem que conviver com o fato de que haverá sempre decisões com as quais discordamos. Isso é inevitável. Paralelamente a isso é importante ter um órgão como o Conselho Nacional de Justiça para fazer uma fiscalização. Isso é um ganho. Durante muito tempo o Brasil não teve nenhuma via de controle ou fiscalização. O CNJ é um grande ganho que culturalmente ainda não foi assimilado, infelizmente, em especial por uma parte dos magistrados brasileiros.

Há ainda uma minoria de magistrados que ainda não aceita a ideia de que deve existir um órgão de controle e leva a questão para o lado da independência, de que decisões judiciais são soberanas, mas se esquecem de que o CNJ não faz nenhum tipo de controle sobre o que o magistrado decidiu, e apenas sobre o desempenho das funções. São coisas separadas.

Uma coisa é o Favreto ter concedido o habeas corpus, o mérito. Isso é uma decisão, e a Constituição não permite que ele seja punido porque concedeu um habeas corpus. Outra coisa muito diferente é se ele decidiu em tempo hábil ou se se sentou no processo por três anos. Existem claras obrigações, que não têm a ver com o mérito das decisões, que cabem sim ao CNJ fiscalizar. Há uma proibição na lei, por exemplo, de se manifestar para a imprensa sobre casos que esse magistrado vai julgar mais tarde.

Cabe então ao CNJ fazer avaliação de condutas?

Não avaliar o mérito da decisão e seu conteúdo, mas analisar os deveres funcionais. É compreensível que a população brasileira fique confusa, porque nós vemos ministros do Supremo, que deveriam dar o exemplo, violando a Lei Orgânica da Magistratura com frequência. E aí parece que a maioria do Judiciário é assim. Mas até que ponto temos um estudo que cheque se determinado comportamento de um ministro do Supremo é representativo do Judiciário nacional? Eu não posso presumir isso. Mas o Judiciário brasileiro está perdendo muito a sua legitimidade porque as pessoas caem nesta alegação sedutora de que se os ministros do Supremo estão fazendo isso, então todos os outros juízes também fazem.

É prerrogativa do CNJ analisar essas questões que envolveram o habeas corpus do ex-presidente Lula?

O CNJ não pode fazer uma análise se estava certo ou errado conceder o HC, na minha opinião. Mas há, sim, uma análise a se fazer sobre a atitude do Moro tentando suspender ou obstruir a decisão do Favreto. Há, sim, uma análise a se fazer sobre a decisão do Gebran Neto, que também, embora fosse o período do plantão, tentou desfazer a decisão do Favreto. Acho que há sim uma análise. Mas não censurar o Favreto pelo fato de ele ter concedido o HC; de forma alguma. E, veja, eu discordo da concessão do HC, acho que está errada, e que o argumento de que havia fato novo está errado também. Mas isso não é a mesma coisa de achar que o Favreto deve ser punido pelo mérito da decisão.

O CNJ, na sua opinião, é um grande ganho da sociedade brasileira. Mas há também críticas sobre o excesso de indicações políticas para o conselho a partir de preferencias e conchavos partidários, e de uma atuação inexpressiva do CNJ.

Acho que se o nosso ponto de comparação é CNJ perfeito e atuante, de fato ele está abaixo. Mas se nosso ponto de comparação é o que tínhamos antes da emenda constitucional que criou o CNJ, que era a inexistência de um órgão fiscalizador, acho que estamos bem e que avançamos bastante. Claro que também acho que o CNJ poderia ter feito mais, poderia ser mais rápido, poderia ter sido mais proativo em determinados mandatos, mas acho que temos um ganho considerável ao caminho traçado antes de 2004.

Qual é a perspectiva do Judiciário nesta atual conjuntura política do Brasil, com a Lava Jato se arrastando?

Vejo com otimismo. Acho que o Judiciário brasileiro enfrentou um período que começou com o mensalão e depois se ampliou para todas as instâncias do país com a Lava Jato. É um período de teste. Um teste difícil. Talvez o teste mais difícil ao qual um Judiciário pode ser submetido num país, que é julgar e condenar políticos poderosos, empresários muito poderosos.

Se o Judiciário de um país consegue fazer isso e se mantém de pé, isso é um teste extremamente importante. Apesar das críticas, o Judiciário brasileiro está se mantendo de pé e está fazendo um trabalho muito melhor do que a gente esperava que ele pudesse fazer. Há dez anos, se as pessoas fossem questionadas se aqui era possível se condenar um ex-presidente ou os maiores empreiteiros do país, e o país sobreviver, e as coisas continuarem andando, creio que a maioria diria que não, que isso seria impossível. E estamos vendo que é possível sim.

Numa perspectiva mais otimista em relação a esses pontos que são objeto de crítica, como magistrados que decidem apenas politicamente. Se essas coisas efetivamente estão ocorrendo, agora estamos tendo a oportunidade de dar visibilidade a elas. E testar também os mecanismos de punição dos magistrados que decidam politicamente. Isso agora tem visibilidade suficiente, a sociedade está atenta ao problema, a imprensa está atenta ao problema e, agora, estamos testando também as entidades de controle do próprio Judiciário.

E quem fiscaliza o Supremo?

O grande problema do Supremo é que a Constituição não previu um sistema de punições leves, punições medianas e punições mais fortes. Só tem a opção nuclear que é o impeachment [de ministro do STF]. Não tem punição leve ou mediana, só a máxima. Como não temos, isso passa batido. A sociedade vê, isso prejudica a legitimidade e a imagem do Supremo, mas nada acontece com o ministro.

Quando um ministro senta num processo, pede vista, e segura a decisão do processo por mais de um ano, de novo não tem punição pequena ou intermediária. E como só temos a opção do impeachment de ministro, e isso hoje é considerado totalmente fora de questão, é como se essa punição não existisse.

Culturalmente, considera-se no Brasil que impeachment de ministro do Supremo não existe, embora esteja na Constituição. Faz mais de 100 anos que não foi exercido. Quando se falava da moda do impeachment, em função do caso da ex-presidente Dilma Rousseff, defendi que determinados ministros, já com histórico de reiteração de condutas ilegais, fossem sujeitos ao impeachment.

Seria interessante aprovar uma emenda constitucional para criar punições mais leves para ministros do Supremo.

O senhor é a favor de uma lei para conter abusos de autoridade no Ministério Público e outras esferas do Judiciário?

Não. Esse é um grande engano, um engodo patrocinado pelas pessoas insatisfeitas com o fato de o Ministério Público, a Polícia Federal e o Judiciário estarem, pela primeira vez, condenando pessoas poderosas. Elas usam, para tentar trazer apoio popular a essa lei de abuso de autoridade, questionamentos reais e com os quais boa parte da população discorda, como as remunerações acima do teto [no Judiciário]. Só que usam isso como um cavalo de troia para advogar por uma coisa extremamente desnecessária. Esse seria o pior caminho.

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